sábado, 26 de novembro de 2016

ENSINANDO COM EXEMPLOS - PARASHÁ CHAIEI SARÁ 5777

"O Rav Shalom Schwadron zt"l (Israel, 1912-1997) estudou em sua juventude na Yeshivá de Chevron. Infelizmente muitos judeus naquela época estavam afastados da Torá e cometiam transgressões por desconhecimento. Como na época ainda não havia máquinas de barbear, as pessoas iam até a barbearia para fazer a barba com navalha, uma grave transgressão da Torá. Os alunos da Yeshivá de Chevron decidiram fazer um revezamento, de forma que todos os dias algum estudante de Torá ficava na porta da barbearia orientando os judeus que não sabiam da proibição.

Certa vez era o turno do Rav Shalom. Ele estava na porta da barbearia quando viu um senhor judeu entrando. O Rav Shalom chamou-o e, educadamente, explicou a gravidade de fazer a barba com navalha, comparável à transgressão de comer cinco vezes carne de porco. O senhor ficou muito agradecido pelos esclarecimentos, aceitou não entrar na barbearia e foi embora. Porém, quando foi novamente turno do Rav Shalom, ele viu aquele mesmo senhor novamente entrando na barbearia. Curioso, o Rav Shalom questionou delicadamente se não havia ficado clara a explicação sobre a gravidade de fazer a barba com navalha. O senhor então respondeu para ele:

- A verdade é que ficou bem claro quando conversamos. Porém, no primeiro Shabat após a nossa conversa, quando eu fui à sinagoga, percebi que haviam afixado uma folha explicando sobre a proibição de fazer a barba com navalha. Ao lado desta folha havia outro papel afixado, ressaltando a grave proibição de conversar durante a Tefilá (reza). Mas eu percebi, durante toda a Tefilá, que muitas pessoas conversavam despreocupadamente. Então entendi que, se conversar durante a Tefilá não é algo tão grave, então fazer a barba com navalha também não deve ser tão grave..."

Explica o Rav Shlomo Levenstein Shlita que através de cada ato que fazemos estamos sendo exemplos para os outros. Pessoas corretas se tornam bons modelos e aproximam os outros do caminho correto, mas pessoas não corretas se tornam péssimos modelos e podem desviar pessoas do caminho correto. 
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Um dos pontos centrais da Parashá desta semana, Chaiei Sará (literalmente "A vida de Sara"), é o casamento de Ytzchak com Rivka. Após quase ter sacrificado Ytzchak, Avraham se preocupou que seu filho ainda não havia se casado e poderia ter deixado o mundo sem nenhum descendente. Avraham então decidiu procurar para Ytzchak uma esposa, mas como eles viviam entre os Knanim, um povo que havia sido amaldiçoado desde a época de Noach (Noé), Avraham não queria casar seu filho com uma mulher de lá. Por outro lado, após Ytzchak ter sido elevado sobre o altar como um Korban (sacrifício) para D'us, ele ganhou um novo status de santidade e não podia mais sair de Israel, uma terra que também tem mais santidade. Então como ele se casaria? Avraham mandou seu fiel escravo Eliezer para sua terra natal, para a casa de seus parentes, com a missão de trazer de lá uma esposa para seu filho.

Eliezer sentiu o peso da responsabilidade de sua importante missão. Procurar uma esposa adequada a alguém em um nível tão elevado quanto Ytzchak não era algo simples. Mas ele aceitou o desafio e rezou muito para ter sucesso em sua missão. D'us escutou suas rezas e o guiou, com Hashgachá Pratid (Supervisão Particular), até ele encontrar Rivka, uma Tzadeket (mulher justa) com excelentes traços de caráter. Eliezer sentou-se para conversar com os pais e com o irmão de Rivka e, para convencê-los a deixá-la partir para se casar com Ytzchak, descreveu todos os detalhes que deixavam claro que a "mão de D'us" estava por trás dos acontecimentos. A família de Rivka concordou e ela foi para a terra de Israel casar-se com Ytzchak e transformar-se em uma das nossas matriarcas.

Normalmente a Torá é muito sucinta. Inclusive, muitos ensinamentos são aprendidos de maneira indireta, apenas através de indicações na Torá. Mas prestando atenção nesta Parashá, percebemos que a Torá se alongou de maneira incomum quando descreveu cada detalhe dos atos de Eliezer. Além disso, ao invés da Torá simplesmente dizer que Eliezer contou tudo o que aconteceu para a família de Rivka, a Torá se alonga escrevendo toda a conversa e repetindo todos os detalhes. Entenderíamos se a Torá se alongasse assim para descrever os atos dos patriarcas, mas por que se alongar tanto nos atos de Eliezer, um simples escravo de Avraham?

Segundo Rashi (França, 1040 - 1105), a repetição e o detalhamento da história de Eliezer, algo que foge da forma compacta da Torá, são para nos ensinar que, aos olhos de D'us, é melhor a conversa de um escravo dos patriarcas do que a Torá dos seus descendentes. Mas o que Rashi quis dizer com isso? O há de tão especial para aprendermos de Eliezer que justificaria estas "palavras a mais" da Parashá?

