sábado, 12 de maio de 2018

DIMINUINDO OS TESTES - PARASHIÓT BEHAR E BECHUKOTAI 5778

Moishe Fridman (nome fictício), que morava em Jerusalém, decidiu passar Rosh Hashana em Bnei Brak, na casa dos seus pais. Na hora de voltar para Jerusalém, sabia das imensas filas que haveria nos pontos de ônibus, com pessoas irritadas se empurrando para conseguir um lugar no ônibus. Decidido a não pegar fila, ele resolveu ir embora no horário do último ônibus, à 1 da manhã. Porém, para sua surpresa, quando chegou ao ponto, ainda estava lotado. As pessoas estavam muito irritadas, pois o ônibus para Jerusalém estava mais de uma hora atrasado. Estavam todos revoltados, querendo agredir o motorista. Finalmente, após muita espera, um ônibus apareceu no final da avenida. Todos se levantaram, já preparando as ofensas que diriam ao motorista. Mas a alegria não durou muito tempo. Quando o ônibus chegou mais perto, todos viram que no destino não estava escrito "Jerusalém", e sim "Rechovot". O ônibus parou, abriu as portas, mas não havia nenhum passageiro interessado em ir para Rechovot. Todos aguardavam o ônibus para Jerusalém, que não chegava.

Quando o motorista ia fechar as portas, com o ônibus completamente vazio, um homem da fila teve uma ideia. Ele perguntou ao motorista se ele não poderia levá-los para Jerusalém, já que não havia passageiros para Rechovot. O motorista disse que não podia fazer isto, pois tinha que seguir as ordens de seus superiores. As pessoas então começaram a insistir muito com o motorista. Havia muitas crianças, algumas já estavam até dormindo, deitadas na rua, com as cabeças apoiadas nas malas. Começaram a apelar para que ele fizesse aquele ato de Chessed (bondade), que tivesse misericórdia das pessoas. O motorista ficou em dúvida e disse que, por um lado, estava com dó de todos aqueles passageiros, mas por outro lado tinha muito medo da reação de seu chefe quando descobrisse que ele havia ido para outro destino. As pessoas tentaram convencê-lo a ir para Jerusalém, garantindo que, caso ele fizesse aquela Mitzvá, certamente D'us o protegeria de qualquer dano. O motorista finalmente se dobrou diante da insistência de todos. Ele levantou, mudou a placa do ônibus para "Jerusalém" e permitiu que todos subissem. As pessoas agradeceram, todos que subiam no ônibus o abençoam pelo incrível ato de bondade. Apesar de tanta espera, todos viajavam felizes, com seus corações agradecidos. Porém, Moishe não estava tranquilo. Ele havia ficado preocupado com o motorista, que poderia estar com o emprego em risco. Provavelmente ele tinha uma família para sustentar e ficaria em uma situação muito difícil caso perdesse o emprego. Começou então a conversar com o motorista e perguntou como ele explicaria para o chefe a mudança de destino. O motorista pediu para Moishe se aproximar. Olhou para ele, deu um sorriso e disse em voz baixa:

- Como você está realmente preocupado comigo, vou te contar a verdade. O destino verdadeiro deste ônibus já era Jerusalém. Porém, houve uma falha na central de ônibus e acabaram me mandando vir bem mais tarde, com mais de uma hora de atraso. Não foi minha culpa, mas eu sabia que as pessoas não iriam passar no teste. Elas estariam muito bravas, talvez chegassem até mesmo a me agredir fisicamente. Por isso, antes de chegar ao ponto, decidi mudar a placa do ônibus para "Rechovot". Assim, quando novamente mudei a placa para "Jerusalém", as pessoas ficaram felizes. Ao invés de me agredirem, elas me deram Brachót. Não me arrependo do que fiz. Simplesmente ajudei as pessoas a passarem no teste, diminuído a dificuldade para elas.
Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Behar (literalmente "Na montanha") e Bechukotai (literalmente "Nas Minhas leis"), terminando o terceiro livro da Torá, Vayikrá. Um dos assuntos trazidos na Parashat Behar é sobre as leis de "Shemitá", o ano Sabático, quando os campos em Israel devem passar por um descanso forçado. Após seis anos de trabalho, quando chega o sétimo ano, as pessoas não podem arar, semear nem irrigar seus campos. Além disso, a Parashat também traz outra importante Mitzvá, chamada de "Yovel" (Jubileu). Após 7 ciclos de Shemitá, totalizando 49 anos, vinha o ano 50, o ano do Yovel, que trazia consigo algumas Mitzvót especiais. Entre elas estava a Mitzvá de devolver todos os campos em Israel, inclusive os que haviam sido vendidos, aos seus verdadeiros donos. Mas o que significa esta "devolução da terra"?

Quando o povo judeu entrou em Israel, liderado por Yoshua bin Nun, cada uma das tribos foi alocada em um local específico de Israel. A terra foi toda dividida em pequenas porções, que foram entregues às famílias como parte de sua herança pessoal e foram sendo passadas de geração em geração. Portanto, mesmo que a pessoa vendesse sua terra, isto não se tratava de uma venda permanente, e sim um "aluguel", que durava até o ano do Yovel. Neste ano, as terras voltavam aos seus verdadeiros donos, conforme está escrito: "E a terra não será vendida de maneira permanente, pois toda a terra é Minha" (Vayikra 25:23).

De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), este versículo não é apenas uma narrativa, ele traz uma proibição que se aplica ao comprador de um campo. A Torá está ordenando ao comprador que ele não se recuse a devolver a terra ao seu verdadeiro dono quando o ano do Yovel chegar. Caso o fizesse, estaria cometendo uma transgressão da Torá. Porém, o Ramban (Nachmânides) (Espanha, 1194 - Israel, 1270) discorda de Rashi, já que o enfoque do versículo está na proibição da venda de forma permanente, não da compra. Por isso, a proibição parece recair sobre o vendedor, não sobre o comprador. Portanto, de acordo com o Ramban, uma pessoa que vende uma terra em Israel e sugere ao comprador que, apesar das leis do Yovel, a venda será para sempre, está violando esta proibição da Torá. Mesmo que o Beit Din (Tribunal Rabínico) force a volta da terra ao seu legítimo dono no ano do Yovel, o vendedor já cometeu uma transgressão no momento da venda, por ter sugerido ao comprador que a venda seria permanente.

É fácil entender a proibição de acordo com o entendimento de Rashi, que a proibição se aplica ao comprador. Se um comprador não quer devolver a terra ao seu dono, isto é roubo, uma apropriação indevida. Porém, como entender qual é a transgressão de acordo com o entendimento do Ramban, de que a Mitzvá está relacionada com o vendedor?

Explica o Ramban que qualquer pessoa que já precisou vender uma casa na qual viveu por muitos anos sabe o quanto isto é doloroso. As casas têm valores sentimentais, pois há muitas memórias associadas a elas. Se alguém tivesse comprado, por exemplo, uma casa no 5º ano da contagem do Yovel, ele teria vivido nesta casa por 45 anos. Neste período, ele provavelmente teria se casado e criado seus filhos e netos ali. As pessoas se conectam ao lugar onde vivem, elas amam suas casas. Após 45 anos vivendo ali, seria muito difícil simplesmente a pessoa se levantar e dizer ao dono da terra: "Você tem razão, a casa é sua, não minha". A Torá quer diminuir a dificuldade e o sofrimento do comprador, quer ajudá-lo a devolver a propriedade no momento certo. Por isso o vendedor deve lembrar ao comprador, logo no primeiro dia, que aquela terra para onde ele está se mudando, e onde ele viverá por muitos e muitos anos, não é dele. O vendedor não deve dar nenhuma sugestão ao comprador de que a venda é permanente. Ao contrário, ele deve ressaltar, logo no início do acordo, de que não se trata de uma venda permanente, e sim apenas um aluguel por um período limitado de tempo.

De acordo com o Rav Yssocher Frand, as pessoas não ficam psicologicamente conectadas às propriedades alugadas. As pessoas não se conectam emocionalmente aos quartos de hotéis onde se hospedam, pois têm total claridade que aquela propriedade não pertence a elas. A Torá quer fazer com que o teste de cumprir a Mitzvá de devolver as terras aos seus verdadeiros donos venha com o mínimo de sofrimento e dificuldade. É por isso que a Torá nos ensina que é proibido ao vendedor dar a impressão de que a venda é definitiva, o que poderia causar com que o comprador se conectasse com algo que não é verdadeiramente seu, é apenas alugado. Passar esta falsa impressão ao comprador acabaria aumentando a dificuldade no teste de devolver esta terra no momento em que o Yovel chegasse.

Explica o Rav Israel Salanter zt"l (Lituânia, 1810 - Prússia, 1883) que a vida é cheia de testes e dificuldades. Muitas vezes é difícil cumprir as Mitzvót ou deixar de fazer transgressões. Por isso, temos que tentar transformar o cumprimento da Torá em algo que seja o mais fácil possível para nós. Não devemos tentar bater de frente com o nosso Yetser Hará (má inclinação). Precisamos sempre fugir das tentações e evitar nos colocarmos em cenários que possam aumentar as dificuldades no cumprimento das leis da Torá. Da mesma maneira que uma pessoa que está de dieta não deve frequentar uma padaria, assumindo que terá o autocontrole necessário para ignorar o aroma delicioso daqueles doces que poderiam destruir seu plano de dieta, assim também uma pessoa não deve assumir que poderá resistir ao seu Yetser Hará quando surgirem tentações que podem levar a transgressões da Torá. A pessoa deve sempre procurar um caminho de vida no qual ela evita as tentações, ao invés de desafiar seu Yetser Hará e, muitas vezes, sucumbir a ele.

