sexta-feira, 24 de junho de 2016

A GRANDEZA E A HUMILDADE - PARASHÁ BEHAALOTECHÁ 5776

"Duas gotas d'água conversavam sobre a vida. Uma delas era extremamente humilde, enquanto a outra era demasiadamente arrogante e orgulhosa. A gota arrogante se achava melhor que as outras gotas, e queria estar sempre por cima, em destaque, enquanto a gota humilde ficava tranquila e sabia seu lugar. A gota humilde se sentiu na obrigação de ajudar, e tentou ensinar para a gota orgulhosa:

- Escute bem o que eu vou te explicar. A verdadeira humildade é firme e segura. A humildade é a mais nobre de todas as virtudes, pois somente ela traz sabedoria. O contrário da humildade é o orgulho. O orgulhoso julga-se superior e esconde-se por trás da tola vaidade. Quando uma pessoa humilde comete um erro, ela diz: "me equivoquei", pois sua intenção é de aprender e crescer. Mas quando uma pessoa orgulhosa comete um erro, ela diz: "não foi minha culpa", pois acha que não está sujeita a erros. A pessoa humilde diz "gostaria de ser melhor do que sou" e respeita os que são superiores, enquanto o orgulhoso acha que já chegou ao seu máximo potencial e não respeita os superiores, pois acha que não há ninguém acima dele. A pessoa orgulhosa não aceita críticas, enquanto a humilde está sempre disposta a ouvir as opiniões e aprender com elas. Por isso, quem é humilde cresce sempre, mas quem é orgulhoso fica estagnado a vida inteira, preso na ilusão da sua falsa superioridade. O orgulho é o bloqueio que impede a evolução das pessoas, enquanto a humildade é a chave que abre as portas da perfeição...

A gota orgulhosa interrompeu o discurso da gota humilde com uma sonora gargalhada. Quem aquela gota pensava que era? Não estava interessada em aprender nada daquela gota inexpressiva. Mas o tempo passou e a gota humilde se transformou em um mar. O mar é imenso e poderoso, pois é humilde o bastante para se colocar alguns centímetros abaixo de todos os rios. Sabendo receber de todos, torna-se grande. Mas a gota arrogante, querendo estar sempre acima de todos, transformou-se em pequena poça d'água no alto de uma montanha, passando o resto da vida sozinha e isolada..."

"Humildade" vem do latim "humus", que significa "terra fértil, preparada para receber a semente". A pessoa humilde está sempre disposta a aprender e deixar brotar a boa semente no solo fértil da sua alma. "Humus" também é a raiz da palavra "homem", demonstrando que a essência verdadeira do ser humano é ser humilde. 
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Nesta semana lemos a Parashá Behaalotechá (literalmente "quando você acender"), que termina com um importante ensinamento. Moshé Rabeinu estava acima de todos os outros profetas e, por causa de seu nível espiritual, precisou tomar uma atitude dolorosa, mas que era o correto a se fazer. A irmã de Moshé, Miriam, que também era uma profetiza, não entendeu a diferença do nível de Moshé e dos outros profetas. Ela achou que o ato de Moshé havia sido exagerado e foi conversar com Aharon para discutir com ele sobre a decisão aparentemente equivocada de Moshé. Neste momento, D'us pessoalmente veio intervir, dando uma grande bronca em Miriam por ter falado mal de Moshé. D'us então explicou para Miriam e para Aharon que Moshé estava muito acima do nível dos outros profetas, a ponto de falar com D'us "face a face".

Porém, um pouco antes de D'us esclarecer a grandeza espiritual de Moshé e seu nível único, a Parashá traz um versículo que parece estar um pouco fora de contexto: "E o homem Moshé era mais humilde do que qualquer homem sobre a face da terra" (Bamidbar 12:3). Qual a conexão entre a humildade de Moshé e a sua grandeza espiritual, trazida nos próximos versículos? A mesma pergunta surge em relação a um ensinamento do Talmud (Meguilá 31a): "Em todo lugar que você encontra o poder de D'us, lá você também encontra a Sua humildade". Por que os nossos sábios juntaram os conceitos de grandeza espiritual e humildade?

Explica o Rav Yaacov Naiman zt"l (Bielorússia, 1909 - EUA, 2009) que a resposta está no entendimento mais profundo sobre as nossas "Midót" (traços de caráter). A humildade e todas as outras boas Midót são características naturais da nossa alma. Quando o ser humano foi criado, a Torá nos ensina que "D'us formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas a alma da vida" (Bereshit 2:7). Por que D'us soprou a alma dentro do ser humano, ao invés de colocá-la dentro de nós de outra maneira? O Zohar (parte mística da Torá) explica que "aquele que sopra, de si mesmo sopra", nos transmitindo a valiosa informação de que nossa alma é uma parte da própria Divindade. Isto significa que todas os bons traços de caráter são parte da natureza da nossa alma nobre. Portanto, quanto mais nos aproximamos da nossa alma, mais nos tornamos humildes.

Porém, se é algo tão natural ao ser humano ter boas características, por que vemos no mundo tantas pessoas arrogantes e prepotentes? Por que a humildade é a exceção? Pois, conforme descreve o versículo, D'us criou nosso corpo com o pó da terra, isto é, conectado com o materialismo, e soprou dentro de nós uma alma Divina. Isto cria o equilíbrio que permite ao ser humano ter livre arbítrio, que é a possibilidade de escolher entre nos inclinarmos para o lado do corpo ou para o lado da alma. Se a pessoa se conecta com a sua alma, ela vai se tornando cada vez mais humilde. Por outro lado, se a pessoa se conecta com o seu corpo, ela vai se tornando cada vez mais orgulhosa, pois a natureza do corpo é ser orgulhoso. Quanto mais a pessoa se afunda nas vanidades do materialismo e na busca por prazeres sem limites
, sua arrogância também vai aumentando.