Explica o Rav Aharon Kotler zt"l (Bielorússia, 1891 - EUA 1962) que no Monte Sinai foram entregues a Moshé, e posteriormente transmitidas aos sábios do povo judeu, muitas leis e regras de como estudar cada palavra da Torá, além de muitos segredos contidos nela. Na realidade, para ensinar Halachót (Leis judaicas), em geral não há necessidade de se alongar muito. Porém, o mesmo não acontece em relação às nossas Midót (traços de caráter) e o Derech Eretz (comportamento), que não são tão fixos e bem definidos como as Halachót, e muitas vezes dependem da situação, do momento e de sentimentos do coração envolvidos. Então como fazer para aprender sobre Midót e Derech Eretz? A melhor maneira é estarmos próximos dos sábios e aprender diretamente observando os atos deles. Apesar de ser muito importante o estudo de livros que nos ensinam sobre Midót e Derech Eretz, além de um direcionamento e acompanhamento constantes de um rabino que possa nos orientar, nestas áreas o melhor aprendizado é através dos exemplos.

Se prestarmos atenção no livro de Bereshit, o primeiro dos cinco livros da Torá, praticamente não encontraremos ensinamentos de Mitzvót. Na Parashá Bereshit, D'us nos deu a primeira Mitzvá, de "Pru Urvu" (crescer e multiplicar); na Parashá Noach, D'us nos ensinou a Mitzvá de Brit-Milá (circuncisão); e na Parashá Vayerá, D'us nos ensinou a Mitzvá de "Guid Hanashê" (proibição de comer o nervo ciático). Isto significa que, das 613 Mitzvót da Torá, o Livro de Bereshit inteiro nos ensina apenas três Mitzvót! Então por que este livro é tão importante? Justamente por nos ensinar os fundamentos das Midót e do Derech Eretz através do exemplo prático dos patriarcas.

Com este ensinamento podemos entender o motivo da Parashá se alongar tanto. Apesar de Eliezer ser um escravo, ele não era uma pessoa simples. Era um homem extremamente sábio e íntegro, e sua convivência com Avraham transformou-o em um "Mentch" (ser humano descente). Portanto, do comportamento de Eliezer, e de todos os detalhes de como ele procurou e encontrou Rivka, podemos aprender muito. Por exemplo, quando Eliezer foi procurar uma esposa para Ytzchak, ele focou nos traços de caráter, procurando alguém com boas Midót e com bondade no coração, ao invés de se preocupar se a moça vinha de alguma família importante e influente. Além disso, também aprendemos muito da incrível confiança de Eliezer na Providência Divina e a certeza de que todo sucesso está apenas nas mãos de D'us. Porém, talvez o que mais nos chama a atenção no comportamento de Eliezer é a forma como ele se apresentou à família de Rivka. Ele poderia ter dito que era o "camareiro chefe" de Avraham, um posto comum entre os reis e pessoas importantes da época. Ele poderia ter contado que era o homem de confiança de Avraham, a pessoa a quem Avraham confiava sua casa e seus bens. Ele poderia ter contado que, por sua integridade e sabedoria, D'us havia feito um milagre e o longo caminho de viagem à casa dos parentes de Avraham havia sido encurtado. Mas Eliezer preferiu se apresentar como "Eu sou o escravo de Avraham" (Bereshit 24:34). Não por medo que depois as pessoas descobririam que ele era um escravo, e sim por sua incrível humildade.

Também prestando atenção nos atos de Rivka aprendemos muito sobre Midót e Derech Eretz. Quando Eliezer foi escolher uma esposa para Ytzchak, ele parou ao lado de um poço de água e fez uma condição para escolher a mulher que estaria apta a se casar com alguém no nível de Ytzchak: "E será, a jovem para quem eu disser 'baixe o seu jarro e eu beberei', e ela disser 'beba, e eu também darei de beber aos seus camelos', esta Você terá designado para Seu servo, para Ytzchak" (Bereshit 24:14). Porém, Rivka fez ainda mais bondade do que Eliezer tinha imaginado. Ela primeiro ofereceu água a Eliezer, mas somente quando ele havia terminado de beber foi que ela também ofereceu água aos camelos. Por que? Em primeiro lugar, pois os Tzadikim falam pouco e fazem muito. Portanto, não era apropriado prometer muitas coisas antes de fazê-las. Além disso, às vezes a pessoa se sente desconfortável ao receber muitas bondades. Rivka foi oferecendo a bondade aos poucos, uma bondade de cada vez, para que Eliezer não se sentisse desconfortável. Todos estes detalhes, que deixam a Parashá longa e "fora dos padrões", foram planejados e escritos por D'us justamente para nos ensinar as Halachót de Derech Eretz.

É muito importante aprender sobre Midót e Derech Eretz, pois através desta sabedoria podemos fazer muito Kidush Hashem (Santificar o Nome de D'us), enquanto a falta desta sabedoria pode causar muito Chilul Hashem (Denegrir o Nome de D'us). Estamos sempre na "vitrine", sendo observados e analisados pelas outras pessoas. Somos exemplos de conduta e podemos influenciar, positivamente ou negativamente, o comportamento dos outros. Uma pessoa que chega pontualmente na Tefilá incentiva os outros a também chegarem pontualmente, mas alguém que sempre chega atrasado incentiva os outros a também atrasarem. Uma pessoa que se cuida de não falar Lashon Hará (falar de forma negativa sobre os outros) influencia outras pessoas a não falarem Lashon Hará, mas a pessoa que não se cuida e frequentemente fala Lashon Hará influencia outros a seguirem seus maus atos.