Este conceito pode ser observado no comportamento de Yaacov quando ele se preparava para ir embora da casa de seu sogro Lavan. Após 20 anos trabalhando para Lavan, D'us apareceu para Yaacov em uma noite e o comandou a voltar para sua casa em Israel. Yaacov então se encontrou na manhã seguinte com suas duas esposas, Rachel e Lea, para informá-las da mensagem de D'us. Como seria a reação esperada de Yaacov? Que ele simplesmente anunciasse para as esposas que D'us havia aparecido para ele e que havia ordenado que arrumassem as malas e fossem embora. Porém, não foi o que Yaacov fez. Ele começou a apresentar uma série de motivos lógicos para justificar o quanto estava sendo difícil permanecer na casa de Lavan e o quanto seria vantajoso ir embora. Somente como uma reflexão final foi que Yaacov acrescentou a ideia de que D'us os havia ordenado a ir embora. Por que Yaacov não foi direto ao ponto, de que D'us havia ordenado que voltassem? Pois Yaacov sabia o quanto era difícil para uma filha abandonar a casa de seu pai. Ele sabia que seria um difícil desafio para suas esposas. Então Yaacov tentou diminuir o teste delas, demonstrando que, também por motivos lógicos, ir embora era o melhor a se fazer. Yaacov primeiro deu às suas esposas a motivação psicológica para abandonar a casa de seu pai e, somente depois, jogou a ideia de que isto era o que D'us queria delas.

De acordo com o Ramban, o vendedor da terra deveria ter sensibilidade com o comprador. Ele deveria se esforçar para facilitar ao comprador cumprir a Mitzvá de devolução da terra. Ele deveria desde o princípio avisar: "Isto não é uma venda. Não crie falsas esperanças, não se engane". Quando uma pessoa tem claridade desde o princípio de que é uma casa alugada, ela evita a sensação ruim de abandonar a "sua casa". Ela sabe que está abandonando apenas uma casa onde morou e viveu, mas que nunca foi verdadeiramente sua.

Cumprir Mitzvót já é suficientemente difícil sem precisarmos nos expor a outros tipos de testes. Devemos ser sábios e tentar diminuir os testes no cumprimento das Mitzvót. Devemos evitar ao máximo nos colocar em situações difíceis, nas quais fica mais difícil não transgredir. O Chafetz Chaim (Bieloríssia, 1838 - Polônia, 1933), por exemplo, nos ensina que uma pessoa não deve nem mesmo ir a um lugar no qual ela sabe que há pessoas reunidas falando Lashon Hará (maledicência), pois se ela for, acabará ficando, e se ela ficar, acabará também falando Lashon Hará. A dica então é cortar o mal pela raiz, não se expor ao teste, para conseguirmos vencer o nosso Yetser Hará. Com sabedoria, e com a ajuda de D'us, assim conseguiremos cumprir as Mitzvót e evitar as transgressões que possam surgir no nosso caminho.

Shabat Shalom

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Parashat Behar-Bechukotai (Leviticus 25:1 - 27:34)

domingo, 19 de novembro de 2017

QUEM DÁ VIDA RECEBE VIDA - PARASHÁ TOLDOT 5778

O Sr. Meir, um viúvo bem idoso, vivia sozinho. Mesmo tendo trabalhado muito durante sua vida, agora ele já não tinha mais forças e o dinheiro estava no fim. Ele tinha três filhos, todos casados, mas que infelizmente estavam tão ocupados com suas famílias que quase não tinham tempo para visitá-lo. Sentia-se cada vez mais fraco e as visitas dos filhos eram cada vez mais raras. Ele se sentia um peso para os filhos, mas não podia mais ficar sozinho em casa.
 Preocupado com seu futuro, ele teve uma ideia. Chamou um amigo carpinteiro e pediu que lhe fizesse um baú, como os antigos baús de tesouro. Encheu o baú, trancou-o e deixou-o no fundo do armário da cozinha, junto com os pratos e talheres. Certo dia, quando seus filhos vieram jantar em sua casa, eles abriram o armário e descobriram o baú. Curiosos, eles perguntaram que havia dentro. O Sr. Meir, fingindo ter sido pego de surpresa, respondeu que não havia nada de especial, apenas algumas coisinhas que havia juntado durante a vida.
 Os filhos perceberam, ao ajudarem o pai a recolher a mesa, que o baú era pesado e que, ao ser movido, produzia um barulho como o de moedas. Os olhos deles brilharam, imaginando a fortuna que havia lá dentro. Mas ficaram preocupados, pois o pai já estava velhinho e alguém poderia roubar o baú. Decidiram que deveriam vigiar aquele baú dia e noite. Organizaram-se para que em cada semana um dos irmãos fosse morar com o pai. O Sr. Meir não cabia em si de contentamento.
 Algum tempo depois, o Sr. Meir adoeceu gravemente e faleceu. Os filhos organizaram um enterro digno, pois sabiam que uma fortuna os esperava, que certamente compensaria todo aquele gasto. Depois do enterro, os três irmãos procuram por toda a casa a chave do baú. Quando abriram, descobriram que o baú estava cheio... de cacos de vidro. O irmão mais novo ficou muito irritado, se sentiu enganado. Porém, o irmão mais velho, após refletir, disse:
 - Infelizmente fomos nós que causamos que o papai nos enganasse. Se ele não tivesse feito isso, não teríamos cuidado dele até o fim de sua vida. Estou envergonhado. Não o tratamos como ele merecia...

