sexta-feira, 19 de setembro de 2014

JULGANDO NOSSA PROXIMIDADE COM D'US - PARASHIÓT NITZAVIM, VAYELECH E ROSH HASHANÁ 5775

O Rav Saadia Gaon (Egito, 882 – Iraque, 942), um verdadeiro gigante de Torá, foi visto certa vez por um aluno se repreendendo de forma muito dura. O aluno questionou o porquê de ele estar sendo tão rigoroso consigo mesmo. Então o Rav Saadia Gaon explicou:

- Alguns meses atrás eu decidi que a honra que eu recebia das pessoas estava interferindo no meu serviço religioso. Sem humildade não é possível servir D'us com alegria. Decidi passar alguns meses em lugares onde ninguém me conhecia. Coloquei roupas simples e comecei meu exílio, vagando de cidade em cidade. Uma noite, cheguei a uma pequena pousada de um judeu idoso, um homem gentil e simples. Conversamos um pouco antes de ir dormir, e na manhã seguinte me despedi e segui meu caminho. Horas depois, alguns alunos que estavam me procurando apareceram e perguntaram ao judeu idoso se ele havia me visto. O homem riu e perguntou: "o que uma pessoa tão grande como o Rav Saadia estaria fazendo em um lugar como a minha pousada?". Mas quando os jovens explicaram como provavelmente eu estaria vestido, o homem deu um pulo e gritou: "Meu D'us, o Rav Saadia esteve aqui! Vocês estão certos!"

- Ele correu, pulou em sua carruagem e voou na direção em que eu tinha ido - continuou o Rav Saadia Gaon - Depois de um tempo ele me alcançou, saltou da carruagem e caiu aos meus pés, chorando: "Por favor, me perdoe, Rav Saadia, eu não sabia que era você!". Fiz ele se levantar e disse que ele havia me tratado muito bem, que não precisava se desculpar por nada. Mas ele continuava inconformado, dizendo: "Não, não, rabino. Se eu soubesse quem você era, eu teria te tratado de forma completamente diferente".

- Naquele momento eu percebi que aquele homem estava me ensinando uma lição muito importante e que o propósito do meu exílio havia se cumprido - finalizou o Rav Saadia Gaon - Agradeci, abençoei-o e ele voltou para casa. Agora, todas as noites, quando vou deitar, penso em como servi D'us o dia inteiro. Então me lembro daquele senhor e digo para mim mesmo: "Se eu soubesse sobre você, D'us, no início do dia o que sei agora, eu O teria tratado de forma completamente diferente!". E é justamente por isso que eu estava me arrependendo agora".

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Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Nitzavim e Vayelech. A Parashá Nitzavim nos ensina a Mitzvá de Teshuvá, que inclui o arrependimento pelos nossos maus atos e o comprometimento em mudar. Esta Parashá normalmente é lida antes de Rosh Hashaná, o Ano Novo Judaico, dia que todas as pessoas são julgadas. Isto ocorre justamente para nos despertar, para nos ensinar que temos a possibilidade de nos arrepender por nossos erros e mudar, influenciando de forma positiva nosso julgamento. Mas será que sabemos realmente o que está em jogo em Rosh Hashaná?

O Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 - Egito, 1204), em seu livro "Mishnê Torá", nos explica um pouco mais sobre o que ocorre em Rosh Hashaná. Ele diz que todas as pessoas têm méritos e transgressões. Aquele cujos méritos são mais numerosos que suas transgressões é Tzadik (Justo), e aquele cujas transgressões são mais numerosas dos que seus méritos é Rashá (malvado) (Hilchót Teshuvá Capítulo 3 Halachá 1). Já na Halachá (lei) seguinte, o Rambam explica que aqueles cujas transgressões são mais numerosas do que seus méritos imediatamente morrem por causa de sua maldade, e o mesmo se aplica a uma cidade ou ao mundo inteiro. Ele cita como exemplos a destruição da cidade de Sdom (Sodoma) e o dilúvio que ocorreu na época de Noach (Noé), que quase apagou toda a humanidade.

Mas estes ensinamentos do Rambam levantam alguns questionamentos. Em primeiro lugar, por que o Rambam dividiu seu ensinamento em duas Halachót diferentes, se elas tratam do mesmo tema, isto é, do que ocorre com alguém que tem mais méritos ou mais transgressões? Além disso, o Rambam cita Sdom e a destruição do mundo através do dilúvio como exemplos de decretos que se cumprem imediatamente. Porém, sabemos que ambos os decretos somente ocorreram muito tempo depois das pessoas já terem atingido níveis terríveis de maldade. Em especial o dilúvio, cuja destruição já havia sido decretada 120 anos antes dele ocorrer. Então como entender as palavras do Rambam?