Assim nos ensina o profeta: "Não se vanglorie o sábio por sua sabedoria, e não se vanglorie o forte por sua força, nem se vanglorie o rico por sua riqueza" (Yirmiahu 9:22). A sabedoria, a força e a riqueza representam o apego pelo materialismo, e são coisas que deixam a pessoa orgulhosa. Então o profeta conclui com as seguintes palavras: "Mas sim se vanglorie por Me entender e Me conhecer" (Yirmiahu 9:23), pois são coisas que representam a conexão com D'us e, portanto, trazem humildade ao ser humano.

Isto se aplica não apenas à humildade e ao orgulho, mas a todas as Midót. As Midót ruins não vêm da nossa alma, que é uma parcela Divina e não contém nenhum tipo de mal. A fonte de todas as Midót ruins é o corpo, que é turvo, e quanto mais a pessoa vive uma vida dependente dos prazeres materiais, mais ela é dominada pelas Midót ruins. Por outro lado, quanto mais o ser humano vive uma vida espiritual, se afastando da busca desenfreada pelos prazeres materiais, então ele passa a desenvolver naturalmente Midót boas. A alma vai de acordo com a sua natureza, e o corpo vai de acordo com a sua natureza. O que nos resta é escolher se vamos de acordo com a natureza da nossa alma, nos elevando espiritualmente e nos transformando em pessoas melhores, mais humildes e altruístas, ou se vamos de acordo com a natureza do nosso corpo, caindo espiritualmente e nos transformando em pessoas egoístas e orgulhosas.

Este conceito nos ajuda a entender um ensinamento enigmático dos nossos sábios. O Talmud (Eruvin 13b) afirma que por dois anos e meio os dois maiores centros de estudo de Torá do povo judeu, Beit Shamai e Beit Hilel, discutiram se era melhor para o ser humano ter sido criado ou não. Após a discussão, chegaram à conclusão de que era melhor para o ser humano não ter sido criado. Mas como entender esta conclusão dos nossos sábios? Explica o Rav Simcha Zissel Ziv Broida zt"l (Lituânia, 1824 - 1898), mais conhecido como Saba MiKelem, que como a conclusão foi "é melhor para o ser humano não ter sido criado",  então devemos viver como se não tivéssemos sido criados, isto é, com o mínimo de envolvimento na busca de prazeres mundanos supérfluos. Pois todos os sofrimentos que passamos aqui no mundo material são derivações e consequências das nossas Midót ruins. Por outro lado, não há prazer maior do que desenvolver Midót boas, como afirmou o mais sábio de todos os homens, Shlomo HaMelech (Rei Salomão): "Todos os dias de um homem pobre são miseráveis, mas quem tem um bom coração está sempre em alegria" (Mishlei 15:15).

Com este conceito podemos entender por que a Torá trouxe a humildade de Moshé junto com os versículos que falam sobre a sua grandeza espiritual e o quanto ele estava conectado com D'us. Quanto mais Moshé se elevava espiritualmente, maior era a sua humildade. Quando Moshé chegou ao seu ápice espiritual, a ponto de conversar com D'us "face a face", então a Torá ressalta que sua humildade também atingiu o seu ápice, pois as duas coisas andam juntas. Quando Moshé transformou sua existência material em espiritualidade, as boas Midót se conectaram definitivamente a ele.

Assim a Torá nos ordena a nos relacionarmos com D'us: "Você deve temer a D'us, servi-Lo, e unir-se a Ele" (Devarim 10:20). Mas como é possível unir-se a D'us, se Ele é como um fogo que consome? Nossos sábios explicam que unir-se a D'us significa unir-se às Suas Midót. Da mesma forma que Ele é misericordioso, então devemos ser misericordiosos. Da mesma forma que ele é gracioso com Suas criaturas, então devemos ser graciosos. Mas como é possível termos Midót boas como D'us, que é a Fonte de toda a perfeição? Isto somente é possível pois todas as boas Midót de D'us estão presentes em nossa alma. Tudo o que precisamos fazer é nos aproximarmos da nossa alma, e naturalmente nos conectaremos às nossas Midót boas.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 8:1-12:16, Zc 2:10 -4:7

domingo, 19 de junho de 2016

QUEM ESTÁ NO COMANDO? - PARASHAT NASSÓ 5776

José era um homem tranquilo, sempre de bom humor, e para ele tudo estava sempre bem. Mas não foi sempre assim, pois quando José era mais jovem, ele era extremamente crítico com tudo, e por isso estava sempre mal humorado. Qualquer coisa que interferisse em seus planos causava nele uma profunda irritação. Tudo mudou com uma conversa que ele teve com alguém que havia aprendido a ver a vida com outros olhos.

Certamente o mundo mudou após os atentados de 11 de setembro de 2001, no qual terroristas desviaram dois aviões comerciais americanos e os jogaram contra as Twin Towers, um dos mais famosos cartões postais dos Estados Unidos. As duas torres gigantescas, onde milhares de pessoas trabalhavam, pegaram fogo e desabaram diante dos olhos de um mundo pasmo e assustado. Além do abalo psicológico que os ataques causaram, demonstrando a fragilidade perante a ameaça terrorista, este atentado causou a perda de quase três mil vidas inocentes.