Um dos filhos esvaziou o baú, para ter certeza que não continha nenhum objeto de valor. Encontrou, no fundo, algo valioso. Era uma inscrição, na qual se lia: "Quinto mandamento: Honrará seu pai e sua mãe".
Nesta semana lemos a Parashá Toldot (literalmente "Gerações"), que descreve o nascimento dos irmãos gêmeos Yaacov e Essav. Enquanto Yaacov se tornou um grande Tzadik (justo) e dedicou sua vida ao estudo da Torá e aos bons atos, Essav se tornou um grande Rashá (malvado), dedicado à caça e aos maus atos, como assassinato e adultério. Como Essav era o filho primogênito, ele merecia receber de seu pai Ytzchak a Brachá (benção) de primogenitura. Yaacov acabou comprando de Essav a primogenitura por um mísero prato de lentilhas, porém não teve coragem de contar ao pai que Essav desprezava a espiritualidade a este ponto.
 Porém, se Essav era alguém tão ruim, que cometia transgressões tão graves, como seu pai não conhecia sua má índole? Essav conseguia enganar seu pai, em especial porque ele cumpria a Mitzvá de "Kibud Av Ve Em" (honrar os pais) de maneira exemplar. Um exemplo do nível de honra que Essav dava ao seu pai pode ser visto no momento em que Ytzchak quis dar ao seu filho Essav a Brachá de primogenitura. Rivka, esposa de Ytzchak, sugeriu ao seu filho Yaacov que entrasse no lugar de seu irmão para receber a Brachá. Yaacov ficou com medo de ser desmascarado, apesar de Ytzchak já estar cego. Rivka o tranquilizou e, para garantir que não haveria problemas, ela vestiu Yaacov com algumas roupas de Essav que ela tinha em casa. Que roupas eram aquelas? De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), era um jogo de roupas limpas que Essav deixava na casa de seus pais e as vestia toda vez que servia seu pai. Segundo outra opinião mencionada por Rashi, aquelas eram roupas reais que Essav havia roubado do rei Nimrod. Ele fazia questão de usar estas roupas reais todas as vezes que servia seu pai. Isto significa que a dedicação de Essav por seu pai era algo incrível, a ponto dele se trocar e vestir roupas limpas e honrosas todas as vezes que ia cumprir a Mitzvá de "Kibud Av Ve Em".
 Há um Midrash (parte da Torá Oral) que ressalta ainda mais a perfeição de Essav no cumprimento da Mitzvá de "Kibud Av Ve Em". Raban Shimon ben Gamliel declarou: "Toda minha vida eu servi meu pai, mas nunca atingi nem um por cento do nível de como Essav servia seu pai. Eu não prestava atenção à limpeza das roupas que eu estava vestindo (quando eu servia meu pai), somente quando eu saía em público eu prestava atenção às condições da roupa que eu vestia. Mas Essav, ao contrário, era rigoroso ao servir seu pai sempre com roupas limpas, mas não se importava de andar pelo mercado (em público) vestindo trapos". Isto significa que, mesmo nos esforçando muito, dificilmente chegaremos perto do nível de honra que Essav dedicava ao seu pai.
 Porém, há alguns detalhes da Parashá que aparentemente contradizem este conceito. A Torá nos revela que quando Yaacov tentou se passar por Essav para receber a Brachá no lugar dele, Ytzchak suspeitou que havia algo errado. De acordo com a Torá, o que traiu Yaacov foi sua voz, como está escrito: "Então Yaacov aproximou-se de Ytzchak, seu pai, e ele o apalpou e disse: "A voz é a voz de Yaacov, mas as mãos são as mãos de Essav" (Bereshit 27:22). Porém, de acordo com o Ramban zt"l (Nachmânides) (Espanha, 1194 - Israel, 1270), por Yaacov e Essav serem gêmeos, suas vozes eram idênticas. Então o que chamou a atenção de Ytzchak? Explica Rashi que enquanto Yaacov falava com seu pai de maneira respeitosa, pedindo a ele que por favor se sentasse para comer, Essav falava de forma impetuosa e sem educação. Mas como pode ser que Essav cumpria a Mitzvá de "Kibud Av Ve Em" de maneira tão completa e, ao mesmo tempo, falava com seu pai de maneira grosseira?
 Além disso, Essav se casou com mulheres indignas, o que causou muito desgosto aos seus pais. Nossos sábios ensinam que a fumaça produzida pelos serviços de idolatria feitos pelas esposas de Essav contribuíram para que Ytzchak perdesse precocemente a visão. Como Essav podia se comportar de maneira tão insensível em relação ao sentimento dos seus pais e, ao mesmo tempo, cumprir com perfeição a Mitzvá de "Kibud Av Ve Em"?
 Explica o Rav Yohanan Zweig que, de acordo com os sábios do Talmud (parte da Torá Oral), nossos pais devem ser honrados pelo simples fato de terem nos dado a existência, isto é, por terem nos trazido ao mundo. Este reconhecimento de que devemos nossa própria vida aos nossos pais pode causar dois tipos de sentimentos: uma sensação de endividamento ou um profundo sentimento de gratidão. Mas o que isto muda na prática?
 Normalmente não gostamos de nos sentir endividados, isto nos causa uma sensação negativa, da qual queremos nos libertar. Uma pessoa que tem uma dívida preferia nunca ter se endividado. A cada parcela paga da dívida, ela se sente um pouco mais livre. Quando a pessoa finalmente consegue quitar sua dívida, ela se sente completamente libertada. Portanto, tudo o que ela faz em relação ao pagamento da dívida causa a ela uma sensação agradável de libertação e isenção e, portanto, ela faz de tudo para terminar a dívida o mais rápido possível. Paralelamente, uma pessoa que serve seus pais apenas porque sente um tremendo senso de endividamento servirá seus pais apenas como uma maneira de "pagar" esta dívida, pois se sente incomodado.
 Por outro lado, uma pessoa que sente profunda gratidão pelos pais quer dedicar sua existência a eles. Uma forma de retribuir aos nossos pais por terem nos dado a nossa própria existência é dar a eles também existência. Isto ocorre quando nos minimizamos perante eles, reconhecendo a superioridade deles sobre nós, o que se expressa na prática quando escutamos o que eles têm a nos ensinar e andamos nos caminhos que eles nos indicam. Podemos dar vida aos nossos pais mostrando nossa devoção e anulação perante eles.
 É claramente mais fácil realizar um serviço com entusiasmo quando percebemos que estamos nos libertando através de nossas ações, e não que estamos nos limitando e nos reduzindo. É por isto que vemos um entusiasmo nos atos de "Kibud Av Ve Em" de Essav. Não porque havia uma motivação verdadeira de honrar os pais e engrandecê-los. Essav não se importava de verdade com seus pais, por isso fazia escolhas equivocadas que causavam tanto sofrimento a eles. Essav não se submetia à vontade de seu pai quando ela ia contra seu modo de vida. Essav se sentia endividado e, procurando por sua independência, servia seu pai como forma de pagamento. Ele sabia que quanto mais perfeito fosse seu serviço, menos dívida restaria para pagar. Ele se esforçava em um nível sobre-humano para servir seu pai, mas não se esforçava em aprender o que seu pai lhe ensinava. Ele trocava suas roupas externamente para servir seu pai, mas não se interessava em se anular perante ele e mudar por dentro.
 A forma ideal de honrarmos nossos pais é, por um lado, fazermos com o mesmo entusiasmo de Essav, buscando a perfeição em cada detalhe de como servimos eles, porém junto com a motivação correta, que é a vontade de nos comportarmos com submissão perante eles, dando assim uma maior existência aos nossos pais.
 Honrar os pais não é uma Mitzvá fácil de ser cumprida, mas é uma das poucas Mitzvót da Torá cuja recompensa está explícita: "Honre seu pai e sua mãe, para que se alonguem seus dias" (Shemot 20:12). O Talmud (Kidushin 39b) ensina que esta recompensa se refere à vida eterna no Mundo Vindouro. Por que esta é a recompensa adequada? Pois quando os honramos nossos pais da maneira correta, estamos dando a eles vida. D'us então nos recompensa "medida por medida", nos dando um nível de existência máxima, a vida eterna no Mundo Vindouro.
 Pelo fato de Essav, um Rashá, ter conseguido se destacar nesta importante Mitzvá, isto torna a nossa responsabilidade e o nosso desafio ainda maiores. Os pais cuidam dos filhos desde o nascimento e literalmente dão a vida por eles. Temos, portanto, a obrigação de devolver isto aos nossos pais. Da mesma maneira que um bebê é frágil e precisa de cuidados, o mesmo ocorre com um idoso, que se torna frágil e precisa de atenção, carinho e cuidados da família. Da mesma forma que recebemos vida dos nossos pais, que possamos dar a eles vida e, assim, receber de D'us a vida verdadeira, a vida eterna.

Shabat Shalom

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 25:19-28:9, Ml. 1:1-2:7

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

QUEM CONTROLA QUEM? - PARASHÁ CHAIE SARA 5778 (


"O Rav Shlomo Brevda zt"l (EUA, 1931 - 2013) certa vez encaminhou um jovem estudante de Torá dos Estados Unidos, com um enorme potencial, para uma Yeshivá muito forte em Israel, para que ele pudesse continuar seu caminho de crescimento espiritual. Porém, pouco tempo depois, o rapaz voltou desanimado, dizendo que não estava interessado em continuar estudando naquela Yeshivá. O Rav Brevda não entendeu a decisão do rapaz, pois a Yeshivá era muito conhecida por seu estudo de Torá em altíssimo nível. Ele então perguntou ao jovem o que havia de errado e o rapaz explicou:

- Rav, quando eu cheguei na Yeshivá, fiquei muito impressionado. Eu entrei no Beit Midrash e vi centenas de alunos completamente absortos em seus estudos, discutindo trechos da Guemará como se estivessem lutando por suas vidas. Foi algo que me deixou extremamente feliz e esperançoso de que aquele seria o lugar onde eu poderia crescer no meu estudo.

- Então o que aconteceu para você ter voltado tão desanimado? - perguntou o Rav Brevda.

- Da mesma maneira que eu me surpreendi quando eu entrei no Beit Midrash e vi os rapazes estudando, eu me surpreendi quando chegou a hora do almoço. Vi aqueles mesmos jovens que estudavam Torá com tanto vigor enchendo seus estômagos com o mesmo entusiasmo. Pareciam escravos de seus estômagos! Foi uma grande decepção. Não acho que é neste lugar que eu vou conseguir crescer espiritualmente".

Ensinam nossos sábios que uma pessoa não consegue viver ao mesmo tempo em dois mundos. Uma pessoa que se entrega aos seus desejos materiais certamente nunca atingirá seu verdadeiro potencial espiritual.
A Parashá desta semana, Chaie Sara (literalmente "A vida de Sara"), nos ensina que, mesmo depois de passar o teste de sacrificar seu próprio filho, as dificuldades na vida de Avraham ainda não haviam terminado. Quando ele voltou para casa, feliz por trazer de volta seu filho, ele encontrou Sara, sua esposa, morta. Começaram então longas negociações com o astuto Efron, um Chitita que habitava na Terra de Israel, para adquirir dele o local para o enterro de Sara. Após Efron inicialmente oferecer a terra gratuitamente para Avraham, no final ele acabou cobrando um valor abusivo de 400 moedas de prata.

Se prestarmos atenção nos versículos que descrevem a negociação de Avraham com Efron, perceberemos que sempre o nome Efron é escrito com a letra "vav" (עפרון), mas justamente no trecho que descreve que a transação foi finalmente realizada através da entrega do dinheiro (Bereshit 23:15), seu nome está escrito sem a letra "vav" (עפרן). Por que esta diferença, justamente neste versículo?

De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), a falta de uma letra no nome de Efron vem nos ensinar que ele falou muito mas não fez nem mesmo um pouco. Inicialmente ele disse a Avraham que estava disposto a dar gratuitamente a terra, mas no final acabou cobrando um preço injusto, se aproveitando do momento delicado pelo qual passava Avraham.

Já o Rav Yaakov ben Asher zt"l (
Alemanha1269 - Espanha, 1343), mais conhecido como Baal HaTurim, explica que a Guemátria (valor numérico) de "Efron" sem a letra "vav" é 400, valor que coincide com a quantidade de moedas de prata que ele recebeu na venda de sua terra. Isto significa que quando Efron recebeu esta quantia enorme de dinheiro, isto deu a ele uma nova sensação de valor. A partir daquele momento ele passou a se enxergar como alguém que "valia" 400 moedas de prata, pois Efron se auto definia através do seu status financeiro. Efron foi vítima de uma das maiores enganações do nosso "Yetser Hará" (má inclinação), que nos faz enfatizarmos o nosso status material, ao invés de enfatizarmos nosso nível espiritual. Esta má inclinação atinge o ser humano desde o erro de Adam Harishon, quando o ser humano passou a ter mais consciência do seu corpo do que de sua alma. Tendemos a nos identificar como sendo um corpo, não uma alma. Por exemplo, quando uma pessoa está doente, ela diz: "Não me sinto bem", enxergando o corpo como sua principal identidade. Uma declaração mais precisa seria "meu corpo não se sente bem", o que implicaria que temos a consciência de que nossa alma é nossa essência. Portanto, uma das partes principais em nosso Serviço Divino é desenvolver uma maior consciência da nossa alma e de suas necessidades.

