sábado, 29 de março de 2014

A LÍNGUA EXAGERA - PARASHÁ TAZRIA 5774


“David ligou para o seu dentista, querendo agendar uma consulta. Com a voz tensa, ele disse:

- Doutor, é urgente. Por favor, tente me encaixar ainda hoje. Eu estou com uma cavidade enorme no meu dente. Estou muito preocupado, pois tenho medo de perder o dente. Pelo tamanho da cavidade, o dente já deve estar inteiro podre!

O dentista, preocupado, conseguiu reagendar suas consultas e atendê-lo no mesmo dia. Mas quando David sentou-se na cadeira do dentista e mostrou-lhe o dente que incomodava, o dentista pareceu um pouco confuso. Ele falou para David:

- Meu querido, acho que você se enganou, isso não parece muito ser uma cavidade. Não é nada grave, o dente está ótimo, muito saudável. Há apenas um pequeno desnível no dente, mas podemos cuidar disso com um pouco de resina.

- Sério? - perguntou David, sem acreditar – Mas não pode ser que não tem quase nada. Quando eu passei a língua no dente, parecia que havia uma cavidade enorme!

O dentista sorriu e falou:

- Isso sempre acontece, David. Não podemos decidir as coisas de acordo com o que a língua nos informa. Afinal, é natural que a língua dê sempre uma exagerada, não?”

Precisamos tomar muito cuidado com a forma que utilizamos nossa fala. Nossa língua, sem controle, pode causar muita destruição. Pois, na maioria das vezes, ela exagera muito...

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A Parashá desta semana, Tazria, descreve uma terrível doença espiritual chamada Tzaráat, que se manifestava através de manchas nas paredes da casa, nas roupas e na pele. Porém, apesar da manifestação física da doença, a identificação não era feita por um médico, e sim por um Cohen (sacerdote), como está escrito: “E o Cohen deve declará-lo contaminado; é Tzaráat” (Vayikrá 13:8).

Qual era a causa desta doença espiritual? O Talmud (Arachin 15b) explica que a palavra “Metzorá”, (termo que descreve a pessoa contaminada com Tzaráat) é uma contração das palavras “Motsi” e “Rá”, que significam “aquele que espalha a difamação”. O Talmud está ressaltando que a principal falha que levava ao castigo de Tzaráat era o Lashon Hará, isto é, revelar algo negativo sobre uma pessoa de forma a causar danos físicos, financeiros ou psicológicos.

Infelizmente, por total falta de conhecimento, muitos pensam que a transgressão de Lashon Hará somente ocorre quando alguém inventa mentiras para caluniar o próximo. Mas o rabino Israel Meir HaCohen (Polônia, 1838 - 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, dedicou a vida para difundir as leis de cuidado com a fala e nos ensina que a transgressão de Lashon Hará ocorre justamente quando alguém denigre o próximo com informações verdadeiras, isto é, quando revela algum erro realmente cometido ou algum defeito que verdadeiramente existe no outro. Caso a pessoa misture fatos mentirosos, a transgressão se torna ainda mais grave e é chamada de “Motsei Shem Rá”.

Mas destas informações surgem duas dúvidas. Em primeiro lugar, sabemos que todos os castigos aplicados por D’us são “Midá Kenegued Midá” (medida por medida), isto é, o castigo é aplicado exatamente da maneira através da qual a pessoa cometeu o erro. Por exemplo, uma pessoa que falou palavrões ou palavras obcenas pode ser punido queimando sua língua com o café quente. Desta maneira, a língua que transgrediu falando o que não deveria é “castigada” com a dor da queimadura. D’us utiliza esta característica de “Midá Kenegued Midá” justamente para nos levar à reflexão e nos ajudar a entender, observando o castigo recebido, qual foi o nosso erro. Isto é uma das maiores bondades de D’us, pois assim Ele nos dá a possibilidade de consertarmos nossos atos e chegarmos à perfeição. Porém, como vemos a característica de “Midá Kenegued Midá” no castigo de Tzaráat? Qual a relação entre as manchas que aparecem no corpo e o erro de revelar atos errados ou más características de outras pessoas?

Além disso, em várias ocasiões diferentes a Torá preza muito pela verdade e abomina a mentira. Por isso é fácil entender que o “Motsei Shem Rá” é algo abominável, pois é uma mentira, uma distorção da realidade. Mas por que a transgressão de Lashon Hará também é considerada algo tão grave pela Torá, se trata-se apenas de revelar algo que é verdade? Por que a Torá parece ir contra a revelação da verdade?

Explica o Rav Yohanan Zweig que atualmente a mídia se tornou um excelente modelo de que nem sempre dizer a verdade reflete a realidade de uma situação. Por exemplo, quando um canal de televisão quer acusar o exército de Israel de maltratar os palestinos, eles colocam no ar um clipe de 15 segundos no qual um soldado israelense, armado e bem preparado, golpeia um aparentemente desarmado e inofensivo cidadão palestino. O vídeo está realmente mostrando algo real, as imagens não foram criadas em estúdio. Porém, ao editar o vídeo e cortar certas partes, não mostrando o incidente inteiro e deixando de fora os primeiros minutos da filmagem, que mostravam aquele mesmo palestino “inocente” atirando as pedras que atingiram e cegaram uma criança israelense, eles infelizmente distorceram a realidade do evento ocorrido. Isto quer dizer que um clipe de 15 segundos na televisão pode mostrar um incidente que realmente aconteceu. Porém, se este clipe for a única conexão de uma pessoa com o incidente, ela pode sair com uma visão completamente distorcida da realidade. Este é um ótimo exemplo de que é possível dizer um monte de mentiras dizendo apenas verdade.