Mas a tragédia também despertou o lado bom de muitas pessoas. Durante e após os atentados, foram vistos muitos atos de bondade, ajuda mútua e solidariedade. Por exemplo, uma empresa disponibilizou parte dos seus escritórios para que pessoas que haviam sobrevivido aos atentados, mas que haviam perdido tudo, pudessem recomeçar seus negócios. Cada sobrevivente tinha alguma história incrível para contar sobre aquele dia fatídico. Roberto, o chefe de segurança desta empresa que abrigou os sobreviventes dos atentados, sempre gostava muito de conversar com as pessoas e escutar, com todos os detalhes, as suas histórias maravilhosas.

Certo dia, Roberto viu José tendo um ataque de fúria por causa de uma impressora que não funcionava. Ele precisava imprimir um documento importante, mas a impressora se recusava a funcionar como deveria. Completamente fora de si, José chegou ao ponto de socar a máquina diversas vezes. Ao ver aquela cena, Roberto convidou José para um café, e começou a contar as histórias de muitos sobreviventes dos atentados. Todas continham pequenos detalhes que fizeram toda a diferença entre a vida e a morte. O chefe de uma empresa chegou mais tarde naquele fatídico dia simplesmente porque aquele era o primeiro dia em que seu filho foi à escola. Uma mulher atrasou-se porque justamente naquele dia o despertador não tocou. Outra mulher ficou presa em um congestionamento. O funcionário de uma empresa havia chegado menos de um minuto atrasado ao ponto e perdeu seu ônibus. Uma mulher teve que trocar de roupa porque, na pressa de sair, derramou café em seu vestido. Um executivo teve dificuldade em fazer pegar o motor do carro. O filho de um empresário demorou para se levantar da cama, fazendo com que ele saísse de casa atrasado. Alguém teve que atender uma ligação urgente quando já estava na porta de casa, e por isso acabou se atrasando. E havia ainda muitas outras histórias, todas com pequenos contratempos que, no final das contas, haviam salvado a vida das pessoas envolvidas.

A partir daquele dia, José mudou sua forma de viver. Atualmente, quando ele se depara com um congestionamento, perde um elevador, atende uma ligação no momento em que já estava na porta de casa ou se atrasa por não conseguir imprimir um documento, pequenas coisas que antes o aborreciam demais, agora o fazem refletir: "Estou exatamente onde D'us quer que eu esteja neste momento".

Esta é uma importante lição para nossas vidas. Na próxima vez em que você sentir que "levantou com o pé esquerdo", naqueles dias em que tudo parece dar errado - seus filhos demoram para se vestir, você não se lembra onde deixou as chaves do carro, você pega todos os semáforos fechados no caminho ao trabalho - não se irrite nem se sinta frustrado. Agradeça a D'us por Ele estar cuidando de você. Nem sempre compreendemos a vontade de D'us, mas Ele sempre quer o melhor para nós. O difícil é saber ler nas entrelinhas da nossa vida. 
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Nesta semana lemos a Parashat Nassó (literalmente "conte"), que traz o assunto dos "Matanót Kehuná", os presentes que o povo judeu dava aos Cohanim (sacerdotes). Como os Cohanim se dedicavam apenas aos serviços espirituais do Templo, estes presentes eram a forma deles se sustentarem. Um dos exemplos de "Matanót Kehuná" era o "Maasser" (um décimo da produção do campo), que deveria ser separado e presenteado aos Cohanim. Logo depois a Parashat apresenta as leis de "Sotá", quando uma mulher despertava em seu marido uma suspeita de infidelidade e ficava momentaneamente proibida para ele até que a situação se esclarecesse. Para que o relacionamento pudesse voltar ao normal, a mulher precisava passar por uma "cerimônia" na qual fazia um juramento de inocência e bebia "águas amargas" preparadas pelo Cohen. Estas "águas amargas" comprovavam se ela havia sido realmente infiel ou não, pois caso nada acontecesse, era uma prova de que ela era inocente, mas se fosse culpada de adultério, as "águas amargas" causavam uma morte terrível e dolorosa para a mulher e para o adúltero.

Porém, sabemos que nada está escrito de maneira aleatória na Torá. Há um conceito chamado de "Smichut Parashiót" (proximidade de assuntos), que nos ensina que quando dois assuntos aparentemente desconectados estão escritos um após o outro na Torá, é para nos ensinar que há uma conexão entre eles. O Talmud (Brachót 63a) faz esta conexão e explica que quando uma pessoa se recusar a dar o "Maasser" da sua produção ao Cohen, a consequência é que sua esposa acabará sendo suspeita de infidelidade. Isto significa que aquele que não deu o "Maasser" ao Cohen acabará sendo forçado a ir ao Cohen para que ele realizasse a cerimônia das "águas amargas", que esclareceria se ele poderia ou não retomar seu relacionamento com sua esposa.

Porém, esta explicação do Talmud é difícil de ser entendida. O Rav Yehuda Loew zt"l (Polônia, 1525 - República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, faz um interessante questionamento. A aparente mensagem da Torá é uma advertência àquele que não aprecia e não honra o Cohen, sentimento que ele demonstra quando se recusa a dar ao Cohen seu "Maasser". D'us castiga a pessoa fazendo com que aquele que desprezou o Cohen necessite dos serviços do Cohen. Mas se esta é a mensagem, então por que isto ocorria envolvendo justamente as leis de "Sotá"? A mesma mensagem poderia ser transmitida através de uma série de outros serviços nos quais a presença de um Cohen era requerida, como a purificação de uma pessoa que estava contaminada com a doença espiritual de "Tzaráat"! Além disso, por que o ato do marido, de não entregar o "Maasser" para o Cohen, causa com que sua esposa seja suspeita de leviandade e indiscrição? Qual é a conexão entre as duas coisas?