Outra dúvida surge quando observamos a terceira Halachá deste capítulo e percebemos uma aparente contradição. O Rambam diz que, da mesma forma que após a morte a pessoa é julgada por seus atos, isto também ocorre uma vez por ano, em Rosh Hashaná. Aquele que é considerado Tzadik é selado para a vida, enquanto aquele que considerado Rashá é selado para a morte. Mas por que nesta Halachá o Rambam diz que o Rashá é selado para a morte, se ele havia dito que o Rashá morre imediatamente?

E a principal dificuldade nas palavras do Rambam é algo que nos questionamos todos os anos: como pode ser que aqueles que têm mais transgressões do que méritos recebem imediatamente o decreto de morte em Rosh Hashaná, se nós vemos pessoas ruins que já passaram por vários julgamentos de Rosh Hashaná e nada aconteceu? E por que nunca mais o mundo foi destruído, como no dilúvio? Com tantas gerações corruptas, imorais e sanguinárias que existiram na história da humanidade, será que nunca mais as transgressões foram mais numerosas do que os méritos?

O Rav Baruch Leff traz uma possível explicação que nos ajuda a responder todos estes questionamentos. Ele explica que há dois aspectos diferentes no julgamento de Rosh Hashaná. Um dos aspectos é que a pessoa recebe em Rosh Hashaná um "rótulo", que define seu status espiritual e seu relacionamento com D'us, independente de qualquer castigo ou consequência direta. É isso o que o Rambam está discutindo na primeira Halachá. Já na segunda Halachá o Rambam está descrevendo como ocorre a aplicação da justiça de acordo com o status espiritual que a pessoa recebeu. Mas nem sempre o julgamento e a aplicação da justiça acontecem juntos, pois D'us nos julga e aplica Sua justiça apenas em alguns momentos específicos, que podem ser épocas específicas do ano ou após certas atitudes das pessoas que podem despertar o julgamento ou a aplicação de um castigo.

Isto quer dizer que, mesmo que a pessoa seja um Rashá, não significa que ela será julgada imediatamente. E mesmo se for julgada e "rotulada" como Rashá, não quer dizer que vai morrer imediatamente. A linguagem utilizada pelo Rambam, "miad", que significa "imediatamente", também pode ser entendida como "inevitavelmente, certamente". Isto quer dizer que, a partir do momento em que uma pessoa, uma cidade ou o mundo inteiro forem considerados "Reshaim", então a morte ou a destruição certamente ocorrerão. Em Sua sabedoria infinita, D'us apenas decidirá quando será o momento correto.

Foi o que aconteceu em Sdom. Certamente eles já tinham o "rótulo" de Reshaim, mas a destruição foi precedida por eventos que despertaram a aplicação da justiça, como está escrito: "E assim disse D'us: 'Pois os gritos de Sdom e Amorá se tornaram muito grandes' "  (Bereshit 18:20). Nossos sábios explicam que naquele momento as injustiças chegaram a um nível insuportável, despertando a aplicação imediata do castigo. No dilúvio, o mundo inteiro já havia se corrompido há mais de uma centena de anos, mas o que despertou a aplicação do castigo foi a imoralidade, como está escrito poucos versículos antes da descrição do dilúvio: "E os Nefilim (gigantes) estavam na terra naqueles dias. E também depois disso, quando os filhos dos governantes vieram até as filhas dos homens" (Bereshit 6:4).

Após o dilúvio, D'us escolheu não castigar mais o mundo como um todo, mesmo que tivesse o "rótulo" de Rashá, como ele prometeu a Noach: "E Eu não mais golpearei todos os seres vivos, como Eu fiz" (Bereshit 8:21). Por isto o mundo inteiro nunca mais foi destruído, apesar de certamente já termos passado por algumas gerações nas quais as transgressões foram mais numerosas do que os méritos.

Agora é possível entender porque o julgamento de Rosh Hashaná é tão importante. Não apenas pelas consequências que podem vir do julgamento, mas principalmente pelo "rótulo" com o qual seremos classificados. E isto muda todo o nosso relacionamento com D'us, como o Rambam explica: "Grande é a força da Teshuvá, que aproxima o ser humano de D'us... ontem ele era odiado por D'us, e considerado repugnante e abominável, e hoje ele é amado e querido". (Halachót Teshuvá, Capítulo 7, Halachót 6). E na Halachá seguinte ele explica: "Quanto é elevado o nível da Teshuvá. Ontem ele estava separado de D'us... gritava e não era escutado, cumpria Mitzvót e elas eram rasgadas diante dele... Hoje ele está conectado com D'us... grita e é respondido imediatamente... faz Mitzvót e elas são recebidas com agrado e alegria".