Esta é a mesma distorção que ocorre através do Lashon Hará. Apesar de a pessoa estar dizendo apenas a verdade em seus comentários sobre seu companheiro, denegrindo-o aos olhos dos outros, isto não representa a realidade. A pessoas que fala Lashon Hará normalmente se acostuma a focar apenas na parte negativa dos outros. Apesar dos erros de um individuo representarem apenas uma pequena parte da sua verdadeira essência, aquele que faz Lashon Hará cria nos outros a percepção que esta é a realidade inteira da pessoa. Da mesma forma que o clipe tendencioso de 15 segundos consegue distorcer completamente a realidade de uma situação aos olhos daqueles que não sabem realmente o que está acontecendo, assim também é o Lashon Hará, pois apesar de só falar a verdade, a pessoa está distorcendo completamente a realidade. Quando alguém escuta o Lashon Hará, ele imediatamente associa a pessoa à má característica ressaltada, e certamente ignora os outros traços positivos dela.

No Lashon Hakodesh (língua com a qual D’us criou o mundo) podemos perceber também este conceito. A palavra “Verdade” é “Emet” (letras Alef, Mem e Taf), enquanto a palavra “Mentira” é “Sheker” (letras Shin, Kuf e Reish). As três letras de “Sheker” são letras que estão juntas uma da outra no alfabeto, enquanto a palavra Emet é composta pela primeira letra do alfabeto, a letra do meio e a última letra. Isto quer dizer que mentira é você olhar algo de uma maneira limitada e achar que entendeu tudo, enquanto verdade é entender apenas após enxergar o quadro completo.

Com este conceito é possível entender por que o Tzaráat é uma punição “Midá Kenegued Midá” do Lashon Hará. Mesmo que a pessoa encontrasse apenas uma pequena mancha em seu corpo, isto já era suficiente para contaminar seu corpo todo. A transgressão daquele que fez Lashon Hará se reflete, portanto, na sua punição. Da mesma forma que ele distorceu a verdade e criou uma falsa realidade ao amplificar um pequeno defeito, a ponto disto representar a pessoa inteira, da mesma maneira também o Tzaráat, que poderia ser apenas uma pequena mancha, acaba contaminando e representando a pessoa inteira.

D’us nos deu um grande presente, que é o dom da fala. Com ela podemos nos comunicar, expressar nossos pensamentos e sentimentos, ensinar e ajudar ao próximo. Mas, infelizmente, a fala muitas vezes acaba sendo utilizada de uma maneira negativa. Sem o devido cuidado, com a fala podemos rotular as pessoas, destruir potenciais e causar muito sofrimento. Pois, como afirmou o dentista, a língua exagera muito.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Lv l2:1-13:59, 2 Rs. 4:42·5:19, Mt. 8: 1-4

sexta-feira, 21 de março de 2014

A IMPORTÂNCIA DE HONRAR - PARASHÁ SHEMINI 5774

“Os ataques terroristas que atingiram as Twin Towers, um dos mais famosos cartões postais de Nova York, no dia 11 de setembro de 2001, deixou o mundo em choque. Há centenas de histórias que, apesar de não terem se tornado públicas, contam um pouquinho mais do que foi esta terrível tragédia.

Uma destas histórias ocorreu com um homem que tinha um escritório nas Twin Towers. Depois de a primeira torre ter sido atingida, o homem, que trabalhava na segunda torre, recebeu um telefonema. Era sua mãe, desesperada, pedindo para que ele saísse imediatamente do prédio. O homem tentou acalmar a mãe, informando que uma equipe havia checado a segurança da segunda torre e tinha chegado à conclusão de que não havia nenhum perigo permanecer ali. Mas a mãe não se deu por vencida e, com um tom de voz ainda mais aflito, falou para o filho:

- Filho, não me importa o que diz a equipe de segurança. Eu ficarei mais tranquila se você sair daí agora. Por favor, me escute!

- Mãe, eu entendo sua preocupação, mas tenho muito trabalho para fazer. Está tudo bem, não se apavore, não vai acontecer nada de mal - respondeu o filho.

Tragicamente, poucos minutos depois deste telefonema a segunda torre também foi atingida por um avião. Aquele homem, que havia sido alertado por sua mãe, acabou morrendo na explosão” (História Real).

Infelizmente vemos o quanto a falta de sensibilidade em relação à importância de honrar os outros traz consequências negativas, algumas vezes trágicas, principalmente quando deixamos de honrar e escutar nossos próprios pais.