De acordo com o Rav Aharon Kotler, se a pessoa não se educa a ter Derech Eretz, se não se ocupa constantemente com o estudo da Torá para aprender a como se comportar, se não se incomoda com o impacto negativo de seus maus comportamentos, provavelmente está constantemente fazendo Chilul Hashem. Mas aquele que aprende com os exemplos dos nossos sábios, que sempre se esforça para ser uma pessoa melhor, que estuda Torá e utiliza na prática os conhecimentos adquiridos, certamente se tornará, como Eliezer, um modelo positivo para as futuras gerações.
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

Gn.23:1-25:18, 1Rs.1:1-31, 1

sábado, 19 de novembro de 2016

BONDADE SEM EGOÍSMO - PARASHÁ VAYERÁ 5777

Era um dia difícil no hospital. Havia muitos doentes internados, alguns em estado grave, e o trabalho era muito intenso. Mas o que mais preocupava Sofia, uma sobrecarregada enfermeira, era um senhor de idade avançada que estava com uma grave pneumonia. Sofia viu um rapaz entrar no quarto. Certamente deveria ser o filho daquele senhor, que havia vindo ficar com ele nos seus últimos momentos. Ela inclinou-se e disse ao idoso paciente: "Seu filho está aqui". Com grande esforço o homem abriu os olhos, mas logo em seguida fechou-os novamente e estendeu a mão. O rapaz imediatamente segurou a mão dele e sentou-se ao lado da sua cama. Por toda a noite, o rapaz ficou ali sentado, segurando a mão daquele senhor e sussurrando palavras de conforto. Infelizmente, o paciente não aguentou e faleceu logo pela manhã. Em instantes, a equipe de funcionários do hospital chegou ao quarto para desligar os equipamentos. A enfermeira então se aproximou do rapaz e começou a oferecer-lhe as condolências, mas foi interrompida:

- Quem era esse homem? - perguntou o rapaz.

- Como assim, que era este homem? Não era o seu pai? - questionou a enfermeira, assustada.

- Não. Não era meu pai. Eu nunca vi este homem antes na minha vida - explicou o rapaz - Eu estava aqui no hospital apenas procurando o quarto onde meu primo está internado, pois queria fazer-lhe uma visita.

- Então, porque você não falou nada quando eu anunciei para ele que seu filho havia chegado? - perguntou a enfermeira, sem entender.

O rapaz, com um triste sorriso no rosto, deu à enfermeira uma das maiores lições de bondade que ela recebeu na vida:

- Pois percebi que ele precisava do filho, mas o filho não estava aqui. Como ele estava doente demais para reconhecer que eu não era seu filho, entendi que naquela hora ele precisava de mim. Ninguém precisa morrer sozinho, por isso eu fiquei... 
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Na Parashá desta semana, Vayerá (literalmente "E apareceu"), a Torá começa a ressaltar um dos atributos no qual Avraham Avinu mais se destacou: o Chessed (bondade). Avraham é o "patriarca da bondade". Ele tinha uma tenda aberta nas quatro direções, para que qualquer viajante que passasse por sua tenda pudesse entrar e receber água, comida e um local agradável para descansar. E a Parashá começa justamente com a visita de três anjos, mas que pareciam apenas simples beduínos, à tenda de Avraham. A Torá então "gasta" muitos versículos para descrever, com detalhes, a maneira como Avraham cumpriu a Mitzvá de "Achnassat Orchim" (receber convidados), justamente para que, através de uma análise cuidadosa dos atos de Avraham, possamos aprender o que D'us exige de nós na área de bondade ao próximo.

Porém, na continuação da Parashá, a Torá também se alonga muito nos atos de Chessed feitos por Lót, o sobrinho de Avraham. Lót também recebeu em sua casa dois dos "beduínos" que visitaram Avraham. Mas sabemos que Lót não era uma pessoa de boa índole, tanto que escolheu viver em Sdom, uma cidade de pessoas egoístas e imorais. Então por que a Torá se alongou ao descrever os atos de bondade de Lót como fez com os atos de Avraham? O que podemos aprender dos atos de Lót que ainda não havíamos aprendido dos atos de Avraham?

O entendimento fica ainda mais difícil quando prestamos atenção nos detalhes. Enquanto Avraham recebeu seus convidados apenas quando eles chegaram à porta de sua casa, como está escrito: "E ele (Avraham) estava sentado na entrada da tenda" (Bereshit 18:1), Lót foi receber seus convidados no portão da cidade, como está escrito: "E Lót estava sentado no portão de Sdom" (Bereshit 19:1). Enquanto Avraham ofereceu apenas uma simples refeição aos seus convidados, como está escrito: "E eu pegarei um pedaço de pão para sustentar o coração de vocês" (Bereshit 18:5), Lót preparou um verdadeiro banquete, como está escrito: "E (Lót) fez para eles um banquete" (Bereshit 19:3). Enquanto Avraham ofereceu a eles a sombra de uma árvore para que descansassem, como está escrito: "E se reclinem sob a árvore" (Bereshit 18:4), Lót ofereceu a eles hospedagem completa, para que pudessem passar a noite, como está escrito: "Voltem, por favor, para a casa de seu servo e passem a noite" (Bereshit 19:2). Enquanto Avraham acolheu seus convidados mesmo enquanto estava sentindo as terríveis dores do seu Brit-Milá (circuncisão), Lót chegou ainda mais longe, arriscando a sua vida e a vida de sua família para poder acolher seus convidados, pois em Sdom havia pena de morte para qualquer demonstração de bondade com pessoas de fora.