A resposta está nos detalhes da explicação trazida pelo Talmud. Não está escrito que se trata de alguém que não separou o "Maasser" de sua produção, e sim de alguém que separou o "Maasser", porém se recusou a entregá-lo ao Cohen. Mas quem teria este tipo de atitude? Podemos entender a motivação de alguém que é mesquinho e egoísta, e que se recusa a separar o "Maasser" da sua produção por não querer dividir com os outros o que é seu. Porém, qual é a motivação desta pessoa que já separou o "Maasser" da sua produção, mas que se recusa a entregá-la ao Cohen?

Responde o Rav Yohanan Zweig que uma das piores características do ser humano é ser uma pessoa controladora e dominadora, que quer exercer seu poder e sua influência sobre todos à sua volta. Exatamente esta característica pode ser observada na pessoa que não deu seu "Maasser" ao Cohen, pois ele não está demonstrando ser mesquinho, já que separou o "Maasser" da sua produção, mas está demonstrando que é uma pessoa dominadora, que quer manter seu controle sobre o Cohen, e por isso não entrega para ele o "Maasser".

Quando a pessoa tem este tipo de atitude em relação ao Cohen, certamente também se comporta assim com as outras pessoas. Ao juntar o assunto dos "Matanót Kehuná" com o assunto de "Sotá", a Torá está nos ensinando que aquele que quer sempre exercer o controle sobre os outros provavelmente se relaciona com sua esposa da mesma maneira. E esta dominação do marido sobre a esposa pode causar dois tipos de consequência: ou a esposa pode acabar se rebelando contra seu marido, chegando ao absurdo de cometer um ato de infidelidade, ou o marido pode desenvolver um ciúmes tão doentio que chegará ao ponto de obrigar a própria esposa a beber as "águas amargas" apenas para tirar da cabeça suas suspeitas. Isto se comprova com a linguagem utilizada no versículo que inicia as leis de "Sotá": "Um homem um homem quando sua esposa se desviar" (Bamidbar 5:12). A Torá repete a linguagem "Ish", que significa "homem", demonstrando que o caso de "Sotá" pode acontecer quando o marido quer ser "homem demais", isto é, quando quer dominar e controlar sua esposa.

É interessante perceber que o castigo desta pessoa dominadora é "Midá Kenegued Midá" (medida por medida). Sua própria esposa, sobre quem ele quis exercer controle, se tornava proibida para ele, e o único que podia permitir que ele retomasse o relacionamento com ela era o Cohen. Isto fazia com que ele se defrontasse com a realidade de que, na verdade, ele não tinha controle sobre nenhum dos dois.

Esta característica de dominação não é algo que atrapalha apenas nos relacionamentos "Bein Adam LeHaveiró" (entre o homem e seu companheiro). A pessoa que quer sempre impor a sua vontade sobre os outros acaba, no final das contas, também fazendo isso com D'us. Por que ficamos tão bravos quando acontece algo diferente do que esperávamos? Por que reagimos com irritação quando as coisas não saem exatamente como havíamos planejado? Pois no fundo queremos que nossa vontade sempre se cumpra, e esquecemos que o mundo tem um Dono, que controla cada pequeno detalhe com Supervisão Particular. O Talmud (Shabat 105b) afirma que "alguém que rasga as suas roupas com raiva, quebra suas coisas ou espalha o seu dinheiro em uma crise de raiva é considerado como se tivesse feito idolatria". A perda de controle é uma demonstração de orgulho e prepotência, e a falta de humildade nos faz esquecer que não estamos no controle da situação.

D'us é Misericordioso, e tudo o que Ele faz é para o nosso bem. Mesmo quando as coisas parecem ser negativas, há alguma bondade escondida por trás. Sempre estamos vendo somente parte da história, e apenas D'us tem a visão completa. Portanto, apenas Ele sabe o que é realmente bom para nós. Por isso, quando nossos planos não saem como planejamos, precisamos ter a tranquilidade e a humildade de saber que, apesar da nossa vontade não ter se cumprido, a vontade de D'us se cumpriu.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 4:21-7::89, Jz. 13:2-25

sexta-feira, 10 de junho de 2016

PAZ ENTRE O MATERIAL E O ESPIRITUAL - SHAVUÓT 5776

O Rabi Elimelech de Lisensk era visto por todos como um homem muito justo e santo, com muito temor a D'us. Certa vez, um jovem quis visitar o Rabi Elimelech para observá-lo e aprender um pouco com a sua santidade. Porém, assim que chegou, se deparou com o Rabi Elimelech comendo uma maça. Aquela cena incomodou o jovem, pois a última coisa que ele esperava ver era aquele rabino tão elevado envolvido com atos mundanos. Ele ficou tão incomodado que o Rabi Elimelech conseguiu perceber isso em seu rosto. Então o Rebe Elimelech questionou o rapaz se estava tudo bem. Pego de surpresa, o jovem rapaz ficou envergonhado e confessou:

- Rabi Elimelech, vou ser muito sincero. Vim aqui para ver a sua santidade, mas quando cheguei você estava comendo uma maça, um simples ato mundano. Então eu me perguntei qual é a diferença entre eu e você...