Além disso, através da explicação do Baal HaTurim sobre a "Guemátria" do nome Efron, podemos ganhar um entendimento ainda mais profundo sobre o relacionamento entre o corpo e a alma. Quando Efron recebeu as 400 moedas de prata, certamente ele achou que sua importância no mundo havia aumentado, pois agora ele era um homem rico. Entretanto, a verdade é que ele perdeu uma letra no seu nome, e o nome de uma pessoa representa sua essência. Isto quer dizer que, enquanto Efron achava que havia aumentado seu valor, na realidade ocorreu justamente o contrário, seu valor verdadeiro como ser humano diminuiu. Além disso, a letra "vav" que ele perdeu em seu nome é a letra que representa a conexão. A letra "vav" significa "e", e é utilizada muitas vezes para conectar ideias e frases. O formato da letra "vav" também demonstra sua habilidade de conectar, pois se assemelha a um gancho, através do qual podemos conectar duas coisas. Quando Efron se aprofundou em seu materialismo, ele automaticamente diminuiu sua espiritualidade e perdeu seu "vav", isto é, seu elemento de conexão com D'us. Isto significa que, quando uma pessoa dá mais importância para o seu corpo e seus bens materiais, então automaticamente sua alma perde algo.

Ensina o Rav Yehonasan Gefen que esta relação inversa entre o corpo e a alma também pode ser percebida na Parashá da semana que vem, Toldot. Nossa matriarca Rivka engravidou e ficou confusa, pois seu bebê se mexia quando ela passava diante de um Beit Midrash, mas também se mexia quando ela passava diante de um centro de idolatrias. Ela então foi se aconselhar com um dos profetas da época, que revelou que havia dois bebês no seu ventre e que deles sairiam duas nações que viveriam em constante conflito. Além disso, o profeta acrescentou que quando uma nação subisse, a outra automaticamente cairia. A explicação mais simples desta profecia é que, durante a história, as nações de Yaacov (Israel) e de Essav (Edom) se contrabalanceariam, isto é, quando uma subisse, a outra cairia. Porém, alguns comentaristas explicam que esta profecia se refere a outro tipo de batalha. Yaacov representa nossa alma, enquanto Essav representa nosso corpo, e há uma luta constante entre estas duas forças. Quando a alma se eleva, as forças de desejo do corpo consequentemente se enfraquecem, e quando a alma enfraquece, as forças de desejo do corpo dominam.

Daqui aprendemos que é impossível a pessoa se dedicar, ao mesmo tempo, ao preenchimento das vontades de seu corpo e ao preenchimento da sua alma. Muitos pensam que não há nenhuma contradição, pois é possível viver uma vida de Torá e Mitzvót e, ao mesmo tempo, passar a vida correndo atrás da satisfação material. Entretanto, em última instância, esta pessoa é apenas escrava do seu corpo. Ela pode até permitir que seu corpo cumpra as Mitzvót, mas o fato dela não conseguir se desvencilhar dos desejos materiais em excesso, como a busca por prazeres gastronômicos e por dinheiro, é um sinal de que seu corpo está no controle, não sua alma.

De acordo com o Rav Brevda, é importante que exista a consciência desta luta entre o corpo e a alma. O corpo é muito poderoso e muitas vezes supera nossa busca por espiritualidade, mas enquanto temos a consciência de que existe uma batalha, podemos nos esforçar para fortalecer nossa alma. O problema começa quando não existe nem mesma a consciência da batalha, e isto pode ocorrer até mesmo entre as pessoas que cumprem Torá e Mitzvót. Por exemplo, muitas pessoas não sentem nenhum tipo de conflito quando comem um bolo de chocolate mesmo quando não estão com fome, simplesmente devoram o bolo sem nem mesmo pensar no porquê estão comendo. Isto é sinal de que a pessoa não percebeu que seu corpo está no controle, não sua alma.

O que devemos fazer para pelo menos "nos sentirmos" nesta batalha? David Hamelech nos ensinou que há duas maneiras de lutarmos contra o Yetser Hará: "Se afasta de mal e faça o bem" (Salmos 34:14). "Se afaste do mal" significa tirar um pouco da força do materialismo do nosso corpo. Mas como podemos fazer isso? O Rav Brevda sugere, por exemplo, que a pessoa se sirva com um prato generoso, mas nunca repita o prato, por mais gostosa que esteja a comida. Isto nos ajuda a controlar o impulso de querer pegar mais, o que já nos faz pelo menos sentir que estamos em guerra com as forças do nosso corpo. Além disso, temos que trabalhar o "Faça o bem", investindo no nosso crescimento espiritual, pois ao crescer espiritualmente, automaticamente estaremos enfraquecendo as forças de desejo do corpo e sua conexão com o materialismo.

O Rav Yehuda Loew zt"l (Polônia, 1525 - República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, ressalta que quando Rashi explica sobre a profecia dos gêmeos na barriga de Rivka, ele apenas menciona que quando Yaacov cai, Essav se levanta, mas não menciona o outro lado. Isto nos ensina que é Yaacov que está no controle de quem vai prevalecer. Essav só pode subir quando Yaacov cai, mas quando Yaacov tem sucesso em seu crescimento, então Essav fica sem opção. O mesmo se aplica em relação à batalha entre o corpo e a alma. É nossa escolha quem vai vencer. Se nos esforçamos para fortalecer nossas almas, então a força do materialismo do nosso corpo automaticamente se enfraquecerá. A batalha entre o corpo e a alma é longa e desafiadora, mas, se se ao menos iniciarmos a batalha, então o sucesso estará em nossas mãos.

Shabat Shalom

R' Efraim Birbojm
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Gn.23:1-25:18, 1Rs.1:1-31

sábado, 26 de agosto de 2017

ANDANDO COM D'US - PARASHÁ SHOFTIM 5777

"Certa vez um policial antissemita viu dois judeus religiosos em uma moto. Ele quis dar uma multa naqueles judeus, mas precisava de algum motivo para isso. Montou em sua moto e começou a acompanhá-los, sabendo que mais cedo ou mais tarde eles fariam alguma manobra proibida. Provavelmente parariam a moto sobre a faixa de pedestres, ultrapassariam de maneira perigosa ou fariam uma conversão sem acionar o pisca alerta. Era só questão de tempo para poder multá-los.

Porém, o tempo começou a passar e o policial não os via cometendo absolutamente nenhuma falha. Eles respeitavam todas as leis de trânsito, acionavam o pisca alerta antes de qualquer conversão, aguardavam pacientemente o sinal verde e não andavam entre os carros. Depois de mais de meia hora perseguindo os dois judeus, o policial não aguentou mais. Muito irritado, ele mandou-os descerem da moto e disse:

- Vou falar a verdade para vocês. Estou há meia hora acompanhando a moto de vocês, de olho em tudo o que vocês fazem, e estou impressionado. Vocês não fizeram absolutamente nada errado! Como isto é possível?

- É fácil para nós evitarmos fazer coisas erradas - respondeu um dos judeus - pois sabemos que D'us está nos observando o tempo inteiro. Quando andamos de moto, sabemos que D'us está conosco na moto.

O policial, ao escutar isso, deu um sorriso maldoso, tirou do bolso seu talão de multas e disse:

- 3 na moto? Estão multados..."

Apesar da piada, o verdadeiro segredo de não cometermos transgressões é vivermos com a certeza de que a presença de D'us está sempre conosco, em tudo o que fazemos, mesmo nos pequenos detalhes do cotidiano.
Nesta semana lemos a Parashá Shoftim (literalmente "Juízes"), que começa nos ensinando sobre a importância de estabelecermos um sistema de justiça, com juízes para fazerem os julgamentos e policiais para fazerem a lei se cumprir na prática, como está escrito: "Vocês devem estabelecer para vocês juízes e policiais nas cidades que D'us está dando para vocês" (Devarim 16:18).

De acordo com algumas opiniões, a divisão das Parashiót semanais da forma que nós seguimos atualmente ocorreu na época do Exílio da Babilônia, após a destruição do Primeiro Beit HaMikdash (Templo Sagrado). Porém, na própria Torá já há um sistema de divisão de assuntos, também chamado de "Parashiót". Em um Sefer Torá temos as "Parashiót Petuchót" (literalmente "trechos abertos") e as "Parashiót Stumót" (literalmente "trechos fechados"). Explicando de maneira superficial, no Sefer Torá uma "Parashá Petuchá" começa como uma nova linha em relação ao assunto anterior e define um novo capítulo, enquanto uma "Parashá Stumá", apesar de separada por alguns espaços em branco, começa na mesma linha do assunto anterior e define apenas um novo parágrafo.