É interessante perceber que, em relação à forma de receber os convidados, aparentemente Lót se esforçava muito mais do que Avraham para ser agradável e hospitaleiro. Se a intenção da Parashá era ressaltar o enorme nível de bondade de Avraham, então por que a Torá descreveu logo depois os atos de bondade de Lót, de maneira a até mesmo "ofuscar" toda a bondade de Avraham? E se as bondades de Lót foram realmente maiores do que as de Avraham, por que Avraham é considerado o nosso modelo de Chessed, e não Lót?

Explica o Rav Yohanan Zweig que qualquer ato de Chessed normalmente vem junto com um sentimento de vergonha. Em geral, aquele que recebe a bondade sente um desconforto, pois ninguém gosta de se sentir dependente de outra pessoa. Então como o benfeitor pode superar este obstáculo e fazer uma bondade completa?

David Hamelech (Rei David) nos ensina: "Para sempre será construído com Chessed" (Tehilim 89:3). Mas a palavra "Olam", que significa "para sempre", também significa "mundo". Isto quer dizer que o mundo foi criado com Chessed e, se observamos os atos da Criação, aprenderemos a forma correta de fazer bondade. Na Criação do mundo, D'us começou a partir do caos e foi organizando todos os tipos de criaturas, desde os objetos inanimados, passando pelas árvores, pelas pequenas criaturas aquáticas, pelos grandes animais e finalmente chegando à criação do primeiro ser humano, Adam Harishon. Mas se Adam era o propósito de toda Criação, por que ele foi criado por último? Pois D'us queria ensiná-lo que tudo o que foi criado era apenas para seu uso e seu benefício. Porém, não seria melhor criar primeiro Adam Harishon e depois criar o mundo inteiro diante dele, ressaltando ainda mais a bondade que D'us estava fazendo com ele? Por que criar tudo e apenas depois colocar Adam em um cenário já pronto?

A resposta é que se Adam tivesse sido criado antes de tudo, ele teria visto claramente que todo o universo foi criado especificamente para ele, o que causaria nele vergonha e desconforto. Por isso D'us criou primeiro o mundo e tudo o que era necessário para a sobrevivência de Adam, e somente depois o criou. Desta maneira, D'us minimizou a percepção da ajuda direta que Ele estava dando a Adam e, portanto, diminuiu o sentimento de dependência e desconforto.

Quando fazemos bondades, devemos nos assemelhar a D'us, a Fonte de toda a bondade. D'us é a bondade perfeita, pois Ele não precisa de nada e não há nada que podemos oferecer a Ele. Portanto, quando Ele faz bondades, é um ato perfeito de doação, sem receber nada em troca. Da mesma maneira, devemos diminuir naquele que está recebendo a bondade a percepção da nossa participação neste ato. Isto permite com que aquele que recebe a bondade não se sinta endividado. Não devemos ressaltar e enfatizar o "peso" que um convidado nos causa, pois quanto menos o convidado sente que estamos fazendo algo especial para ele, mais confortável se sente.

Infelizmente, a maioria das bondades que fazemos não está de acordo com esta perspectiva correta. Normalmente, quando fazemos Chessed, nos sentimos pessoalmente preenchidos em sermos os benfeitores. Quanto mais enfatizamos a nossa participação no ato de bondade, maior a nossa satisfação. Porém, este tipo de Chessed é, na verdade, servir a si mesmo, não servir o outro. Quando pensamos somente no nosso bem estar e na nossa satisfação ao fazer uma bondade, estamos certamente negligenciando o sentimento daquele que recebe.

Portanto, daqui aprendemos que existem dois tipos de Chessed, um movido pela vontade sincera de ajudar ao próximo e outro movido pela vontade de se sentir preenchido. A Torá quis contrastar justamente estes dois tipos de bondade. Avraham fazia atos de Chessed que se assemelhavam aos atos de D'us. Ele sempre se esforçava para diminuir a demonstração do "peso" que os convidados causavam a ele, oferecendo somente o que já havia pronto, como a sombra e o pão. Somente quando os convidados já estavam mais confortáveis, já se sentiam "em casa", ele aumentava o que era oferecido. No início ele ofereceu apenas um pouco de pão, mas acabou servindo língua com mostarda, uma comida de reis. A consequência é que aquele que recebia bondades de Avraham se sentia completamente confortável.