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Nesta semana lemos a Parashá Shemini, que descreve a cerimônia de inauguração do Mishkan e o início do trabalho de Aharon e seus quatro filhos como os Cohanim (sacerdotes) responsáveis por todos os serviços do Mishkan. Mas no auge da alegria da inauguração aconteceu uma enorme tragédia: os dois filhos mais velhos de Aharon, Nadav e Avihu, morreram, como está escrito: “[Nadav e Avihu] trouxeram diante de D’us um fogo estranho, que Ele não havia ordenado a eles. E veio um fogo diante de D’us e os consumiu, e eles morreram diante de D’us” (Vayikra 10:1,2). A causa da morte de Nadav e Avihu, como explicita a Torá, foi por eles terem oferecido um incenso “estranho”, isto é, que não havia sido comandado por D’us.

Porém, há um Midrash (parte da Torá Oral) que traz outros motivos para a morte de Nadav e Avihu. De acordo com uma opinião, eles morreram por terem tomado uma decisão sem consultar seu professor, Moshé Rabeinu. De acordo com uma segunda opinião, eles morreram porque entraram no Mishkan para servir a D’us embriagados, após terem bebido vinho. E de acordo com uma terceira opinião, eles morreram porque haviam decidido não se casar e, consequentemente, não ter filhos.

Deste Midrash ficam duas dúvidas. Em primeiro lugar, por que o Midrash traz motivos tão diferentes daquele explicitamente escrito na Torá, de que a morte de Nadav e Avihu foi consequência deles terem oferecido um incenso que D’us não havia comandado? E por o Midrash apresenta opiniões aparentemente tão desconectadas entre si?

Responde o Rav Moshe Schreiber (Alemanha, 1762 - Áustria, 1839), mais conhecido como Chatam Sofer, que as causas apontadas pelo Midrash não estão desconectadas entre si, pois são todas consequências de um único erro: o fato de Nadav e Avihu terem decidido não se casar e não ter filhos. Mas isto foi um erro tão grave? E como este erro se relaciona com os outros erros, mencionados na Torá e no Midrash?

Existem na Torá muitas Mitzvót relacionadas com a necessidade de honrar as pessoas, como a Mitzvá de honrar os pais e a Mitzvá de honrar nossos professores. Há também Mitzvót relacionadas com a necessidade de honrar D’us, como as leis de comportamento dentro do Mishkan e, atualmente, as leis de conduta dentro da sinagoga. Mas como desenvolvemos esta sensibilidade em relação à importância de respeitar as pessoas e D’us? Explica o Chatam Sofer que uma das formas é através da convivência com os nossos próprios filhos. Por exemplo, quando um pai é desrespeitado pelo seu filho, ele sente o quanto a falta de respeito é incômoda. Isto ajuda a pessoa a refletir e a internalizar a importância de respeitar os pais, professores e, acima de tudo, D’us.

Por isso, quando Nadav e Avihu decidiram não se casar e não ter filhos, isto os impediu de desenvolver a apreciação correta da necessidade de honrar os outros. A consequência foi que eles tropeçaram em diversas áreas relacionadas ao respeito. Ignorar a opinião de Moshé e decidir algo sem consultá-lo indica uma falha em dar a honra necessária ao seu professor. Também entrar no Mishkan embriagados demonstra uma falha em dar a devida honra para a Presença Divina que residia ali. E finalmente, ao oferecer um incenso que D’us não havia pedido, apesar das boas intenções, demonstrou uma falta de suficiente temor e respeito por D’us. Portanto, a decisão equivocada de não casar e não ter filhos resultou em diferentes erros, cujo ponto em comum de todos eles foi a falha em honrar tanto o próximo quanto D’us.

Explica o Rav Yonatan Guefen que este ensinamento da Parashá nos desperta para a importância do cuidado necessário no nosso relacionamento com as pessoas. Para pessoas que vivem sem os conceitos da Torá, os relacionamentos interpessoais são vistos com a ótica de “o que eu posso ganhar com este relacionamento?”, e isto se aplica tanto nas amizades quanto no casamento e na criação dos filhos. Portanto, o que as pessoas buscam nos relacionamentos é algo egoísta, e talvez isto explique por que os casamentos e as relações entre pais e filhos têm se degradado tanto nas últimas gerações. Se a meta da pessoa em um relacionamento é primariamente algo egoísta, então seus desejos e esperanças vão inevitavelmente se chocar com os do seu companheiro ou filhos, que também estarão movidos apenas por desejos egoístas. Mais do que isso, muitas pessoas sentem que casar ou ter filhos vai impedi-las de aproveitar os prazeres da vida e, por isso, acabam fugindo destes compromissos, em sua busca de prazeres e conforto. Isto pode ser percebido nas festas de “despedida de solteiro”, como se para os noivos fosse uma última oportunidade de aproveitar os verdadeiros prazeres da vida, o que não será mais possível depois do casamento.

O Chatam Sofer ressalta que um dos principais propósitos de ter filhos é para nos possibilitar crescer em áreas nas quais não seria possível de outra maneira. O mesmo se aplica ao casamento e outros tipos de relacionamento. A visão da Torá é que a pessoa deve entrar em um relacionamento de maneira desinteressada, isto é, focando em como podemos ajudar aos outros e, ao mesmo tempo, como podemos crescer espiritualmente com este relacionamento e nos tornarmos pessoas melhores. Este crescimento pode ocorrer com as partes “agradáveis” dos relacionamentos, mas muitas vezes ocorre através da superação das dificuldades que surgem.