O primeiro assunto trazido na nossa Parashá, que fala sobre o estabelecimento de juízes, é uma "Parashá Stumá", isto é, não define um novo capítulo em relação ao assunto anterior, apenas um novo parágrafo. A Parashá da semana passada, Reê, terminou com o ensinamento dos "Shalosh Regalim", as três grandes Festividades (Pessach, Shavuót e Sucót) nas quais cada judeu tinha a obrigação de ir até Jerusalém para oferecer um Korban (sacrifício) no Beit Hamikdash. O último dos Shalosh Regalim mencionados na Parashá é a Festa de Sucót, na qual dormimos por uma semana em cabanas ao ar livre. Se a Torá não fez nenhuma "quebra" entre estes dois assuntos, significa que há alguma conexão forte entre eles. Qual é a mensagem que a Torá está nos transmitindo?

Existem leis que definem como deveriam ser estabelecidos os Tribunais de Justiça em cada cidade da Terra de Israel. De acordo com o Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 - Egito, 1204), cada cidade deveria ter um "Pequeno Sanhedrin", composto por 23 juízes. Além disso, cada juiz precisava ter dois suplentes, chegando a um total de 69 juízes para compor o Tribunal de Justiça local. E a obrigação do estabelecimento de um "Pequeno Sanhedrin" se aplicava a qualquer cidade com mais de 120 habitantes.

Porém, este ensinamento do Rambam desperta um grande questionamento. Qual é a lógica de estabelecer um Tribunal de Justiça composto por 69 juízes em uma cidade de 120 habitantes? Quantos casos judiciais este Tribunal teria que julgar para justificar este número tão grande de juízes em uma cidade com tão poucas pessoas? E se até pequenas cidades de 120 habitantes tinham um Tribunal de Justiça, então o número de Tribunais em toda a Terra de Israel chegava a milhares. Qual é a necessidade de tantos Tribunais de Justiça e de tantos juízes?

Explica o Rav Yohanan Zweig que a função de um Tribunal de Justiça não é apenas aplicar a lei e fazer a justiça prevalecer. Além de obviamente manter a ordem e a justiça, o juiz deve ser um canal para as palavras de D'us. Ele tem a obrigação de criar uma sociedade na qual presença de D'us pode ser constantemente sentida. Mas por que isto é tão importante? O papel do juiz não deveria ser apenas causar o temor nas pessoas de que o descumprimento da lei tem como consequência a aplicação de castigos pelo Tribunal?

A experiência demonstra que um sistema de justiça construído apenas com base na premissa de que as pessoas não cometerão transgressões por medo das consequências normalmente não tem sucesso. Por exemplo, quando a pessoa percebe que há brechas na lei, ela se sente estimulada a transgredir. Quanto menores forem os riscos de ser pego e punido e maiores forem os ganhos com a transgressão, maior será o número de pessoas que optará por transgredir a lei. É justamente isto que está ocorrendo na atual crise política brasileira. A aplicação da lei no Brasil é extremamente falha e os políticos sabem que, enquanto a chance de realmente serem punidos é muito pequena, a possibilidade de desvio de dinheiro envolve milhões de reais. Isto causa com que a grande maioria dos políticos decida que vale a pena ser desonesto e desrespeitar a lei. Mesmo aqueles que são pegos pela justiça, principalmente através das delações, acabam sendo soltos pouco tempo depois ou pegam penas muito pequenas, desproporcionais aos milhões desviados. Em outras palavras, há muita corrupção no Brasil pois, na maioria dos casos, os crimes não são punidos pela justiça, fazendo com que o crime "valha a pena".

Porém, isto não acontece apenas no Brasil. Em qualquer lugar do mundo, em épocas de desastres naturais, guerras ou apagões, aumenta muito o número de delitos, como saques a lojas e casos de violência. Por que? Quando a cidade está um caos, as pessoas sabem que a polícia não dará conta de prender todos os transgressores e, por isto, se sentem estimuladas a cometer maus atos. É o que nos ensinam os nossos sábios: "Se não fosse pelo temor (das autoridades), a pessoa engoliria seu companheiro vivo" (Pirkei Avót 3:2).

Então qual é a solução para desenvolvermos uma sociedade justa e equilibrada? Enquanto no Brasil as manchetes dos jornais estão sempre recheadas de notícias sobre roubos e desvios, na cidade de Bnei Brak, em Israel, frutas são oferecidas na rua sem vendedor e livros são vendidos nas sinagogas sem ninguém vigiando. Há apenas uma caixinha onde o comprador deixa o dinheiro da compra, sem nenhum tipo de controle. E o mais incrível é que a cidade de Bnei Brak não tem nenhuma delegacia de polícia. Qual é o segredo? A Torá nos ensina que há apenas um sistema efetivo para impedir que as pessoas cometam transgressões: quando entendemos que há algo intrinsecamente errado em violar a lei, independente de qualquer futura punição aplicada pela Justiça ou pela polícia. Portanto, um judeu não deve cumprir as leis apenas pelo medo do castigo aplicado pelo Tribunal, mas principalmente pelo medo da transgressão por si só. Quando as pessoas vivem com a consciência de que D'us vê tudo o que ocorre e que todos os nossos atos têm consequências, desenvolvem uma sociedade verdadeiramente honesta.

Podemos utilizar este conceito para responder os nossos questionamentos. Apesar de um juiz também ter como função a aplicação dos castigos aos que transgridem a lei, sua principal contribuição deve ser justamente criar esta atmosfera necessária de temor a D'us. Se o propósito do sistema judicial fosse apenas criar o medo do castigo, não seriam necessários tantos juízes, ao contrário, um reforço da força policial seria muito mais efetivo. Porém, como o propósito principal de um juiz é criar uma sociedade onde a presença de D'us é palpável, então é possível entender a necessidade de tantos juízes, até mesmo em cidades tão pequenas.

Esta também é a conexão com a Festa de Sucót, na qual abandonamos nossas casas e, por uma semana, vivemos na "sombra de D'us". Da mesma forma que o propósito de um juiz é trazer à sociedade uma atmosfera da presença de D'us, a Sucá também é um lugar onde a presença de D'us é sentida de uma maneira mais palpável. E um dos principais motivos de passarmos uma semana inteira dentro da Sucá é para trazermos para o ano inteiro esta percepção mais palpável da presença de D'us entre nós.

Estamos entrando no mês de Elul, o último mês antes do nosso julgamento de Rosh Hashaná. É a chance de consertarmos os nossos erros e fazermos decisões verdadeiras de melhorar. A claridade de que D'us está sempre perto é fundamental para evitarmos as transgressões e para nos incentivar no nosso crescimento espiritual. Normalmente erramos por termos sempre desculpas e justificativas para fugir das nossas responsabilidades. Mas com a consciência de que D'us está presente em cada momento podemos ser mais honestos com nós mesmos. Além disso, viver constantemente com D'us ao nosso lado nos dá muito mais segurança e tranquilidade. 
"D'us está onde permitem que Ele entre" (Kotzke Rebe)
Shabat Shalom

R' Efraim Birbojm
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sábado, 19 de agosto de 2017

BONDADES VERDADEIRAS - PARASHÁ REÊ 5777

"Um soldado americano que participou da terrível guerra do Vietnã, após meses sem contato com a família, conseguiu ligar para os seus pais, que viviam em São Francisco, e lhes disse:

- Queridos pais, a guerra acabou, estou voltando para casa. Mas eu queria pedir a vocês um favor. Eu tenho um amigo, que lutou comigo na guerra, e queria que ele viesse morar conosco em casa. Ele não tem para onde ir.

- Claro, meu filho, nós adoraríamos conhecê-lo! - disseram os pais.

- Mas há algo que vocês precisam saber - disse o filho - Ele foi ferido na última batalha que participamos. Pisou em uma mina e perdeu um braço e uma perna. O pior é que ele não tem família nem outro lugar para ir. Por isso eu gostaria que ele viesse morar conosco, para podermos ajudá-lo.

- Eu sinto muito em ouvir isso, filho. Talvez nós podemos ajudá-lo a encontrar um lugar onde ele possa morar e viver tranquilamente. Mas alguém com tanta dificuldade seria um grande fardo para nós. Temos nossas próprias vidas e não podemos deixar que alguém assim interfira em nosso modo de viver. Acho que você deveria voltar pra casa e esquecer este amigo. Não se preocupe, ele encontrará uma maneira de viver...

Neste momento o filho desligou o telefone. Alguns dias depois os pais receberam um telefonema da polícia de Nova York. O filho havia morrido depois de ter caído de um prédio. A polícia acreditava em suicídio. Os pais, angustiados, voaram para Nova York e foram levados para identificar o corpo do filho. Eles o reconheceram, mas descobriram algo terrível: o filho havia sido ferido na guerra e tinha perdido um braço e uma perna..."