Por outro lado, podemos perceber que o Chessed de Lót era, na verdade, um ato egoísta. Lót preparou para os "beduínos" um banquete, utilizando suas melhores louças e seus talheres de prata, pois isto lhe dava satisfação. Isto também explica como Lót pôde ter oferecido à população enfurecida, que queria fazer mal aos seus convidados, as suas próprias filhas. Nenhuma pessoa bondosa normal teria este tipo de comportamento abominável! Entretanto, Lót fez isto porque queria que sua hospitalidade refletisse sua própria generosidade e grandeza espiritual. Esta era a verdadeira motivação para suas bondades, o egoísmo e a vontade de mostrar aos outros a sua generosidade. Isto é enfatizado pela forma como Lót suplicou aos habitantes de Sdom para que não fizessem mal aos seus convidados: "Eles estão sob a sobra do meu telhado" (Bereshit 19:8). Estas palavras deixam claro que a única preocupação de Lót era como o bem estar de seus convidados refletiria sobre sua reputação. Foi por isso que, quando ele ofereceu aos convidados hospedagem, eles reagiram de uma maneira grosseira e responderam: "Não, dormiremos na rua" (Bereshit 19:2). Provavelmente quando Lót ofereceu a eles ajuda, estava apenas querendo enfatizar e ressaltar sua própria generosidade e sua grandeza de espírito. Isto causou nos convidados uma resposta agressiva, que era reflexo do desconforto causado.

A Torá recorda o Chessed de Lót junto com o Chessed de Avraham, mas não para ofuscar os atos de Avraham, e sim para ressaltar o valor de um Chessed feito com motivações verdadeiras. Um dos fatores mais importantes para um Chessed verdadeiro e completo é minimizar o desconforto de quem recebe. Mesmo que os atos de Lót foram maiores do que os de Avraham, eles foram feitos com motivações egoístas, com o único propósito de se engrandecer aos olhos dos outros e se sentir satisfeito com seus próprios bons atos, e por isso causaram desconforto. Avraham fazia atos mais simples justamente por serem bondades verdadeiras e com o intuito de minimizar a percepção de que ele estava fazendo algo especial pelos convidados. Este deve ser o nosso modelo de bondades e assim devemos tentar nos comportar. Pois, aos olhos de D'us, um pequeno bom ato feito com recato e com as motivações corretas é muito maior do que um grande ato feito com egoísmo e orgulho.
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
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Gn.18:1-22:24, 2Rs. 4:1-37

sábado, 12 de novembro de 2016

ENXERGANDO O QUADRO COMPLETO - PARASHÁ LECH LECHÁ 5777

Amy Carmichael nasceu em uma pequena vila na Irlanda do Norte. Era a mais velha de sete filhos. Todos na casa de Amy tinham olhos azuis. Todos, menos Amy. O sonho dela era ter olhos azuis como o mar. Certo dia ela escutou que D'us responde a todas as rezas e passou o dia todo pensando nisso. À noite, na hora de dormir, ela rezou muito. Pediu que, quando acordasse, tivesse olhos azuis como os de sua mãe. Ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa que Amy fez foi correr para o espelho. Mas, para seu desapontamento, viu que seus olhos continuavam castanhos. Sua mãe veio consolá-la e ensinou-lhe que D'us escuta todas as rezas, mas o "não" também é uma resposta, pois somente Ele sabe o que é o melhor para nós. Amy não entendia por que D'us não atendeu sua reza, mas confiava Nele.

Amy cresceu e estava sempre ajudando as pessoas, mas era uma candidata improvável para trabalhos de caridade, pois sofria de neuralgia, uma doença dos nervos que deixava seu corpo fraco, dolorido e que a deixava de cama por semanas. Mesmo assim Amy foi trabalhar na Índia. Havia escutado que famílias pobres, em momentos de desespero, vendiam seus filhos para a prostituição forçada. Amy começou a trabalhar ativamente para "comprar" estas crianças e dar a elas uma vida digna.

Para poder circular na Índia e comprar crianças sem ser reconhecida como estrangeira, Amy precisou se disfarçar de indiana. Ela passava pó de café para escurecer sua pele, cobria os cabelos e se vestia como as mulheres locais. Assim, ela podia entrar e sair livremente nos locais de venda de crianças sem chamar a atenção de ninguém. Um dia, uma amiga olhou para ela disfarçada e disse:

- Puxa, Amy, você já pensou como seria difícil você se disfarçar se tivesse olhos azuis como sua família?

Naquele momento Amy entendeu a grandeza de D'us. Ele havia lhe dado olhos bem escuros, pois sabia que isto seria essencial para a sua missão de vida.

Amy montou uma instituição chamada "Dohnavur Fellowship", situada em Tamil Nadu, no sul da Índia. O local tornou-se um orfanato que abrigou e salvou centenas, talvez milhares, de crianças "compradas", dando a elas um futuro. Amy Carmichael morreu na Índia, em 1951, aos 83 anos de idade. (História real) 
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Nesta semana lemos a Parashá Lech Lechá (literalmente "Vá para você"), que começa a descrever a vida de uma das pessoas mais incríveis que já passaram pela face da Terra: Avraham Avinu, o nosso patriarca que trouxe o monoteísmo de volta ao mundo depois de muitas gerações de idolatria e esquecimento de D'us. Avraham era uma pessoa com um gigantesco potencial, e D'us transformou este potencial em realização através de 10 testes que ele passou em sua vida. Após cada teste que Avraham conseguia superar, ele crescia espiritualmente em uma nova área e conseguia se aproximar um pouco mais da perfeição.

Sabemos que Avraham nos deixou ensinamentos preciosos. Porém, para aprender mais de Avraham, precisamos entender exatamente quais foram os testes pelos quais ele passou. Muitas vezes olhamos os testes de maneira superficial e acabamos perdendo a lição principal. Um exemplo é o segundo teste descrito nesta Parashá: "Houve uma fome na terra, e Avram desceu para o Egito para morar lá, pois a fome era muito severa na terra" (Bereshit 12:10). Aparentemente o teste foi passar pela dificuldade da fome e a necessidade de se mudar para conseguir seu sustento sem nenhum tipo de questionamento.