Quando o Rabi Elimelech escutou o questionamento que incomodava o jovem rapaz, abriu um sorriso e apontou para a travessa de frutas que estava sobre a mesa. Ele perguntou ao rapaz se, quando tinha vontade de comer uma maça, ele fazia Brachá (bênção) antes de comê-la. O jovem rapaz não entendeu exatamente a intenção do rabino com aquela pergunta e respondeu que sempre fazia Brachót antes de ter proveito de qualquer alimento. O Rabi Elimelech então explicou:

- Todos os dias de manhã, quando eu acordo e faço Tefilá (reza), eu me conecto com D'us de uma maneira tão intensa que sinto a necessidade de abençoar o Seu Nome Sagrado. Porém, se eu simplesmente pronunciasse o Nome de D'us, seria uma grave transgressão. Então eu pego uma maça e faço uma Brachá, apenas para poder abençoar o Nome de D'us. Quando você acorda, você sente fome e quer comer uma maça. Porém, como é proibido ter proveito do mundo material sem pedir permissão para D'us, então antes de comer você pronuncia uma Brachá. Esta é a diferença entre eu e você...

Enquanto o jovem utilizava a maça apenas para satisfazer seus próprios desejos, o Rabi Elimelech usava a maça como um meio para conectar o material com o espiritual.
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Nesta semana lemos a Parashat Bamidbar (literalmente "No deserto"), que começa com a contagem do povo judeu. É o início do quarto livro da Torá, Bamidbar, que descreve muitos acontecimentos importantes dos 40 anos em que o povo judeu permaneceu no deserto, alguns que inclusive mudaram nossa história. Mas nada foi tão marcante e significativo para o povo judeu quanto a entrega da Torá no Monte Sinai. E no final do Shabat começamos a reviver a Festa de Shavuót, a data que marca justamente o aniversário da entrega da Torá ao povo judeu. Todas as Festas têm símbolos físicos que as identificam. Por exemplo, Sucót tem a Sucá e os Arba Minim (4 espécies), enquanto Pessach tem a Matzá. Mas qual é o símbolo da festa de Shavuót? Na realidade, como Shavuót representa a entrega da Torá, que é infinita e ilimitada, ela não pode ser representada por nenhum objeto físico.

Entretanto, há um ensinamento do Talmud que parece ser contraditório com o conceito da Festa de Shavuót ser tão espiritual. O Talmud (Pessachim 68b) traz uma divergência entre o Rebi Yehoshua e o Rebi Eliezer em relação a como uma pessoa deve se comportar nos Yamim Tovim. Rebi Yehoshua opina que a pessoa deve dedicar parte do seu tempo em seu desenvolvimento espiritual, mas o resto do tempo ela pode se dedicar a prazeres físicos. Já o Rabi Eliezer opina que é impossível a pessoa estar envolvida em espiritualidade e materialismo ao mesmo tempo, e por isso ela deve escolher focar apenas em um deles. A implicação prática da opinião do Rabi Eliezer é que no Yom Tov a pessoa deveria focar apenas em atividades espirituais, como estudar Torá e fazer Tefilá, e não se envolver com prazeres físicos, como comer e beber. Entretanto, o Talmud ressalta que em relação a Shavuót até mesmo o Rebi Eliezer concorda que a pessoa também deveria se envolver com comida e bebida. A razão trazida pelo Talmud é que neste dia a Torá foi entregue. Porém, se a festa de Shavuót é tão espiritual a ponto de não ter nem mesmo um símbolo físico que a representa, então por que justamente neste dia o Rabi Eliezer concorda que devemos nos ocupar também com prazeres físicos? E o motivo apontado pelo Talmud, "pois neste dia a Torá foi entregue", torna o entendimento ainda mais difícil. Este motivo pareceria mais apropriado se o Rabi Eliezer opinasse o contrário, isto é, que principalmente em Shavuót, um dia tão Sagrado e elevado, a pessoa deveria se dedicar completamente a atividades espirituais. Como entender a opinião aparentemente contraditória do Rabi Eliezer e o estranho motivo trazido pelo Talmud? Qual é a conexão entre a utilização de prazeres do mundo material e a Festa de Shavuót?

Explica o Rav Yehonasan Gefen que a chave para o entendimento destas questões é um ensinamento do Talmud (Shabat 88b), que descreve o que ocorreu após a Revelação de D'us no Monte Sinai. Moshé subiu ao Céu para aprender toda a Torá diretamente de D'us. Porém, os anjos se incomodaram com o atrevimento de um mero ser humano ter aparecido nas esferas celestiais superiores. Eles argumentaram que o ser humano não era merecedor de receber a Torá por causa de sua natureza física baixa, e que eram os anjos que deveriam receber a Torá. D'us instruiu Moshé a refutar o argumento dos anjos, e ele fez isso citando diversos aspectos e leis da Torá que são claramente voltados para os seres humanos. Por exemplo, a Torá nos proíbe de fazermos Melachót (algumas categorias de trabalho) no Shabat, proibição que obviamente não se aplica aos anjos, que não fazem Melachót em nenhum momento. O Talmud conclui afirmando que tanto D'us quanto os anjos aceitaram os argumentos de Moshé.

Porém, este ensinamento do Talmud precisa ser esclarecido. Como entender esta "vontade" dos anjos de receberem a Torá ao invés dos seres humanos? Certamente os anjos estavam cientes do conteúdo da Torá, e seguramente já haviam percebido que a Torá estava claramente direcionada aos seres humanos e não aos seres espirituais. Então como pode ser que eles esperavam receber a Torá?