Em última instância, nossos relacionamentos com as pessoas nos ajudam a crescer espiritualmente em todas as áreas da vida e a nos conectar com D’us. Aquele que aprende a honrar o próximo vai se desenvolver e aprender a honrar D’us da maneira correta. Portanto, é importante nos esforçarmos para construir relacionamentos desinteressados e verdadeiros com as pessoas, mesmo que para isso seja necessário diminuir um pouco nosso nível de conforto. Somente assim, com a somatória dos bons momentos e das dificuldades, chegaremos a ser verdadeiramente pessoas completas.

SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

Lv 9:1-11:47, 2 Sm. 6:1-7:17, At. 10: 9-22, 34-35

O papel do Estado na vida do cidadão

Meus amigos mais próximos sabem que estou cursando uma Pós-Graduação em Gestão Pública pela FaPP/UEMG. Na medida do possível quero publicar aqui meus artigos como forma de divulgar meus trabalhos. Como acho que este assunto é de suma importância para todos cidadãos, espero que leiam e, se possível, deixem seus comentários.


O papel do Estado na vida do cidadão
            No contexto mundial atualmente a social democracia tem dominado o campo político, sendo representada em diversos países. Aqui no Brasil, este caminho tem levado cada vez mais à dependência de classes menos favorecidas de ajuda do governo, sem realmente produzir riquezas. O que nos leva a um círculo vicioso. O que o Estado deveria garantir, sem dúvida, é o cumprimento das leis para manutenção da ordem. Considerando que todos somos iguais perante a lei, não há como ferir liberdades individuais.
            A ordem econômica se dá quando há livre iniciativa e concorrência. Acredito que quanto menos o Estado intervir, melhor. Infelizmente, não é bem assim que acontece. Existem paradoxos complexos no nosso país. Há incentivo ao consumo por parte do próprio governo, porém sem investimento em infraestrutura ou em um controle que produza um efeito real da inflação. E é interessante frisar que o “capitalismo” é de certa forma um termo pejorativo, termo este cunhado por Marx que o usava de forma depreciativa para identificar um sistema econômico que havia recebido de Adam Smith, uma expressão mais descritiva que é “sistema de liberdade natural” quando na verdade é ele, o capitalismo, que sustenta a economia deste país e no mundo de um modo geral. Max Weber diz que “o ganho de dinheiro na moderna ordem econômica é, desde que feito legalmente, o resultado da expressão da virtude e da eficiência em certo caminho” porém há uma demonização dos empresários, que geram empregos, e a virtualização de movimentos sociais que sugam dinheiro público, muitos sem produzir algo efetivamente.
            Se a questão se dá na ordem social, o que dizer dos serviços públicos, que são garantidos pela constituição? Educação, saúde e segurança pública são os três pilares de uma sociedade. Mas se o cidadão precisa de qualidade, em qualquer destes, precisa recorrer à iniciativa privada. Que apesar dos altos impostos, das regulamentações, da burocracia e das barreiras contra importações, vão sobrevivendo. Por exemplo: não existem no Brasil empresas estatais monopolistas fabricantes de televisões, geladeiras, micro-ondas, celulares, carros, móveis e imóveis.  Por outro lado, serviços como esgoto, polícia, água e coleta de lixo são prestados por estatais monopolistas protegidas contra qualquer concorrência. E então vem a pergunta: entre estes dois arranjos, qual é aquele ao qual os pobres conseguem ter acesso? A reportagem da Folha de São Paulo nos responde:

“Casas têm mais TVs e menos rede de esgoto em 11 Estados do Brasil. Casas com TV, DVD, computador, carro e moto, mas sem esgoto e coleta de lixo. Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, mostram que, enquanto no país avança a presença nas residências de bens duráveis, como eletrônicos, boa parte dos Estados fica paralisada —ou até regride— em serviços como água, esgoto e coleta de lixo.” (Folha de São Paulo, 2013)
            Fica mais que comprovada e ineficiência do Estado no âmbito dos péssimos serviços que são prestados em função de uma carga tributária elevadíssima. Pagamos muitos impostos sem termos o retorno deles em forma de ações efetivas do Estado.
Cabe a ele, dentro do seu elemento coercitivo, somente exigir o cumprimento de nossas leis, partindo dele o exemplo. A liberdade individual não deve ser ferida, cito Locke:

“Por conseguinte, a liberdade do homem, e a liberdade de ação conforme a sua própria vontade, baseia-se em ter ele razão capaz de instruí-lo na lei pela qual terá de governar-se, fazendo-o saber até que ponto fica entregue à liberdade da própria vontade”. (LOCKE, Segundo Tratado Sobre o Governo, cap. VI, 63. p. 58 grifo desta autora)
            Ou seja, a instrução e educação é a base da sociedade que é garantida mas não cumprida pelo Estado. No mínimo deveria haver maior valorização do educador, o que não acontece na esfera pública. Pois como pode haver justiça distributiva e igualdade social dentro de um sistema que ignora o fundamento principal de uma nação? Nunca será com cotas, mas sim com qualidade de ensino.
            Nos governos autoritários ou em ditaduras socialistas o que há é o monopólio total do Estado, usurpando do cidadão todos os seus direitos civis de liberdade individual e o seu direito de propriedade. Sem falar nos milhões de mortos que estes sistemas já deixaram a partir da Revolução dos Bolcheviques, em 1917 na Rússia. Desde então, criou-se um certo romantismo no socialismo, mas o que ele representa na realidade é o pior que o ser humano pode demonstrar. E não seria por acaso que o partido de Hitler fosse o Partido Operário ‘Nacional-Socialista’ Alemão. A China só cresceu economicamente quando assumiu um papel capitalista em suas relações de mercado, entretanto ainda restringe fortemente a liberdade dos chineses mantendo o principal foco de uma nação socialista: retirar os direitos civis e políticos ou uma justiça distributiva de seus cidadãos.
            Enfim, todos os resultados nos levam a crer que um bom sistema democrático é aquele que é liberal e conservador. De Hillaire Belloc é a tese que é simples e os fatos não cessam de comprová-la: destravada de controles morais, culturais e religiosos, erigida em dimensão autônoma e suprema da existência, a economia de mercado se destrói a si mesma, entrando em simbiose com o poder político e acabando por transformar o trabalho livre em trabalho servil, a propriedade privada em concessão provisória de um Estado voraz e controlador. Ou seja, para termos liberdade como cidadãos é necessário que o Estado somente intervenha no mínimo e onde lhe compete: no total cumprimento da lei magna e na moderação da economia de modo a não haver monopólios, dentre eles, do próprio Estado.
     
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANCIAN, Natália. Casas têm mais TVs e menos rede de esgoto em 11 Estados do Brasil. Cotidiano, Folha de São Paulo, 2013. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/10/1352211-casas-tem-mais-tvs-e-menos-rede-de-esgoto-em-11-estados-do-brasil.shtml> Acesso em: 02/Dez/2013.
CARVALHO, Olavo de. O Capitalismo Anticapitalista. Diário do Comércio, 2009. Disponível em:< http://www.olavodecarvalho.org/semana/090513dc.html> Acesso em: 30/Nov./2013.
CHIOCCA, Fernando. Privatize tudo. Instituto Ludwig von Mises. 2013. Disponível em: < http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1708> Acesso em: 01/Dez./2013.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Coleção Os Pensadores, 3a Edição. Ed. Abril. São Paulo, 1983. 344 p.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2003. 230 p.

sexta-feira, 14 de março de 2014

MILAGRES QUE SALVAM VIDAS - PARASHÁ TZAV E PURIM 5774

“O mundo inteiro ainda aguarda ansiosamente notícias do Boeing 777 da Malaysia Air, que partiu na madrugada de sexta para sábado (08/03) de Kuala Lumpur (Malásia), com destino à Pequim, e simplesmente desapareceu sem deixar rastros. Após quase uma semana sem notícias, são poucas as esperanças de um desfecho feliz. As hipóteses vão de defeito mecânico a ataque terrorista. Mas o que a maioria das pessoas não sabe é que o voo MH370, que decolou com 239 passageiros, poderia ter decolado com mais um, se não fosse a Providência Divina. Um milagre que começou há poucos meses atrás.

Em janeiro deste ano, Andy, um judeu australiano não observante, decidiu visitar diversos países asiáticos. Ele entrou em contato com seu agente de viagens, um judeu ortodoxo de Israel, e enviou para ele o itinerário. Entre as solicitações de Andy estava um voo saindo da Malásia no dia 08/03, que era Shabat. Ao responder a solicitação de Andy, o agente de viagens informou o preço total dos voos e, sem maiores esclarecimentos, fez uma pequena alteração nas datas, mudando a saída da Malásia do dia 08/03 para o dia 07/03.

Quando Andy recebeu o e-mail do seu agente de viagens, gostou muito dos preços, mas se irritou com a mudança proposta. Ele escreveu novamente ao agente, reiterando que precisava permanecer mais um dia na Malásia, e exigiu a emissão do bilhete nas datas originalmente propostas. Mas o agente de viagens não voltou atrás. Preocupado com seu companheiro judeu que desrespeitaria o Shabat, ele informou a Andy que nunca colocava judeus durante voos no Shabat e, portanto, não poderia emitir aquela passagem na data desejada. O agente então sugeriu que Andy fizesse sozinho a emissão do bilhete daquele voo, enquanto ele cuidaria de emitir os bilhetes das outras viagens do itinerário. Andy concordou e decidiu cuidar pessoalmente da emissão do trecho entre a Malásia e a China. Ainda com uma ponta de esperanças, o agente insistiu mais uma vez para que Andy repensasse sua decisão.

Algumas horas depois, o agente de viagens recebeu um e-mail de Andy, no qual ele dizia que havia reconsiderado a data da viagem. Andy reconhecia no seu e-mail que deveria ser um judeu um pouco mais observante e, por isto, estava disposto a viajar um dia antes para não transgredir o Shabat. Ele inclusive pediu para que o agente de viagens lhe indicasse algum local na China onde ele pudesse passar o Shabat com comida Kasher. E assim, com a Mão de D’us orquestrando um milagre oculto, Andy partiu da Malásia na madrugada de quinta para sexta (07/03), ao invés de embarcar no meio do Shabat, no dia 08/03. Esta mudança salvou a vida de Andy” (História real).