Mas para entender de forma mais profunda qual foi exatamente o teste de Avraham, precisamos perceber o contexto no qual este teste aconteceu. A Parashá começa descrevendo o teste de "Lech Lechá", no qual Avraham precisou abandonar a sua casa, sua comodidade e sua "zona de conforto" para ir a uma terra estranha, na qual ele não sabia o que encontraria. Na verdade, Avraham não sabia nem mesmo para onde iria, pois D'us ainda não havia revelado. Mesmo assim, sem nenhum questionamento, ele abandonou sua nação, seus amigos e sua família e iniciou sua jornada, passando com louvor pelo difícil teste. Mas ainda não era o momento de Avraham descansar. Logo que ele chegou em Israel, o objetivo que D'us havia definido para sua viagem, houve uma grande fome que o obrigou a ir ao Egito.

De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), o teste não foi a fome propriamente dita. O desafio foi não questionar a vontade de D'us, pois Ele havia ordenado a Avraham abandonar tudo e ir para Israel, mas assim que Avraham chegou lá, D'us fez com que tivesse que ir embora. Avraham sabia que, se D'us havia pedido para que ele fosse para Israel, era para que ele pudesse atingir seu potencial espiritual. Porém, agora que ele havia acabado de chegar ao seu objetivo, ao lugar onde poderia crescer, ele se deparou com um obstáculo e foi obrigado a ir ao Egito, uma atitude que aparentemente contradizia todo o propósito da sua missão na vida. Apesar de Avraham acreditar que seu objetivo era estar em Israel, ele se viu obrigado a sair assim que chegou. Ele poderia ter questionado os motivos pelos quais ele havia sido forçado a abandonar seu objetivo espiritual.

Explica o Rav Yehonasan Gefen que, apesar das dificuldades, Avraham não se sentiu frustrado nem questionou D'us. Ele reconheceu que não havia entendido completamente como sua jornada de "Lech Lechá" deveria ocorrer, pois sabia claramente que tudo está nas mãos de D'us, cuja sabedoria é infinita. Avraham fez a sua parte, se esforçou, mas aceitou que tudo o que estava além do seu controle era a Vontade de D'us e, por isso, não havia nenhum motivo para desanimar. Ele sabia que a fome não era por "causas naturais", era um decreto que vinha diretamente de D'us, então seguramente havia explicação, havia alguma lógica no Plano Divino.

De fato, enxergando o quadro completo, todos os eventos que ocorreram no Egito e todos os desafios que Avraham enfrentou demonstraram ter muitos benefícios, tanto para Avraham quanto para suas futuras gerações. Por exemplo, Avraham voltou do Egito com muitas riquezas, o que teve importantes implicações espirituais. Além disso, o incidente do sequestro de Sara no Egito e a praga que atingiu o Faraó é um exemplo de "Maassê Avót, Siman Lebanim" (Os atos dos nossos patriarcas são um "sinal" para seus futuros descendentes). Avraham estava preparando as "fundações" das futuras experiências que os judeus passariam no Egito muitos séculos depois, incluindo as pragas que atingiriam o Faraó e os egípcios por seus maus atos.

Explica o Ramban zt"l (Nachmânides) (Espanha, 1194 - Israel, 1270) que todos os testes que Avraham passou na vida também serão enfrentados pelos seus descendentes, e a forma como ele lidou com seus desafios também foi herdada por nós e nos dará a habilidade para também superarmos os testes que surgem em nossas vidas. Em especial, o teste da fome é muito relevante para nós. Muitas vezes tomamos decisões baseadas no nosso entendimento do que é correto e na nossa vontade de cumprir a Vontade de D'us. Isto muitas vezes envolve mudanças em nossas vidas. Podem ser mudanças grandes, como uma mudança de país, uma mudança de carreira, a decisão de se casar ou de ter filhos, ou até mesmo mudanças pequenas, como o comprometimento de crescer espiritualmente através de pequenos acréscimos no estudo da Torá e no cumprimento das Mitzvót. Normalmente, quando a pessoa assume mudanças em sua vida, já tem suas expectativas de quais desafios terá que enfrentar e como poderá superá-los. Entretanto, é comum nos deparamos com dificuldades e obstáculos que não havíamos previsto e que parecem contradizer nosso plano de crescimento. Nestas situações, há uma forte inclinação para ficarmos frustrados por não conseguirmos crescer da maneira que desejávamos.

Mas por que nos sentimos frustrados quando nossos esforços não funcionam como havíamos planejado? Pois achamos que sabemos qual é o caminho ideal para atingirmos o nosso objetivo e o nosso verdadeiro potencial, e pensamos que somente assim nos tornaremos pessoas melhores. Quando somos colocados em uma situação que nos impossibilita de darmos continuidade ao nosso plano de crescimento previsto, nos sentimos frustrados porque achamos que isto nos impedirá de atingir o nosso objetivo. Portanto, a fonte da nossa frustração é acharmos que sabemos exatamente o que vai nos fazer chegar ao nosso máximo potencial.