Achamos fácil amar aqueles que são bonitos ou divertidos, mas não gostamos das pessoas que nos incomodam ou nos fazem sentir desconfortáveis. E você? O seu amor tem condições?
Na Parashá desta semana, Reê (literalmente "Veja"), um dos assuntos trazidos é a Mitzvá de Tzedaká, ajudar e se importar com as pessoas necessitadas. E assim está escrito: "Se houver alguma pessoa destituída entre vocês, algum dos seus irmãos em alguma das suas cidades... você não deve endurecer seu coração nem fechar sua mão para seu irmão destituído. Ao contrário, você deve abrir sua mão para ele; você deve emprestar o que ele necessita, tudo o que está faltando para ele" (Devarim 15:7,8). É interessante perceber que o versículo começa com as palavras "você deve abrir sua mão para ele", como se estivesse referindo-se a uma doação generosa, um presente ao pobre destituído, mas depois o versículo continua com a linguagem "emprestar o que ele necessita", referindo-se apenas a um empréstimo. Por que o versículo aparentemente mudou o contexto da ajuda ao pobre?

De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), das palavras "você deve abrir sua mão para ele" aprendemos que, quando estamos diante de alguém destituído, devemos ajudá-lo dando-lhe dinheiro com generosidade, sendo proibido comportar-se de maneira mesquinha. Porém, das palavras "você deve emprestar" aprendemos que, caso a pessoa se sinta humilhada por estar recebendo algo de presente, sem nenhum tipo de esforço, então devemos ajudá-la através de um empréstimo, permitindo que ela mantenha sua dignidade e sua autoestima.

Nos versículos seguintes a Torá traz uma dura advertência em relação ao empréstimo de dinheiro a um necessitado: "Se cuide para que um pensamento ruim não suba ao seu coração e você diga: 'Se aproxima o sétimo ano, o ano da Shemitá', e seus olhos serão maldosos com seu irmão destituído e se recusará a dar para ele. E ele apelará contra você para D'us e será uma transgressão para você" (Devarim 15:9). O versículo está nos ensinando sobre uma pessoa que se recusa a emprestar dinheiro ao necessitado por causa da aproximação do ano de Shemitá. E por que a pessoa se recusaria a fazer um empréstimo a um necessitado? Pois a cada sete anos completamos um ciclo de Shmitá. No sétimo ano deste ciclo não podemos trabalhar nos campos e nem ter proveito financeiro das nossas colheitas na terra de Israel. Além das implicações agrícolas, também há implicações financeiras. Por exemplo, qualquer dívida é automaticamente anulada após a passagem do ano de Shemitá. Por isso a pessoa tem medo que, ao emprestar dinheiro próximo ao ano de Shemitá, não haverá tempo suficiente para que a dívida seja paga e ela será automaticamente cancelada, causando uma perda. A Torá então nos adverte a não sermos mesquinhos e não deixarmos de emprestar a um necessitado, mesmo quando o ano de Shmitá estiver próximo e a chance da pessoa não pagar a sua dívida for maior.

Porém, é difícil entender por que a Torá traz esta advertência logo depois do ensinamento anterior. De acordo com a explicação de Rashi, o versículo estava falando sobre uma pessoa que estava disposta a doar seu dinheiro com generosidade para uma pessoa necessitada, sem exigir nada em troca, e decidiu fazer a bondade através de um empréstimo apenas pela dignidade da pessoa necessitada, para que ela não se sentisse humilhada. Então por que a Torá precisou logo depois dar esta advertência para que a pessoa não deixasse de ajudar com um empréstimo quando se aproximasse o ano de Shmitá? Se a pessoa já estava disposta a dar todo o dinheiro como presente, por que estaria preocupada com o cancelamento da dívida?

Explica o Rav Yohanan Zweig que D'us, nosso Criador, conhece todos os mecanismos psicológicos que atuam sobre o ser humano. Quando uma pessoa dá um presente a um necessitado, ela experimenta um sentimento de preenchimento e alegria, uma sensação de realização. Normalmente este sentimento de "nobreza da alma" que sentimos é o que nos motiva a fazermos atos de bondade, como doar dinheiro a um pobre. Mas quando a pessoa ajuda o próximo através de um empréstimo, este sentimento de preenchimento e "nobreza da alma" é diminuído. A pessoa já não sente de maneira tão forte esta sensação de realização.

Além disso, se por algum motivo a dívida for cancelada, como acontecia após o ano de Shemitá, o destituído não reconhece a bondade daquele que "deu" o dinheiro e não atribui a ele a "boa sorte" de não precisar mais pagar a dívida. E o benfeitor, que fica sem o dinheiro do seu empréstimo, acaba sentindo que aquele que recebeu o dinheiro tirou vantagem dele. Certamente esta é uma experiência muito menos satisfatória do que quando a bondade é feita através de uma doação. Mesmo que, no final das contas, o efeito será o mesmo, isto é, nos dois casos a pessoa necessitada ficará com o dinheiro do benfeitor, quando o ato é feito através de uma doação ele vem com um sentimento de preenchimento, enquanto quando o ato é feito através da "doação forçada" de um empréstimo não pago ele vem acompanhado de um sentimento amargo.

A Torá está nos revelando algo impressionante sobre a psicologia do ser humano: mesmo quando fazemos bondades ao próximo, um dos principais motivadores é o nosso próprio bem estar. Portanto, isto não é uma bondade completa, e sim uma bondade "condicional", que depende do quanto estamos sentindo que também estamos ganhando e nos sentindo preenchidos com o nosso ato de doação. É por isso que a Torá sentiu a necessidade de advertir a pessoa que faz a bondade ao necessitado através de um empréstimo de dinheiro. Por ser algo que causa uma experiência muito menos satisfatória, o empréstimo já não é feito com tanta alegria quanto uma doação. Associado com o iminente risco de perder o dinheiro do empréstimo no ano de Shemitá, a pessoa acaba se tornando egoísta e não tem mais vontade de emprestar. A Torá então afirma que isto é um mau ato, baseado no nosso egoísmo e com consequências espirituais negativas.

A Parashá nos ensina que D'us também se importa com as nossas motivações quando fazemos bons atos. Obviamente que o ato de ajudar é importante, mas se não fazemos pelas motivações corretas, o ato fica vazio. Além disso, se a motivação dos nossos bons atos for apenas a nossa própria satisfação, deixaremos de fazer bondades quando elas não nos agradam. Escolheremos a quem ajudar de acordo com a nossa empatia com a pessoa e não de acordo com as necessidades de cada um. Deixaremos de fazer bondades caso nos causem dificuldades ou esforços. Isto certamente limita o nosso potencial de bondade e, portanto, nos afasta de D'us.

D'us criou o mundo apenas por bondade e Sua bondade é infinita e incondicional. Se queremos que nossos atos emulem os atos de D'us, devemos nos esforçar para que nossas bondades sejam completas, tanto nos atos quanto nas intenções. Ao fazer a bondade, devemos pensar na satisfação daquele que recebe, não no nosso próprio preenchimento e bem estar. Normalmente traduzimos a palavra "Tzedaká" como "caridade", mas na realidade Tzedaká significa "justiça". Quando estamos ajudando um irmão necessitado, estamos fazendo apenas justiça, pois o que D'us nos dá "a mais" é apenas para que possamos ajudar as outras pessoas que necessitam. D'us intencionalmente faz uma distribuição desigual das rendas para que as pessoas possam se ajudar e se preocupar umas com as outras e, com isso, acumular méritos espirituais para o Olam Habá (Mundo Vindouro). Tudo o que temos foi dado por D'us e Ele quer que utilizemos nossos bens de forma a criar um ciclo de ajuda mútua. Desta maneira, cada um de nós pode contribuir para criar um mundo mais justo e mais feliz

Shabat Shalom

R' Efraim Birbojm
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sexta-feira, 11 de agosto de 2017

PASSANDO POR UMA PONTE ESTREITA - PARASHÁ EKEV 5777

"Dois amigos, Avraham e Jacques, resolveram fazer uma viagem de navio. Estavam aproveitando cada segundo da viagem, até que o navio atravessou uma terrível tempestade. O mar estava revolto e enormes ondas golpeavam o casco. A água começou a entrar no convés, colocando em risco a segurança de todos os passageiros. Sentindo que a situação se complicava cada vez mais, o capitão do navio emitiu um pedido de socorro para todos os barcos da região. O navio começou a tombar para um dos lados, deixando todos apavorados. Estava claro que o naufrágio era iminente.
 Foi então que um barco da guarda costeira apareceu. Todos respiraram aliviados, estavam salvos. O barco encostou ao lado do navio e os marinheiros colocaram uma tábua de madeira ligando as duas embarcações, formando uma estreita ponte. Aos poucos cada um dos passageiros do navio foi atravessando por aquela tábua para chegar, são e salvo, ao barco de resgate.
 Quando chegou a vez de Avraham atravessar, ele sentiu muito medo. A tábua parecia instável e estreita. Olhando para baixo era possível ver o mar revolto e as ondas se chocando com força contra a embarcação. Precisava se concentrar, sem olhar para os lados, apenas para a frente. Cada passo que ele dava era cuidadoso e preciso. Somente assim ele conseguiu atravessar e chegar ao outro lado.
 Porém, Jacques não se importou com os perigos. Quis atravessar a estreita tábua de maneira "descolada". Apesar dos avisos dos marinheiros, ele não tomou nenhum cuidado. Atravessou olhando para os lados, mexendo no celular, com passos descuidados. Quase no meio da travessia ele pisou em falso e caiu no mar. Foi necessário jogar uma bóia para salvá-lo. Jacques saiu da água completamente encharcado. Mas o pior foi a vergonha e a humilhação de ver todos os passageiros do navio dando gargalhadas de sua situação"
 Nossa vida se assemelha a uma caminhada em uma ponte estreita. Podemos cumprir as Mitzvót de maneira cuidadosa, com a certeza de que assim chegaremos "ao outro lado", ou de uma maneira mecânica, sem atenção e sem as intenções corretas, correndo o grande risco de acabar tropeçando no caminho.
Nesta semana lemos a Parashá Ekev (literalmente "Se"), na qual Moshé continua seu discurso de encorajamento para o povo judeu, que estava prestes a entrar na Terra de Israel. Moshé tinha uma grande preocupação com o contato que os judeus teriam com os outros povos, que eram idólatras e poderiam influenciá-los de forma negativa, desviando-os do caminho de D'us.