Ensinam os nossos sábios: “Mais do que a pessoa guarda o Shabat, o Shabat guarda a pessoa”. Andy sentiu na pele o quanto este ensinamento é verdadeiro. Em meio a uma enorme tragédia, pelo menos uma história terminou com final feliz. E, não por coincidência, esta história ocorreu uma semana antes da festa de Purim, a data na qual relembramos que não existe acaso.

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Nesta semana lemos a Parashá Tzav, que continua nos ensinando sobre os Korbanót (sacrifícios) que eram oferecidos no Mishkan, entre ele o “Korban Todá”, que literalmente significa “Sacrifício de agradecimento”. Ele era oferecido por pessoas que haviam passado por algum grande perigo de vida. O Talmud (Brachót 54b) enumera quais perigos obrigavam a pessoa que saiu ilesa a trazer um Korban Todá: aquele que atravessou o oceano, aquele que atravessou o deserto, aquele que passou por uma grave doença e aquele que esteve na prisão. O propósito deste Korban era despertar na pessoa o agradecimento a D’us e o entendimento de que a salvação vem apenas através Dele, e não através de meios naturais, pois todas as criaturas são apenas ferramentas em Suas mãos, utilizadas para cumprir a Sua vontade.

Isto conecta a Parashá com a festa que se inicia logo após o fim do Shabat: Purim. Não é uma festa na qual comemoramos e agradecemos pela salvação de uma única pessoa, como ocorria quando alguém oferecia um Korban Todá, mas nesta festa nos alegramos e recordamos a salvação de um povo inteiro. Purim é a festa na qual revivemos a incrível salvação do povo judeu nos dias de Mordechai e Ester, quando conseguimos cancelar o decreto de Haman, a “Solução Final” proposta por ele contra os judeus, a tentativa de extermínio do povo inteiro em um único dia. Milagrosamente uma situação que parecia perdida se reverteu, e o que se encaminhava para uma gigantesca tragédia terminou como um dia de festa para todas as gerações.

Neste ano a festa de Purim tem uma pequena diferença em relação aos outros anos. Como este ano é bissexto, é acrescentado nele mais um mês. Na prática, ao invés de apenas um mês de Adar, temos dois meses, isto é, Adar I e Adar II. Portanto, há duas opções de quando comemorar a festa de Purim, em Adar I ou em Adar II. Qual o critério utilizado para decidir em qual mês devemos comemorar Purim? Explica o Talmud (Meguilá 6b) que devemos comemorar Purim em Adar II, para que a salvação de Purim esteja o mais próximo possível da salvação de Pessach, que comemoramos no mês de Nissan, o próximo mês depois de Adar. Mas o que significa este motivo que, segundo o Talmud, se sobrepõe às outras razões pelas quais Adar I seria mais propício para comemorar Purim? Qual a relação entre Pessach e Purim, festas aparentemente tão diferentes?

Explicam nossos sábios que realmente Purim e Pessach têm algumas diferenças marcantes. Por exemplo, enquanto em Pessach ocorreram milagres abertos, como as 10 pragas e a abertura do mar, em Purim os milagres foram todos ocultos, e somente prestando muita atenção nos detalhes e refletindo sobre a forma como tudo ocorreu é que conseguimos perceber a atuação de D’us nos bastidores. Porém, apesar das diferenças, estas duas festas também têm pontos em comum muito interessantes.

Entre as semelhanças, há algo que nos ensina uma importante lição. Se observarmos com atenção, perceberemos que tanto a salvação do Egito quanto a salvação de Purim começaram com passos que iam em direção contrária à salvação. No momento da libertação do Egito, D’us ordenou que cada judeu pedisse aos seus vizinhos roupas e objetos de ouro e prata. E foi justamente por causa destes utensílios de valor que os egípcios decidiram perseguir os judeus quando eles já estavam há alguns dias caminhando pelo deserto. Em uma primeira análise, nos parece que esta ordem de D’us para que os judeus pedissem aos egípcios objetos de valor foi uma atitude equivocada, pois levou os egípcios a novamente ameaçarem o povo judeu. Por que D’us fez as coisas acontecerem desta maneira, induzindo os egípcios a perseguirem o povo judeu mais uma vez? Em primeiro lugar, para que os egípcios entrassem no Mar Vermelho e fossem afogados, recebendo um castigo “medida por medida” por terem atirado os bebês judeus no Rio Nilo. E em segundo lugar, para internalizar no coração do povo judeu a certeza de que cumprir a vontade de D’us, mesmo quando na nossa visão limitada parece ser algo ilógico, sempre vale a pena, pois no final de contas os judeus foram salvos e ainda ficaram com aquela grande fortuna dos egípcios.