Então qual é a maneira de lidar com estes obstáculos que chegam de maneira imprevista? Devemos reconhecer que somente D'us sabe quais circunstâncias a pessoa deve enfrentar na vida para potencializar seu crescimento, e que qualquer dificuldade que encontramos na vida é apenas um meio que Ele nos manda para ajudar o nosso crescimento e nos possibilitar o desenvolvimento de novas habilidades. Pensamos que as dificuldades nos afastam do nosso objetivo, mas apenas porque somos limitados. Apenas D'us, em Sua infinita sabedoria, sabe o que é realmente o melhor para nós e qual é o nosso verdadeiro caminho de crescimento.

Muitas vezes nos deparamos com obstáculos e dificuldades. Distrações inevitáveis, doenças, mudanças de vida. Nos sentimos frustrados por pensar que não podemos crescer da maneira que desejávamos. Vemos estas dificuldades como obstáculos que nos impedem de nos conectarmos a D'us. A lição do teste da fome pelo qual passou Avraham nos ensina a reconhecer que estes "incômodos" vêm de D'us, e certamente eles carregam o desafio exato que necessitamos naquele momento. Somente assim conseguiremos evitar a atitude prejudicial da frustração e poderemos focar em enfrentar os desafios com alegria e confiança em D'us.

SHABAT SHALOM    
R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn.12:1-17:27, Is. 40;27

sábado, 5 de novembro de 2016

SEPARAÇÃO MOMENTÂNEA - PARASHÁ NOACH 5777

"Sou médico oncologista, com experiência de 29 anos de atuação profissional. Posso afirmar que cresci e modifiquei-me com os dramas vivenciados pelos meus pacientes. Não conhecemos nossa verdadeira dimensão até que, pegos pela adversidade, descobrimos que somos capazes de ir muito além. Recordo-me com emoção do Hospital do Câncer de Pernambuco, onde dei meus primeiros passos como profissional.

Comecei a frequentar a enfermaria infantil e apaixonei-me pela oncopediatria. Vivenciei os dramas dos meus pacientes, crianças vítimas inocentes do câncer. Com o nascimento da minha primeira filha, comecei a me acovardar ao ver o sofrimento das crianças. Até o dia em que um anjo passou por mim. Veio na forma de uma criança já com 11 anos, calejada por dois longos anos de tratamentos diversos, manipulações, injeções e todos os desconfortos trazidos pelos programas de quimioterapia e radioterapia. Mas nunca vi o pequeno anjo fraquejar. Vi-a chorar muitas vezes; também vi medo em seus olhinhos. Porém, isso é humano.

Um dia, cheguei ao hospital cedinho e encontrei meu anjo sozinha no quarto. Perguntei pela mãe. A resposta que recebi, ainda hoje, não consigo contar sem vivenciar profunda emoção:

- Tio - disse-me ela - às vezes minha mãe sai do quarto para chorar escondido. Quando eu morrer, acho que ela vai ficar com muitas saudades. Mas eu não tenho medo de morrer, tio. Eu não nasci para esta vida!

- E o que a morte representa para você, minha querida? - perguntei, tentando disfarçar a emoção.

- Olha tio, quando somos pequenos, às vezes, vamos dormir na cama do nosso pai e, no outro dia, acordamos em nossa própria cama, não é? Um dia eu vou dormir e o meu Pai vem me buscar. Vou acordar na casa Dele, na minha vida verdadeira!

Fiquei "engasgado", não sabia o que dizer. Chocado com a maturidade com que o sofrimento acelerou a visão e a espiritualidade daquela criança.

- E minha mãe vai ficar com saudades - emendou ela.

Emocionado, contendo uma lágrima e um soluço, perguntei:

- E o que saudade significa para você, minha querida?

- Saudade é o amor que fica!" (História real, narrada pelo Dr. Rogério Brandão, Oncologista) 
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A Parashá desta semana, Noach, conta a história do terrível Dilúvio que destruiu a humanidade. Desde Adam Harishon, o primeiro ser humano, que escolheu não escutar a ordem de D'us e comer do fruto que D'us havia proibido, a humanidade foi "despencando" espiritualmente e se desviando, de geração em geração, ao ponto de D'us se arrepender de Sua Criação. Somente Noach e seus filhos encontraram graça aos olhos de D'us, pois haviam se mantido íntegros, e por isso foram poupados da destruição. Noach passou 120 anos construindo uma gigantesca Arca, e um dos propósitos era justamente para chamar a atenção das pessoas de que algo terrível aconteceria caso as pessoas não mudassem suas atitudes. Porém, apesar das pessoas verem a Arca e terem sido advertidas por tanto tempo sobre a vinda do Dilúvio, ninguém mais se arrependeu e consertou seus atos.

Há um detalhe interessante que nos chama a atenção quando D'us anuncia que o Dilúvio estava iminente: "Pois em mais sete dias Eu mandarei chuva sobre a terra, 40 dias e 40 noites, e Eu apagarei toda a existência que Eu criei sobre a face da terra" (Bereshit 7:4). Mas por que D'us quis chamar a atenção destes últimos sete dias?

