quinta-feira, 17 de março de 2011

Celso Arnaldo conta como foi a conversa histórica entre Dilma e Hebe

Celso Arnaldo Araújo

“Ela é uma pessoa surpreendente. Vocês vão gostar”, anuncia uma engalanada Hebe, na cabeça da entrevista que fez com a presidente Dilma, em Brasília, para a estreia de seu programa na RedeTV! Cabeça, no jargão jornalístico, é o início de uma reportagem. No caso dessa entrevista, é a única cabeça que passou perto da conversa entre as duas protagonistas, tão surreal quanto Dilma presidente. Uma conversa que se tornou histórica no momento mesmo em que foi para o ar e que no futuro será usada por historiadores na busca de respostas para o enigma que o Brasil produziu em 31 de outubro de 2010: como isso pôde acontecer? Como chegamos a isso?
Coube a Hebe Camargo – que em 60 anos de sofá nunca tentou fazer uma pergunta, a nenhum convidado, que ultrapassasse o universo das donas de casa dos anos 40 – levantar novos elementos sobre o mistério.
Para o papo não entrar a seco, os produtores da RedeTV! providenciaram um nariz de cera – outro jargão da imprensa, significando a introdução vazia, que patina em si mesma, sem uma mísera informação relevante: uma repórter da casa, à porta do palácio, vem com o blá-blá-blá sobre a primeira mulher presidente, culminando com uma conclusão que parece ter despencado de um caminhão transportando fitas velhas do History Channel: “O que será que existe por trás da mulher que ganhou o apelido de Dama de Ferro?”. Quem, Dilma? Tente encontrar a Dama de Ferro, via túnel do tempo, na Rua Downing Street 10, entre 1979 e 1990.
Foi mais fácil encontrar Dilma no Palácio da Alvorada – apesar do falso suspense de Hebe:
“Será que ela vai me receber?”, pergunta, num tom sapeca de tiete do Justin Bieber à porta do camarim. “Ih, é um grande sonho, din-don”, toca a campainha imaginária.
Claro que vai receber: Hebe logo avista Dilma chegando para o encontro acertado com semanas de antecedência. Close em Hebe, que se desmancha ao vislumbrar a aparição:
“Ahhh, ai, ô meu Deus, é verdade”, extasia-se, os braços escancarados para abraçar a presidente-gracinha.
DUAS COLEGAS EM PERFEITA SINTONIA INTELECTIVA
O longo abraço de duas velhas amigas que nunca se viram em pessoa inicia uma troca de energia que desafia todos os códigos que regem as entrevistas presidenciais exclusivas da história da República – nas quais, basicamente, o entrevistador traz como credencial a tradição de ter sempre algo importante a perguntar, ou o presidente não lhe daria uma exclusiva; e o presidente entrevistado tem sempre algo importante a responder, ou não seria presidente. Para Hebe, que demonstraria na conversa nunca ter lido uma única linha sobre a pessoa que comanda seu país, Dilma é apenas uma mulher que virou presidente. Para Dilma, que nos 40 minutos seguintes daria respostas à altura das piores perguntas jamais feitas a um presidente da República, Hebe é apenas a senhorinha a que ela já assistia adolescente, quando entrevistava a gracinha do Roberto Carlos.
O universo de Hebe ainda é o mesmo que servia de pano de fundo ao programa “O mundo é das mulheres”, que ela comandava em 1955 na TV Paulista. O mundo de Dilma Rousseff, bem, é o mundo de Dilma Rousseff.
“Muito prazer em te receber”
“Me belisca”, pede Hebe, fingindo incredulidade.
“Não vou te beliscar”, atalha Dilma, condescendente.
E já num sofá do Alvorada:
“Gente, vocês não têm ideia (…) Eu estou inteirinha arrepiada.(…) Eu sou uma pessoa muito sincera: eu não via essa doçura, essa coisinha boa, tanto que eu estou aqui, eu olhei e disse meu Deus, como você é linda, uma pele maravilhosa, um sorriso delicioso. E o olhar. O olhar é bárbaro”
Uma das vantagens de ser Hebe: poder dizer essas coisas, cara a cara, para a presidente da República. Imaginem o lendário Mike Wallace, da CBS, até mais velho do que Hebe, lambuzando Obama com essas palavras, na Casa Branca.
O diálogo que se seguiu é o de duas colegas em perfeita sintonia intelectiva:
“A honra é minha, Hebe, porque falar com você também é uma, uma coisa que emociona, porque você é a nossa, é, representante mulher na TV brasileira”.
Curiosidade: quem seria nosso representante homem?
“ESSE PALÁCIO, SE OCÊ OLHÁ, ESSE PALÁCIO É BONITO”
Estar num edifício “histórico”, com Palácio no nome, impressiona a viajada visitante. Mas a presidente procura descaracterizar a solenidade palaciana:
“É histórico, é um, vamos dizer, símbolo do que é, eu acho, o espírito do povo brasileiro, que é um espírito moderno, mas ao mesmo tempo muito simples. Esse palácio, se ocê olhá, ele é um palácio bonito, mas ele é simples, ele é tranquilo”.
Niemeyer, em 103 anos de vida, ainda não tinha conseguido descrever o Alvorada com tamanha precisão axial.
Ser mulher e ser presidente é a dualidade que assombra Hebe, que pede de Dilma uma elaboração sobre o tema. Desconfio que será um “Vale a pena ouvir de novo” do censo Dilma sem senso. Dito e feito:
“Nós somos, é, metade, um pouco mais da metade da população brasileira (…) Mas eu sempre acredito numa coisa: nós somos a metade da população brasileira. Mas a outra metade são nossos filhos”.
“Que maravilha!!”, surpreende-se Hebe, ao saber que, pelo menos em tese, pode ser mãe de Lula.
“Então na verdade nós temos essa capacidade de representar as mulheres e também as crianças e os jovens, né?”
Faltaram os homens feitos. Mas Hebe não sentiu falta.
Vida de presidente não deve ser igual à de todo mundo – desconfia Hebe. Mas é muito diferente mesmo? Na resposta, Dilma já está tão à vontade que começa a relaxar na prosódia:
“Num é de fato uma coisa boa você perder a possibilidade docê andá na rua, de você entrar numa padaria, né? (…) Mas tem suas compensações (…) É uma grande honra, afinal de contas, ser presidente dum país como o Brasil, que é o seu país, né, onde cê aprendeu a andá, falá, vivê e chegá a ser presidente da República é uma coisa muito importante”.
Dilma ainda se surpreende que presidentes tenham nascido, se criado e sejam eleitos em seus próprios países — imagine Hebe, que nunca ouviu Dilma antes. A presidente então enterneceu a apresentadora com duas velhas fábulas – requentadíssimas para os leitores desta coluna: a da menina Vitória, num aeroporto, que perguntou a Dilma “se mulher pode”, talvez confundindo-a com a Dra. Lorca de “Zorra Total”, e de outra menina, ela própria, que queria ser bailarina ou bombeira. E – num furo de Hebe – Dilma revelou também que quando pequena não queria ser presidente, ao contrário de todas as meninas de sua idade. Isso mudou: “Hoje as meninas podem ser presidenta”.
“QUE LINDO! SAIU DA PRISÃO? GENTE DO CÉU!”
Mas o melhor momento desta primeira parte da entrevista – o Ministério da Saúde informa: a sequência está em outros dois vídeos no YouTube – é justamente o único onde se quebrou a sintonia perfeita entre ambas. Hebe não tem a menor ideia do passado de Dilma. E Dilma não tinha a menor ideia do que Hebe queria dizer ao lhe perguntar quando entrou para a política. Segue-se um diálogo de Platão:
“Eu entrei na política, Hebe, no Colégio Estadual de Minas Gerais”.
“Ahhhh, que lindo”
“(…) Eu fui fazer o clássico, ocê fazia científico ou clássico, fui fazer no Colégio Estadual e lá no Colégio Estadual eu entrei pra política”.
Dilma se refere ao movimento estudantil que acabaria levando-a para a luta armada. Hebe só entende política como cargo público:
“Jura? Mas então foi muito cedo”, espanta-se Hebe, talvez imaginando uma adolescente apresentando projetos na Câmara dos Deputados.
“Eu devia ter uns 16 anos”.
“Nossa! Que coisa incrível”.
“O Brasil vivia um momento de muita, de muita, vamos dizer assim, turbulência. Então a minha geração foi uma geração que se motivou pra achar, nós queríamos mudar o mundo”.
“Olha, com 16 anos! Então tinha que ser. Com 16 anos, você veio caminhando como deve ser. Ninguém pode ser presidente da noite para o dia”, pontifica a cientista política Hebe Camargo.
Pano rápido. Risos desbragados nas coxias. O que ninguém pode ser, na visão republicana de Hebe, foi exatamente o que Dilma foi. Mas Hebe não sabe disso.
A coisa foi forte até para Dilma, que faz um reparo:
“Eu nunca fui nem, nem vereadora…”
Desculpe nossa falha. E a presidente nasceu em Minas e depois foi para Porto Alegre, por quê? Conheceu alguém?
“Conheci alguém”, eis outra revelação exclusiva que Hebe conseguiu tirar de sua entrevistada. “Meu ex-marido é gaúcho, então eu fui morar lá. Logo depois que eu saí da prisão, eu fui pra Porto Alegre.”
Como? Marido? Prisão? Até Hebe desconfiou de uma metáfora. Mas precisou tirar a prova:
“Saiu da prisão?”, choca-se Hebe, talvez já começando a achar que está entrevistando a pessoa errada.
“(…) Eu fui presa política no Brasil”, explica Dilma, pacientemente, para uma interlocutora incrédula e (c)amargamente desinformada.
“Gente do céu!”
“Ali no São Paulo, eu sempre passo ali pela avenida Tiradentes e olho, tem um portal, que eles dirrubaram, não sei se cê lembra, tinha um presídio Tiradentes, foi dirrubado pra fazer estação do metrô. Até tem um portal bonito, que é o portal antigo do presídio.”
Hebe rememora a incrível trajetória de Dilma: sai da prisão – só soube disso agora – e de repente se torna presidente da República.
“Cê já pensou em escrever um livro? Tem que escrever.”
Diante de mais essa pergunta descabida, Dilma dá a única resposta aproveitável da noite:
“Atualmente eu estou vivendo o livro”.
Taí: começo e fim, com uma ideia no meio, frase irrepreensível de Dilma Rousseff — a primeira que ouço em quase dois anos de audição obsessiva.
Quem disse que Hebe não conseguiria arrancar nada de Dilma?
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/

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