A história de Purim também começou com passos que iam em direção contrária à salvação. Mordechai convocou os judeus a desafiarem o rei Achashverosh, proibindo a participação de todo o povo no banquete oferecido pelo rei. Além disso, Mordechai também se recusava a se curvar diante de Haman, indo assim contra as leis da Pérsia. Aparentemente foram estas atitudes que colocaram o povo judeu diante de uma ameaça de extermínio, pois deixaram Haman furioso e fizeram com que ele estendesse seu ódio a todo o povo judeu. Porém, a verdade é que os atos de Mordechai foram os verdadeiros responsáveis pela salvação, pois apesar de irem contra a lógica humana, os atos de Mordechai estavam de acordo com a vontade de D’us. Como na salvação do Egito, os atos de Mordechai também tiveram dois propósitos. Em primeiro lugar, fez com que os inimigos do povo judeu fossem castigados “medida por medida”. Por exemplo, o ódio fez com que Haman construísse uma forca para pendurar Mordechai, mas ele mesmo acabou sendo enforcado nela. Em segundo lugar, para novamente internalizar no coração do povo judeu que mesmo uma conduta que pareça ilógica aos nossos olhos, mas que está de acordo com a vontade de D’us, certamente sempre trará bons resultados. Não apenas os judeus da Pérsia foram salvos, mas saíram poderosos e respeitados por todos, e puderam inclusive pegar todos os bens daqueles que queriam destruí-los, como ocorreu na saída do Egito.

Desta semelhança entre as duas salvações fica um importante ensinamento: não há nada melhor do que cumprir a vontade de D’us. Quando fazemos o que é correto, mesmo que em um primeiro momento não conseguimos entender a lógica, a longo prazo percebemos os benefícios. Como no caso do voo MH370, vemos que não somos nós que cuidamos das Mitzvót, são elas que, no final das contas, cuidam de nós.

SHABAT SHALOM e PURIM SAMEACH

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Lv 6:8 -8:36, Jr. 7:21-8:3; 9:23-24
 

sábado, 8 de março de 2014

SER GRANDE PARA SER HUMILDE - PARASHÁ VAYIKRÁ 5774

“O Rav Moshe Feinstein (Bielorússia, 1895 - EUA, 1986), um dos maiores sábios da geração passada, era procurado por pessoas que traziam as mais diversas questões haláchicas (da lei judaica). Certa vez, na véspera de Shabat, uma senhora idosa telefonou para o seu escritório. Como o Rav Moshe Feinstein estava extremamente ocupado naquele dia, ele deixou uma secretária atendendo os telefonemas. A secretária informou para a senhora que o Rav Moshe Feinstein não podia falar naquele momento e perguntou se podia ajudá-la. A senhora respondeu que estava ligando para o rabino para saber o horário de acendimento das velas de Shabat naquela semana. A secretária olhou no calendário, informou o horário e, sem esconder a irritação, falou:

- Desculpe me intrometer, minha senhora, mas o Rav Moshe Feinstein é um dos maiores rabinos da geração. Ele é um homem extremamente ocupado com questões grandes e importantes. Qualquer calendário tem as datas de acendimento das velas de Shabat. Por isso, acho que você não precisa ligar para ele apenas para perguntar isso.

- Sinceramente, não entendo o que você está me dizendo - disse calmamente a senhora idosa – pois não sei nada sobre calendários. O que eu sei é que há 20 anos eu ligo toda véspera de Shabat para o rabino para saber o horário de acendimento das velas, e ele sempre é muito gentil comigo e me informa o horário. Ele nunca me falou nada sobre calendários...”

Uma das características mais marcantes de gigantes de Torá como o Rav Moshe Feinstein é a extrema humildade que eles desenvolvem na vida. A humildade que, na verdade, é a maior demonstração da real grandeza deles.

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Nesta semana começamos o terceiro livro da Torá, Vayikrá, que descreve muitos dos serviços que eram realizados no Mishkan, em especial os Korbanót (sacrifícios). E a Parashá desta semana, Vayikrá, começa com as seguintes palavras: “E chamou Moshé, e disse D’us para ele” (Vayikrá 1:1). Mas por que o versículo não começou com “E disse D’us para Moshé”, como está escrito em toda a Torá?

Responde o Midrash (parte da Torá Oral) que a Torá quer ressaltar que, apesar de Moshé ter 10 nomes, D’us fez questão de chamá-lo pelo nome “Moshé”, pois foi o nome que Batia, a filha do Faraó, deu para ele, como está escrito: “Ela [Batia] chamou seu nome de Moshé” (Shemot 2:10). Mas o que significa este ensinamento do Midrash? Por que o nome dado por Batia tinha mais importância para D’us do que os nomes dados pelos próprios pais de Moshé, Amram e Yocheved?


Explica o Rav Avraham Shmuel Binyamin Sofer (Hungria, 1815 - 1871), mais conhecido como Ktav Sofer, que a resposta está em um interessante ensinamento dos nossos sábios. Diz o Talmud (Nedarim 38a), em nome do Rav Iochanan: “D’us não repousa Sua Presença a não ser sobre alguém que é valente, sábio, rico e humilde, e todas estas [características] aprendemos de Moshé”. Mas estas palavras do Talmud parecem estranhas, pois qual é a importância aos olhos de D’us de alguém ser rico ou valente? E por que o Talmud junta riqueza, sabedoria e valentia, características que normalmente levam a pessoa ao orgulho, com a característica da humildade, o extremo oposto do orgulho?