O Rav Chaim Friedlander zt"l (Alemanha, 1923 - Israel, 1986) explica que a Torá pode ser entendida em muitos níveis, e o simples entendimento com o qual nos relacionamos com a Torá é apenas uma das formas de entendimento dela. Isto significa que a Torá também se aplica aos anjos em seu nível de existência. Por exemplo, certamente há um paralelo espiritual para a proibição de fazer Melachót no Shabat que se aplica aos anjos, e o mesmo vale para cada palavra da Torá. O que os anjos estavam argumentando é que a Torá deveria permanecer no Céu, onde eles poderiam aprendê-la em um nível muito mais profundo, não "manchada" pelo mundo material.

Mas se este foi o argumento dos anjos, o que Moshé respondeu para eles? Moshé refutou o argumento dos anjos dizendo que a Torá foi feita para ser entendida e aplicada em um nível físico, e não para ficar apenas em um plano espiritual. Ele comprovou seu argumento mencionando diversas Mitzvót que envolvem conceitos materiais, demonstrando que a Torá foi intencionalmente escrita de uma maneira que pudesse ser aplicada a seres físicos. Quando um ser humano consegue superar sua natureza física para cumprir a vontade de D'us, isso causa um aumento da "Honra de D'us" muito maior do que quando um ser puramente espiritual age de acordo com sua natureza. Portanto, Moshé provou para os anjos que, apesar da possibilidade da Torá ser aplicada a qualquer nível espiritual, os anjos não poderiam cumprir as Mitzvót da Torá de maneira que isto trouxesse o máximo nível de honra para D'us.

O Talmud nos ensina o quanto o corpo e o materialismo foram importantes no recebimento da Torá no Monte Sinai. O fato dos seres humanos estarem conectados ao mundo material foi, no final das contas, a razão pela qual nós tivemos o mérito de receber a Torá. Isto nos permite entender a conexão entre Shavuót e o foco em prazeres materiais. Shavuót é o dia em que o mundo espiritual e o mundo físico se combinaram no Har Sinai. Nesta ocasião especial e única, a Torá, que é completamente espiritual, foi vestida com roupas físicas para que pudéssemos nos elevar através do seu cumprimento.

É por isso que o Rabi Eliezer, apesar de opinar que nos outros Yamim Tovim devemos nos dedicar apenas ao espiritual, concorda que em Shavuót também devemos proporcionar prazeres ao nosso corpo. Em Shavuót nós devemos demonstrar um nível maior de gratidão ao nosso corpo, pois o corpo material foi justamente o que causou a vitória dos argumentos de Moshé sobre os argumentos dos anjos. No dia de Shavuót nós intencionalmente nos envolvemos com o mundo material, e comemos e bebemos com fartura e alegria.

Mas então por que o Rabi Eliezer não opina como Rabi Yeoshua, que nos outros Yamim Tovim nós também podemos fazer uma combinação entre o material e o espiritual? Explica o Rav Yehonasan Gefen que aparentemente o Rabi Eliezer opina que um foco excessivo no materialismo causa danos inevitáveis à nossa espiritualidade. Mas em Shavuót é diferente, pois há uma energia especial através da qual o materialismo e a espiritualidade não se contradizem e, ao contrário, podem trabalhar juntos para trazer uma revelação maior da Honra de D'us. O Rav Yehuda Loew zt"l (Polônia, 1525 - República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, faz uma observação interessante que se conecta com este conceito. Em todos os Yamim Tovim eram oferecidos, como Korbanót (sacrifícios) comunitários, o "Korban Olá" (sacrifício de elevação), cuja característica é o Korban ser completamente queimado sobre o Mizbeach (altar). A única exceção é Shavuót, quando o Korban comunitário era um "Korban Shelamim" (sacrifício de paz), que parte era queimado sobre o altar e parte podia ser consumido por quem havia oferecido o Korban. Isto demonstra que Shavuót é o dia em que há paz entre o material e o espiritual, entre os mundos superiores e os mundos inferiores.

Shavuót nos ensina sobre a conexão e a interação positiva entre o corpo e a alma. Esta lição pode ser aplicada para o resto do ano, pois através dos nossos esforços podemos elevar nossas atividades físicas mundanas a um nível espiritual. Mas não é uma tarefa fácil atingir o equilíbrio correto entre o material e o espiritual, pois há sempre o risco de nos envolvermos demasiadamente no mundo material e acabarmos buscando apenas a satisfação do corpo, sem canalizar os prazeres materiais para o lado espiritual. O Rav Avigdor Miller zt"l nos ensina uma maneira prática para evitarmos este tipo de armadilha. Ele sugere que, ao menos uma vez por dia, devemos fazer atos mundanos cotidianos com um esforço consciente de que este ato seja "LeShem Shamaim" (com motivações espirituais). Um exemplo prático é justamente em uma das áreas mais "atrativas", e justamente por isso mais difíceis de conseguirmos ter proveito com a intenção correta: a área alimentar. Pelo menos uma vez por dia a pessoa deve focar na sua alimentação com a única intenção de manter seu corpo forte e saudável para que ela possa fazer seu Serviço Divino, evitando neste ato comer apenas para satisfazer os seus desejos físicos mais básicos. O Rav Avigdor Miller nos garante que, através de pequenos esforços de autocontrole como este, a pessoa pode se elevar aos poucos e aprender a canalizar suas intenções em todos os atos mundanos, para que o mundo material se transforme, pouco a pouco, em espiritualidade e crescimento.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
NÚMEROS l:l – 4:20, Os 2:1-22
Chag HaShavuôt - Ex. 19:1-20:23