Uma das advertências que Moshé deu ao povo é parte dos versículos que compõem o Shemá Israel: "Se cuidem, para que seus corações não sejam enganados e vocês se desviem, sirvam outros deuses e se curvem para eles" (Devarim 11:16). Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que a linguagem "se desviem" se refere a se afastar da Torá, tanto do seu estudo quanto do seu cumprimento. A consequência deste afastamento está na continuação do versículo, "e sirvam outros deuses". Rashi está afirmando que aquele que se afasta da Torá não fica no "vazio", ele automaticamente se encaminha para se conectar com as idolatrias.

Quando escutamos esta afirmação de Rashi ficamos tranquilos, pois sentimos que estas palavras não se aplicam a nós. Pelo fato de cumprirmos as Mitzvót e nos cuidarmos das transgressões da Torá, que são as ferramentas para chegarmos à perfeição, acreditamos que estamos fazendo tudo o que necessitamos para o nosso crescimento espiritual. Do momento em que acordamos até a hora em que vamos dormir estamos cercados de Mitzvót por todos os lados, que nos conectam com D'us. Mitzvót como Tzitzit, Tefilin, Mezuzá, Kriat Shemá e Brachót nos mantém conectados com D'us o dia inteiro. Por isso sentimos que não há com o que se preocupar em relação à esta advertência da Torá. Porém, não é tão simples assim.

Ao explicar as terríveis consequências de se desviar da Torá, Rashi traz como exemplo uma situação vivida por David HaMelech, quando ele se afastou por um tempo do estudo da Torá, como está escrito: "Pois hoje me afastaram de me conectar com a herança de D'us e me disseram: 'Vá e sirva outros deuses'" (Shmuel 1 26:19). Com estas palavras, David HaMelech estava dando seu testemunho para as futuras gerações de como ele se sentiu espiritualmente prejudicado quando se afastou da Torá.

Porém, deste versículo citado por Rashi surge um grande questionamento. Em que contexto isto ocorreu? Shaul HaMelech estava perseguindo David para matá-lo, pois algumas pessoas haviam falado mentiras para Shaul em relação a David. Para salvar sua vida, David teve que fugir e, por algum tempo, não pôde se dedicar como gostaria ao estudo de Torá. Mas se David não pôde se dedicar ao estudo da Torá por estar fugindo para salvar sua vida, então por que ele sofreu consequências espirituais? Entenderíamos se isto tivesse ocorrido em uma situação na qual ele tivesse intencionalmente abandonado o estudo da Torá, mas David HaMelech estava em uma situação na qual ele se afastou por motivos de força maior, para salvar sua própria vida!

Existem muitos paralelos entre o mundo material e o mundo espiritual. Por exemplo, quando uma pessoa coloca a mão no fogo, ela se queima. Isto não ocorre como um castigo, e sim como uma consequência natural, pois o fogo queima. Mesmo se alguém coloca a mão no fogo porque está sendo obrigado, também vai se queimar. O mesmo ocorre com nossa espiritualidade. Quando a pessoa se afasta da Torá, a consequência natural é uma imensa queda espiritual. Rashi quis nos ensinar que mesmo se isto ocorre de uma maneira forçada, como no caso de David Hamelech, ainda assim as consequências espirituais são sentidas. David Hamelech não foi castigado espiritualmente por ter se afastado da Torá, mas sofreu as consequências espirituais naturais deste afastamento. E se isto se aplica a uma situação de "força maior", muito mais se aplica a uma situação na qual a pessoa se afasta da Torá por vontade.

Imaginamos que o conceito de se afastar da Torá somente se refere àquele que não estuda Torá ou que não cumpre Mitzvót. Porém, nos ensina o profeta: "E disse D'us: 'Pois este povo se aproxima de Mim; com suas bocas e seus lábios eles Me honram, mas seus corações estão afastados de mim e seu temor a Mim se tornou "Mitzvót Anashim Melumadá" (literalmente "comandos de pessoas, aprendidos por hábito"). Portanto Eu continuarei trazendo escuridão sobre o povo, escuridão sobre escuridão, e se perderá a sabedoria dos sábios e o entendimento dos cultos se ocultará" (Yeshayahu 29:13).

De acordo com os nossos sábios, a linguagem "Mitzvót Anashim Melumadá" utilizada no versículo se refere ao cumprimento das Mitzvót sem vitalidade e sem vontade. Uma Mitzvá feita sem Kavaná (intenção) se compara a um corpo sem alma. É como um corpo, com todos os seus membros e órgãos em perfeito estado, cada um em seu devido lugar, mas sem a alma que dá a vitalidade a todos eles. Portanto, pela rigorosidade da linguagem do profeta, vemos o quanto é grave cumprir as Mitzvót de maneira simplesmente mecânica. De acordo com o livro Lekach Tov, quando a pessoa cumpre as Mitzvót de maneira mecânica, sem sentimento, isto também é considerado um afastamento da Torá, com todas as suas implicações espirituais.

David HaMelech, por seu afastamento da Torá, sentiu o quanto isto o aproximou de servir outros deuses. Ninguém o comandou a servir outros deuses, mas ele sentiu em sua espiritualidade uma queda tão grande que era como se alguém o tivesse aproximado de uma idolatria e o tivesse ordenado a servi-la. Ele não se apoiou em seu incrível nível espiritual e no seu vasto conhecimento de Torá para achar que estava protegido. E se isto ocorreu com David HaMelech, muito mais pode ocorrer com cada um de nós.

Porém, não sentimos que o nosso afastamento da Torá, mesmo quando não ocorre por "força maior", nos aproxima das idolatrias. Podemos até sentir um pequeno "esfriamento" espiritual, mas com certeza não sentimos o mesmo que David HaMelech sentiu. Isto ocorre justamente porque, mesmo quando nós cumprimos as Mitzvót e estudamos Torá, fazemos como "Mitzvót Anashim Melumadá". Infelizmente já estamos tão afastados de D'us que nem mais sentimos, quando deixamos de estudar Torá ou cumprir Mitzvót, que algo nos falta. E talvez não há tragédia maior do que perder a nossa espiritualidade e nem mesmo sentir isto.  

No livro "Mito de Sísifo", Albert Camus descreve a realidade da grande maioria das pessoas: "Levantar, metrô, quatro horas no escritório ou na fábrica, refeição, mais quatro horas de trabalho, metrô, refeição e dormir. Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado, no mesmo ritmo constante. Na grande maioria dos casos as pessoas seguem neste caminho facilmente. Mas um belo dia ela desperta e se questiona: Por que?". Infelizmente o que Albert Camus está descrevendo não se aplica apenas a pessoas afastadas da Torá e das Mitzvót. Muitas vezes nós cumprimos as Mitzvót apenas de maneira mecânica, dia após dia, ano após ano, sem sentimento e sem vivacidade. Deixamos nossa vida e nossas Mitzvót caírem no comodismo.

Precisamos fugir deste tipo de "sonolência espiritual". Precisamos sair da indiferença e começar a cumprir as Mitzvót com seriedade e reconhecimento. Precisamos estudar as Halachót para saber como cumprir as Mitzvót da maneira correta. A vida é como uma ponte estreita, precisamos ser cuidadosos com cada passo, com cada Mitzvá. Mas, acima de tudo, precisamos viver com entusiasmo. Somente com esta energia, com concentração e com foco conseguiremos atravessar a estreita ponte da vida e atingir o nosso objetivo.

Shabat Shalom

R' Efraim Birbojm
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sábado, 5 de agosto de 2017

QUANTO VALE UMA TEFILÁ? - PARASHÁ VAETCHANAN 5777

"Yaacov viveu uma vida de muita pobreza. Não havia comida suficiente para alimentar sua família, ele não conseguia pagar suas contas e nunca em sua vida conseguiu ajudar outros necessitados. Ele não tinha idéia de como mudar esta terrível situação. Tentou diversos tipos de trabalho, mas o dinheiro nunca era suficiente.

Certa vez um amigo lhe contou que havia escutado que na casa onde Yaacov vivia havia um incrível tesouro enterrado sob as tábuas do assoalho, mas Yaacov não acreditou. Outras pessoas também comentaram a mesma coisa, mas Yaacov continuava cético. De tempos em tempos ele dava uma pancada no assoalho com o calcanhar, mas sem muita vontade, para ver se escutava o som de moedas, mas escutava somente um som oco.

Quando Yaacov já estava velhinho, certo dia sentiu que suas forças terminavam. Em seu leito de morte, viu quando uma pessoa entrou em sua casa, levantou uma tábua solta do assoalho e retirou de lá um baú cheio de ouro e pedras preciosas. A riqueza que poderia ter dado a Yaacov e sua família uma vida digna estava dentro daquele baú. Diante dos seus olhos escurecidos passaram os detalhes de toda a sua vida miserável. O remorso de nunca ter procurado o tesouro foi uma facada no coração de Yaacov, que deu seu último suspiro e morreu".