A humildade é uma característica fundamental para que uma pessoa possa alcançar altos níveis espirituais, como ensinam nossos sábios: “Aos olhos de D’us, é mais importante a humildade do que todos os Korbanót”. Esta era uma característica muito proeminente em Moshé, como está escrito: “E o homem Moshé era muito humilde, mais do que qualquer outro homem na face da Terra” (Bamidbar 12:3). Explica o Midrash que isto significa que Moshé chegou a um nível de humildade ainda maior do que o dos nossos patriarcas, Avraham, Itzchak e Yaacov. E foi justamente o fato de Moshé ter atingido um nível de humildade maior do que qualquer outra pessoa que fez com que ele atingisse níveis de profecia também nunca alcançados por nenhum outro ser humano. Porém, a própria Torá ressalta que nossos patriarcas chegaram à excelência na característica de humildade. Por exemplo, a Torá registra que Avraham afirmou diante de D’us: “Eu sou apenas pó e cinzas” (Bereshit 18:27). Se fosse uma falsa modéstia de Avraham, certamente D’us não teria escrito isto na Torá para a eternidade. Será que Moshé conseguiu chegar a um nível de humildade ainda maior do que este?

A resposta é que há dois tipos de pessoas humildes, que aparentemente apresentam a mesma característica, mas que na realidade estão em níveis espirituais completamente diferentes. O primeiro tipo de humildade é encontrado nas pessoas que se tornaram humildes por força das circunstâncias. Por exemplo, uma pessoa que nasceu muito pobre, que está à beira do esgotamento ou que está passando por terríveis sofrimentos, acaba se tornando naturalmente uma pessoa mais rebaixada e submissa. Alguém que desde a juventude passou por privações e dificuldades tem um corações mais “quebrado”, e por isso automaticamente naturaliza sua humildade. Pessoas assim, mesmo se um dia enriquecem, dificilmente se tornam pessoas orgulhosas, pois a humildade já se tornou parte de suas naturezas.

Porém, esta não é a característica de humildade completa que D’us deseja. A humildade completa é aquela atingida através da conquista das nossas más inclinações. O exemplo da humildade completa vem de pessoas ricas, que também foram coroadas com sabedoria e valentia, e por isso tinham todos os motivos para sentirem orgulho, mas conseguiram vencer sua má-inclinação e se tornaram pessoas humildes e simples. Estes são aqueles que atingiram um alto grau de humildade, e sobre quem D’us escolheu repousar a Sua presença. É por isso que o Talmud juntou as características de sabedoria, riqueza e valentia, que normalmente causam orgulho, com a característica de humildade, para nos ensinar que a humildade verdadeira vem daqueles que tinham tudo para serem orgulhosos, mas conseguiram vencer suas más inclinações.

Esta é a diferença entre a humildade dos patriarcas e a de Moshé. É verdade que os patriarcas chegaram à excelência na característica de humildade, mas depois de uma vida muito difícil e sofrida. Todos eles passaram por grandes testes, foram perseguidos e tiveram suas vidas ameaçadas. Já o passado de Moshé foi completamente diferente. Ele foi criado como um príncipe, dentro do palácio do Faraó. Ele não passou pelos duros sofrimentos da escravidão, e mesmo quando precisou fugir do Egito para salvar sua vida, chegou à terra de Kush e lá foi coroado como rei por muitos anos. Portanto, a humildade dos patriarcas era algo que já fazia parte de suas naturezas, por causa das dificuldades pelas quais eles haviam passado na vida, enquanto Moshé, ao contrário, teve que lutar muito para vencer sua má-inclinação e conseguir chegar à humildade. Ele era sábio, rico e valente, e mesmo assim conseguiu ser humilde, e é por isso que o Midrash ressalta que o nível de humildade de Moshé era maior até mesmo que o dos patriarcas. Também é por este motivo que D’us, entre tantos nomes, escolheu chamá-lo de “Moshé”, o nome dado por Batia, a filha do Faraó, pois este nome lembrava o passado majestoso de Moshé, era o nome pelo qual ele era chamado no palácio, e isto valorizava ainda mais a sua humildade.

Deste pequeno detalhe do início da nossa Parashá ficam dois importantes ensinamentos para nossas vidas. Em primeiro lugar, aprendemos a importância aos olhos de D’us da nossa humildade. De todas as boas características de Moshé, a humildade é a única que a Torá menciona, e repetidas vezes. Até a escolha do nome pelo qual D’us chamou Moshé foi feita de forma a ressaltar sua incrível humildade. E em segundo lugar, aprendemos que as dificuldades são, na verdade, potenciais de crescimento. Justamente nas áreas mais difíceis estão as maiores oportunidades de alcançarmos altos níveis espirituais. Pois assim ensinam os nossos sábios: “De acordo com a dificuldade, assim é a recompensa” (Pirkei Avót 5:26). Portanto, ao invés de desanimar diante das dificuldades, ao invés de reclamar dos obstáculos que surgem no caminho, devemos nos esforçar um pouco mais, pois justamente lá está a chave do nosso sucesso.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
LEVÍTICO l:1-6:7, Is. 43:21-44:23