sexta-feira, 3 de junho de 2016

MUDANDO ATRAVÉS DA TORÁ - PARASHAT BECHUKOTAI 5776

Reb Pinchas era um Talmid Chacham (estudioso de Torá), e desde muito jovem já havia terminado todos os Tratados do Talmud (Torá Oral). Certo dia, chegaram aos seus ouvidos notícias sobre o Maguid de Mezeritch e seus incríveis ensinamentos. O Reb Pinchas se interessou em saber se o Maguid teria algo a acrescentar aos seus conhecimentos. Decidiu visitar o Maguid e preparou uma difícil questão talmúdica para testar sua erudição. Porém, após esperar horas na fila para falar com o Maguid, quando finalmente chegou a sua vez, não conseguiu nem abrir a boca. Assim que entrou na sala, o Maguid imediatamente lhe disse:

- Sugiro que você procure meu discípulo, o Reb Zusia. Certamente isso lhe trará muitos benefícios.

Reb Pinchas ficou profundamente decepcionado, pois aquela não era a experiência que ele havia imaginado. Mas mesmo assim decidiu procurar quem era o Reb Zusia. Quando chegou à casa dele, percebeu que o Reb Zusia não se parecia muito com um erudito de Torá. Partes do dia ele não estudava, apenas se sentava para recitar Tehilim (Salmos). Em um primeiro momento, o Reb Pinchas chegou a desprezar o Reb Zusia. Quando pediu a ele para que lhe ensinasse Torá, o Reb Zusia respondeu amavelmente que era incapaz de ensinar Torá para alguém tão erudito. No entanto, Reb Zusia tinha uma pergunta de Torá que talvez o Reb Pinchas pudesse ajudar a esclarecer. Pegou um volume do Talmud e, abrindo-o numa determinada página (Tratado de Brachót 47b), leu em voz alta: "Rav Huna disse: 'Nove podem combinar com um Aron Hakodesh (Arca Sagrada)'". O Talmud estava ensinando que, caso houvesse apenas nove judeus e fosse necessário um Minian (grupo de 10 judeus), o Aron Hakodesh poderia ser contado como a décima pessoa. O Talmud então pergunta: "Porém, o Aron Hakodesh é uma pessoa?" E, baseado neste questionamento, o Talmud reformula o ensinamento de uma maneira completamente diferente.

- Mas o Talmud não sabia, na hipótese levantada, que um Aron Hakodesh não é uma pessoa? - perguntou o Reb Zusia - Então o que o Talmud está querendo nos ensinar?"

Reb Pinchas nunca havia escutado uma pergunta tão estranha. Virou-se para ir embora, mas foi chamado de volta:

- Perdoe-me, mas acho que o Talmud está nos ensinando uma lição muito importante - disse o Reb Zusia - Um judeu não deve pensar que apenas por ser uma "Arca Sagrada ambulante", repleta de "Rolos da Torá", isso automaticamente faz dele uma "pessoa". Em outras palavras, o Talmud está nos ensinando que é possível que a pessoa seja um grande erudito e, mesmo assim, ainda não é garantido que tenha se tornado uma "pessoa".

- É isso que aprendemos aqui em Mezeritch - concluiu o Reb Zusia - a como usar a Torá para se tornar um "Mentsh" (gente). Não apenas a pessoa deve estudar Torá, mas a Torá deve ensiná-lo a ser uma "pessoa".

Reb Pinchas se envergonhou por sua arrogância. Compreendeu que, apesar de toda a Torá que conhecia, ainda faltava muito para se tornar "gente" de verdade.
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Na Parashat desta semana, Bechukotai (que literalmente significa "Meus decretos"), a Torá apresenta as condições necessárias para que D'us mande ao povo judeu paz e abundância: "Se vocês andarem com Meus decretos, e guardarem Meus mandamentos e cumpri-los" (Vayikrá 26:3). Isto significa que, quando cumprimos nossas obrigações e fazemos nossa parte, D'us faz a parte Dele e vivemos com tranquilidade. Na continuação da Parashat, a Torá traz as terríveis consequências de quando nos afastamos dos caminhos de D'us e abandonamos Suas Mitzvót.

Porém, deste versículo inicial da Parashat surge um questionamento: por que a Torá repete tantas vezes o mesmo conceito, dizendo que devemos andar com os decretos, guardar os mandamentos e cumprir os mandamentos? Estas três expressões não significam a mesma coisa? Explica Rashi que a primeira parte do versículo, "andar nos Meus decretos", não se refere ao cumprimento dos mandamentos, e sim à "amelut" no estudo da Torá. "Amelut" é mais do que simplesmente estudar Torá. "Amelut" é um nível de esforço e comprometimento muito maior, que envolve constância e dedicação. Já a segunda parte do versículo, "guardarem Meus mandamentos", está conectada com a primeira parte e refere-se à "amelut" na Torá com o propósito de guardar os seus mandamentos. A terceira parte, "e cumpri-los", refere-se ao cumprimento das Mitzvót na prática. Desta explicação de Rashi aprendemos que existem dois tipos de "amelut" na Torá: aquele que se esforça no estudo apenas pelo estudo, e aquele que se esforça no estudo para poder cumprir as Mitzvót.