Este sentimento de remorso certamente estará presente em todos aqueles que não acreditam e não utilizam a força da Tefilá (reza). Muito do que a pessoa precisa na vida já está pronto para ela, só falta ela pedir para D'us. Mas nós não pedimos. Nos esforçamos, trabalhamos mais e mais, mas não fazemos o mais importante: Tefilá.
Nesta semana lemos a Parashá Vaetchanan (literalmente "Eu implorei"), na qual Moshé continuou recordando os principais acontecimentos dos 40 anos em que o povo permaneceu no deserto, entre eles a reclamação do povo por água, que causou com que Moshé batesse na pedra ao invés de falar com ela, recebendo o decreto espiritual de não entrar mais na Terra de Israel. Porém, mesmo assim Moshé não desistiu e continuou implorando para que D'us revogasse o decreto. Nossos sábios explicam que a linguagem "Vaetchanan" tem o valor numérico de 515, que corresponde ao número de vezes que Moshé Rabeinu rezou e implorou para que pudesse entrar em Israel, tamanho era o seu amor pela Terra e pelas Mitzvót que poderia cumprir lá.

Porém, há alguns questionamentos em relação a este ensinamento. Moshé, apesar de se assemelhar a um anjo, fez um erro que, em seu nível, foi algo muito grave, pois perdeu a oportunidade de santificar o nome de D'us diante do povo, o que os ajudaria em sua elevação espiritual. Foi por isso que D'us o castigou com um decreto tão duro. Portanto, se D'us já havia feito um decreto nos mundos espirituais, de que adiantava Moshé rezar?

Além disso, Rashi (França, 1040 - 1105) nos ensina que, em Lashon HaKodesh (língua através da qual D'us criou o mundo), existem 10 linguagens diferentes para reza. O que representa a linguagem "Vaetchanan" e por que Moshé escolheu justamente esta linguagem para transmitir ao povo que ele havia rezado?

Outro questionamento surge quando observamos o conteúdo da reza de Moshé. A Parashá começa com as seguintes palavras: "Eu implorei a D'us naquele momento e disse: 'D'us, você começou a mostrar ao Seu servo a Sua grandeza e a Sua mão forte, pois quem é como D'us no Céu ou na terra que pode fazer como Suas ações e Seu poder? Por favor, deixe-me atravessar e ver a boa terra que está do outro lado do Jordão'" (Devarim 3:23-25). Percebemos que, antes de fazer seu pedido, Moshé se alongou em louvores a D'us. Mas D'us precisa de louvores? Por que Moshé não foi direto ao ponto?

E, finalmente, se D'us sabe tudo, Ele já sabia que Moshé queria entrar na Terra de Israel, já conhecia o amor dele pela Terra e sua vontade de cumprir as Mitzvót. Então por que Moshé precisou pedir?

Explicam os nossos sábios que da Tefilá de Moshé Rabeinu aprendemos muitos ensinamentos práticos para nossa própria Tefilá. Por exemplo, o Talmud (Brachót 10a) afirma que "mesmo que uma espada afiada esteja colocada sobre o pescoço de uma pessoa, ela não deve desistir da misericórdia de D'us". Isto vale para situações do mundo material, como uma pessoa literalmente em uma situação de perigo de vida, mas também vale em relação à anulação de decretos espirituais. Moshé, mesmo sabendo que havia um decreto espiritual que o impedia de entrar em Israel, não deixou de rezar.

Mas de onde Moshé aprendeu que a Tefilá pode anular até mesmo decretos Celestiais? Observando os atos de D'us. Quando houve o decreto de destruição de todo o povo judeu, após a terrível transgressão do bezerro de ouro, D'us falou para Moshé "E agora Me deixe, e Minha fúria queimará sobre eles e Eu os destruirei, e Eu farei de você um povo grande" (Shemot 32:10). Moshé então se perguntou: "Por acaso eu estou segurando D'us e O impedindo de cumprir o Seu decreto? Por que Ele está dizendo 'Me deixe'?". Moshé entendeu que D'us estava dizendo: "Está nas suas mãos salvar o povo judeu. Depende da sua Tefilá. Se você Me deixar, isto é, se você não fizer nada, Eu destruirei o povo. Mas sua Tefilá pode anular o decreto Celestial". Por isso Moshé entendeu que a Tefilá também tinha força para cancelar o decreto de não poder entrar na Terra de Israel.

Um segundo ponto que aprendemos da Tefilá de Moshé é a linguagem utilizada por ele. "Vaetchanan" vem da linguagem "Lechanen", que significa "agraciar". Rashi explica que esta expressão se refere a "Matanat Chinam", um "presente gratuito". Normalmente pedimos para D'us as coisas com o sentimento de que Ele está nos devendo, como se fosse obrigação Dele nos dar o que precisamos. Achamos que somos tão bons e corretos que temos o direito, pelos nossos méritos, de cobrar de D'us, como se disséssemos: "Minha parte eu já fiz, D'us. Agora faça a Sua parte". Porém, não é assim que os Tzadikim (Justos) se comportam. Quando eles pedem algo para D'us, o fazem com o sentimento de que receberão um presente gratuito, isto é, eles sabem que não merecem receber nada e que tudo o que D'us nos dá é apenas por causa da Sua infinita Misericórdia. Os Tzadikim sentem como se sempre estivessem devendo para D'us e nunca cobram nada Dele. Assim também deve ser a intenção dos nossos pedidos durante a Tefilá, não como uma cobrança de D'us, e sim como um pedido baseado na Sua misericórdia infinita.

Aprendemos também de Moshé que, antes de pedir algo para D'us, devemos louvá-Lo e engrandece-Lo. É por isso que a nossa principal Tefilá, a Amidá, é dividida em três partes: Louvores, Pedidos e Agradecimentos. Antes de começarmos a pedir algo, louvamos a D'us e reconhecemos a Sua grandeza. D'us não precisa dos nossos louvores, mas nós precisamos, para que antes de nos dirigirmos a D'us possamos lembrar quem Ele é. Para falar com um presidente, uma pessoa precisa de meses de espera, além de passar por um verdadeiro exército de secretárias e assessores. Mas com D'us, o Rei dos reis, é o contrário. Apesar Dele ser infinito, enquanto nós somos insignificantes diante Dele, mesmo assim Ele nos escuta e anseia pela nossa Tefilá.

Finalmente, se D'us sabe tudo, então por que precisamos pedir? Para que possamos colocar no nosso coração a certeza de que tudo vem Dele. Muitas vezes nos perdemos na escuridão e confusão do mundo material. Achamos que a cura vem do médico e dos remédios. Achamos que encontrar a nossa "alma gêmea" depende das pessoas que vão nos apresentar alguém que combina conosco. Achamos que o dinheiro vem do nosso esforço e da nossa inteligência. Tudo isso é uma grande enganação. A Tefilá nos dá a claridade de que tudo vem de D'us. Devemos fazer o nosso esforço, mas nunca esquecendo que tudo vem Dele. É por isso que, mesmo D'us sabendo o que necessitamos, nós precisamos pedir.

O Rav Chaim Vologziner zt"l (Lituânia, 1749 - 1821) explica que as palavras do versículo "Ele (D'us) reconta para a pessoa quais foram os seus atos" (Amós 4:13) se referem à revelação que as pessoas terão, no Mundo Vindouro, em relação aos presentes que elas teriam recebido se tivessem acreditado na força da Tefilá e a tivessem utilizado. Será mostrado para estas pessoas como suas Tefilót teriam feito diferença se tivessem sido ditas com concentração e sinceridade. A pessoa doente poderia ter se curado, o casal sem filhos poderia ter sido atendido e a pessoa procurando por uma esposa poderia ter encontrado. Assim afirma o Talmud (Brachót 6b): "Há coisas que estão no topo do mundo, porém as pessoas desprezam". Rashi explica que este ensinamento se refere a coisas elevadas como a nossa Tefilá, que podem mudar a nossa vida, neste mundo e no Mundo Vindouro, e mesmo assim nós não damos o devido valor.

De acordo com o Midrash (parte da Torá Oral), no versículo "Eu implorei a D'us naquele momento e disse", a linguagem "e disse" se refere a um ensinamento de Moshé para as futuras gerações. Moshé estava dizendo que ninguém deve se desesperar nem desanimar diante de uma situação difícil. Da mesma forma que ele nunca desistiu e continuou rezando mesmo após D'us ter decretado que os portões da Terra de Israel estavam trancados para ele, nós também nunca devemos desistir da misericórdia de D'us.

Depois da destruição do nosso Beit Hamikdash (Templo Sagrado), uma divisória de ferro nos separou do nosso "Pai Celestial". Porém, um portão nunca foi fechado: o portão das lágrimas. A Tefilá é chamada de "o serviço do coração". Portanto, o principal é abrir o nosso coração, colocando toda a nossa confiança em D'us, cuja Misericórdia é infinita. Como um pai que ama seu filho, D'us quer nos dar tudo o que precisamos. Ele está ansiosamente aguardando apenas a nossa Tefilá.

Shabat Shalom

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 3:23·7:11, Is. 40:1-26