Rashi (França, 1040 - 1105), citando um Midrash (Torá Oral), nos revela que estes sete dias não estavam nas contas originais de D'us. Mesmo quando os 120 anos se completaram, D'us ainda adiou o início das chuvas por mais sete dias. De acordo com uma explicação, o adiamento foi consequência da gigantesca Misericórdia de D'us. Apesar de terem passado 120 anos, tempo suficiente para que as pessoas se arrependessem, Ele quis dar mais sete dias de chance. Além disso, Rashi explica que havia também outro grande Tzadik no mundo, chamado Metushelach, que viveu até a idade de 969 anos. Ele faleceu quando se completaram os 120 anos e, em sua honra, D'us esperou mais sete dias para começar o Dilúvio.

De acordo com a maioria das opiniões dos nossos "Poskim" (legisladores), o período de sete dias de luto que observamos depois do falecimento de um parente próximo, chamado de "Shivá" (que literalmente significa "sete"), não é parte das 613 Mitzvót da Torá, e sim um mandamento rabínico. A fonte para o mandamento rabínico da "Shivá" é este versículo da nossa Parashá, pois de acordo com os nossos sábios, os sete dias que D'us esperou antes de iniciar o Dilúvio são justamente os sete dias de luto da "Shivá" de Metushelach.

A morte é um assunto que normalmente não gostamos de pensar. É algo que nos deixa deprimidos e com medo do desconhecido. A morte é uma consequência direta do erro de Adam Harishon, e não apenas ele sofreu as consequências de seu erro, mas também todos os seus descendentes. A morte é um momento de separação de pessoas queridas, algo que traz muito sofrimento para a humanidade. Mas se D'us é tão misericordioso, se tudo o que Ele faz é por bondade, será que há uma maneira de olhar a morte de forma mais otimista? Como não perder as esperanças quando perdemos uma pessoa querida?

Outra questão surge ao analisarmos a frase de consolo que costumamos dizer quando visitamos pessoas enlutadas: "Hamakom Yenachem Etchem Betoch Shear Avelei Tzion VeYerushalaim" (Que D'us possa consolar vocês, entre os demais enlutados de Tzion e Yerushalaim). Há algo interessante neste consolo, pois sabemos que D'us têm muitos nomes, o que pode ser observado na Torá e nas Tefilót (rezas). Alguns nomes se referem justamente à Sua misericórdia e compaixão, tais como "Rachum" (O Misericordioso) e "Chanun" (O Gracioso). Porém, nesta frase de consolo não utilizamos estes nomes de D'us, e sim o nome "HaMakom", que literalmente significa "O Lugar". Por que justamente este nome é utilizado? E como esta frase ajuda a trazer consolo aos que estão enlutados e sofrendo pela terrível perda de um ente querido?

Além disso, se refletirmos, perceberemos algo intrigante. Antigamente, quando a comunicação a longa distância não existia, a migração de uma família para uma terra distante era praticamente uma despedida para sempre. Na maioria das vezes as famílias nunca mais escutavam notícias de como estavam seus parentes queridos que partiram. Porém, esta despedida não causava nas pessoas o mesmo sentimento de perda que é causado pela morte de um parente. Qual é a diferença, se nos dois casos as pessoas sabiam que nunca mais veriam seus parentes queridos?

Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta está em um Midrash que afirma: "O mundo está contido dentro do "espaço" de D'us, e não D'us está contido dentro do espaço do mundo". Nossos sábios estão ensinando que o espaço não era uma realidade pré-existente, ao contrário, foi D'us quem trouxe o mundo à sua existência, foi Ele quem criou a realidade de espaço. Consequentemente, D'us não existe dentro do espaço, e sim o espaço existe dentro da realidade de D'us.

A diferença entre perder um parente e vê-lo partir para sempre em uma viagem é que, no caso da migração, havia o conforto e o consolo de saber que as pessoas amadas, apesar da distância, continuavam existindo dentro do mesmo espaço e realidade que elas. Isto trazia para as pessoas certo nível de tranquilidade e aceitação. Portanto, o sentimento de perda causado pela morte de um ente querido deriva do entendimento equivocado de que o falecido não existe mais na mesma realidade daqueles que estão vivos. É por isso que consolamos o enlutado utilizando o nome de D'us "HaMakom", que reflete a noção de que tudo está dentro do espaço de D'us. Portanto, apesar de que aqueles que partiram saíram da realidade percebida pelos nossos cinco sentidos, eles continuam existindo dentro da realidade criada por D'us. Apesar de ser em outro plano de existência, elas continuam dividindo o mesmo espaço que nós. Este conceito é um grande consolo e conforto para aqueles que estão enlutados.

Apesar de ser algo doloroso, a morte é uma grande bondade de D'us. Após o erro de Adam Harishon, a humanidade caiu tanto espiritualmente que foi necessário um novo processo de purificação para nos permitir uma limpeza completa do nosso corpo e da nossa alma. Este processo é a morte, a separação do corpo e da alma para que cada um deles passe por um processo de purificação específico. Nosso "eu" não é o nosso corpo finito, e sim a nossa alma infinita. A morte, a separação passageira dos nossos entes queridos, pode ser difícil, mas deve ser vista da mesma maneira que a despedida de parentes que estão migrando para uma nova terra, para novas oportunidades. A saudade é o amor que fica, e que deve ser guardado para sempre. Mas nunca com desespero e tristeza, e sim com a aceitação e a tranquilidade de sabermos que tudo o que D'us faz é por bondade ilimitada. 
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm

http://ravefraim.blogspot.com.br

Gn.6:9-11:32, Is 54:1-55:5