Mas esta explicação de Rashi traz uma grande dificuldade de entendimento, pois implica que existe o conceito de "amelut" na Torá sem a intenção de realmente cumpri-la. Isto não parece ter muita lógica, pois o próprio conceito de "amelut" já sugere uma profunda apreciação da importância da Torá, ao ponto da pessoa estar disposta a um comprometimento e uma constância exemplares em busca do entendimento das palavras de D'us expressas na Torá. Podemos entender que alguém que estuda sem constância e sem seriedade pode estudar Torá sem a intenção de cumpri-la, pois sua forma descompromissada de estudo já demonstra o quanto a pessoa não entende o verdadeiro valor da Torá. Mas como entender alguém que verdadeiramente se esforça com constância e que estuda a Torá com "amelut" pode, ao mesmo tempo, não ter intenção de cumpri-la?

Uma pergunta semelhante surge quando analisamos um ensinamento que discute diferentes motivações pelas quais alguém estuda Torá: "Aquele que estuda com o intuito de ensinar, permitem que ele estude e ensine. E aquele que estuda com o intuito de cumprir, permitem que ele estude e ensine, guarde e cumpra" (Pirkei Avót 4:5). Os comentaristas explicam que "aquele que estuda com o intuito de cumprir" refere-se à pessoa que realmente deseja manter a Torá. Isto implica que "aquele que estuda com o intuito de ensinar" refere-se à pessoa que não tem intenção de cumprir as Mitzvót. Mas se este é realmente o caso, então por que D'us dá a esta pessoa o mérito de poder estudar e ensinar?

Responde o Rav Yehonasan Gefen que o conceito de "amelut na Torá sem a intenção de cumpri-la" não se refere a alguém que não tem interesse de cumprir as Mitzvót, e sim a alguém que não reconhece que a Torá que ele estuda deve mudá-lo internamente, em sua essência. Esta pessoa falha em fazer uma conexão entre seu estudo e seu serviço Divino diário. Ele certamente aprecia que o estudo da Torá é uma grande Mitzvá, mas não dá o próximo passo, que é perceber que a Torá que ele estuda deve influenciar e transformar seu comportamento em todos os aspectos da vida. Quando o Pirkei Avót diz sobre aquele que estudou para ensinar, trata-se certamente de alguém que também quer cumprir as Mitzvót, pois se não fosse assim, não mereceria o mérito de estudar e ensinar. A falha da pessoa é não estudar com o propósito de mudar a si mesma como ser humano e, por isso, a Torá acaba não tendo influência sobre suas ações cotidianas.

De acordo com o Rav Yehuda Arie Leib Alter zt"l (Polônia, 1847 - Alemanha, 1905), mais conhecido como Sfat Emet, é isto que pedimos todos os dias quando recitamos pela manhã o "Birkat HaTorá", a Brachá que pronunciamos uma vez por dia antes de estudarmos Torá. Nesta Brachá dizemos "D'us, adoce por favor as palavras da Sua Torá em nossas bocas". A palavra "adoce", em hebraico "Haarev", tem a mesma raiz da palavra "Erev", que significa "mistura". O que nós pedimos nesta Brachá é que a Torá, além de ser doce, também se misture à nossa essência e ao nosso ser, e não permaneça apenas como um conhecimento superficial.

Infelizmente não é incomum que as pessoas não consigam conectar o que elas estudam com suas vidas diárias. É por isso que nossos sábios sempre colocaram uma grande ênfase no fato que a Torá deve penetrar em nossa essência e afetar de maneira positiva nosso comportamento cotidiano. Por exemplo, o Rav Moshe Feinstein zt"l (Lituânia, 1895 - EUA, 1986) explicou que em muitos lugares o primeiro Tratado do Talmud estudado pelas crianças é "Baba Kama", que trata das leis de danos. Um dos motivos desta escolha é para inserir na criança, mesmo nas fases iniciais de sua vida, a sensibilidade com a propriedade dos outros. Isto significa que o propósito do estudo das crianças é muito mais abrangente do que simplesmente dar a elas conhecimento técnico, e engloba também transformá-las em pessoas mais pensantes, profundas e sensíveis com o próximo.

Este conceito, de permitir que a Torá mude a nós mesmos, não se limita apenas ao estudo de leis práticas. Nas Yeshivót (centros de estudo de Torá), por exemplo, na maior parte do tempo os estudantes estão se esforçando no estudo do Talmud, que não necessariamente foca em aprender o que fazer em situações práticas do cotidiano. Muitos ensinamentos do Talmud se referem a uma época em que ainda existia o Beit Hamikdash, e que não se aplicam mais atualmente. Mesmo assim, até o tipo de estudo que não pode ser aplicado na prática, se for abordado da forma correta, tem o poder de transformar a pessoa em um ser humano mais refinado. Devemos nos esforçar para, toda vez que aprendemos um novo ensinamento de Torá, refletir sobre o que é possível aprender em relação à forma como D'us olha o mundo, e tentar integrar esta atitude em nossa própria perspectiva de vida.

Nossa Parashat ensina o quanto é importante garantir que a Torá que nós trazemos ao nosso intelecto também alcance nossos corações, e isto deve transparecer em nossos atos e no nosso comportamento cotidiano. O primeiro estágio para termos sucesso nesta tarefa é simplesmente reconhecer que a Torá que estudamos deve nos transformar em pessoas diferentes, e o segundo estágio é parar para refletir e perceber se isto está ocorrendo na prática. Como aquele estudante de Torá que, após estudar dia e noite, terminou todos os Tratados do Talmud. Ele então comentou com o seu rabino: "Já passei por todo o Talmud". O rabino respondeu: "O que eu quero saber não é se você passou por todo o Talmud, e sim se todo o Talmud passou por você".
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Lv 26:3-27:34