Ninguém gosta de ser chamado de Rashá, muito menos por D'us. Em Rosh Hashaná nosso status espiritual é decidido. Se somos Tzadikim ou Reshaim, se somos amados ou desprezados por Ele. E apesar de todos os erros que cometemos durante o ano, D'us nos deu um presente, que é a força da Teshuvá, a possibilidade de mudarmos nossos atos, de nos arrependermos pelos nossos erros. Quando nos arrependemos com sinceridade, nossos erros são apagados. Se nos arrependemos por amor a D'us, nossos erros são transformados em Mitzvót. A Teshuvá não apenas nos salva das punições, mas tem a incrível força de recriar nossa conexão com D'us e mudar nosso status espiritual. Toda a ajuda espiritual que teremos para crescer no próximo ano depende do julgamento de Rosh Hashaná.

O principal pensamento de Teshuvá em Rosh Hashaná deve ser de voltar a fazer de D'us o nosso Melech (rei). Apesar de Ele ser o nosso Pai, Ele é também o nosso Rei, e por isso devemos respeitar Suas leis e escutar Seus ensinamentos. Devemos saber que tudo o que Ele nos comandou é apenas para o nosso bem, para que possamos viver uma vida mais harmônica, para que possamos fazer o bem às outras pessoas e trabalharmos nossos traços de caráter. Somente através do estudo da Torá, do cumprimento das Mitzvót e do arrependimento sincero pelos nossos erros é que vamos conseguir atingir um dia a perfeição.

Na próxima 4ª feira de noite (24/09) começa Rosh Hashaná. Que possamos nos esforçar neste "sprint final" para melhorarmos nossos atos, e assim possamos todos ser "rotulados" como Tzadikim, para que nossas Tefilót (rezas) sejam recebidas de bom grado por D'us e possamos ter um ano com muitas Brachót (bençãos) e boas notícias para toda a humanidade.

SHETIKATEV VETECHATEM BESSEFER CHAIM TOVIM (Que sejamos inscritos e selados no Livro da Vida)

SHABAT SHALOM e SHANÁ TOVÁ
Dt. 29:10-30:20, Is. 61:10-63:9, Rm. 10: 1-13
Dt. 31:1-30,Os.14:2-10, Jl 2:11-27, Mq.7:18-20, Is.55:6-56:8, Rm. 7: 7-12
 
 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A ESPIRITUALIDADE DOS OUTROS - PARASHÁ Ki TAVÔ 5774

"Certa vez, um rabino que dedicava sua vida a tentar aproximar da Torá os judeus que estavam mais afastados foi duramente questionado por outro judeu observante:

- Você não acha que é uma grande tolice se expor tanto às influências externas? Ao invés de gastar seu tempo e sua energia para ensinar Torá aos judeus afastados, será que você não deveria dedicar-se completamente ao seu próprio crescimento espiritual e ao fortalecimento dos seus filhos?

- Imagine uma casa pegando fogo – continuou o homem, visivelmente exaltado – Somente parte da mobília pode ser salva. Alguns móveis estão um pouco queimados, enquanto outros estão em perfeito estado. Me diga, você salvaria os móveis queimados? Certamente que não! Você trataria de salvar apenas os móveis em perfeito estado, e deixaria os móveis queimados para trás. Então por que você não faz isso? Será que não é mais importante salvar você e seus filhos, ao invés de dedicar-se aos judeus afastados?

- Caro amigo – respondeu com carinho o rabino – entendo sua preocupação e achei excelente o exemplo que você utilizou. Certamente estamos em uma geração na qual os judeus se encontram cercados pelo fogo da assimilação, e nosso judaísmo corre um sério risco de se extinguir. Porém, o que você falou se aplicaria somente em relação aos móveis que estão em uma casa pegando fogo. Mas o que você faria em relação às pessoas que estão presas dentro da casa? Com um pouco de esforço podemos ajudar aqueles que estão saudáveis, pois eles podem correr e salvar suas próprias vidas. Mas um grande esforço é necessário para salvar a vida daqueles que estão feridos, pois eles não conseguem sair sozinhos. Você os deixaria para trás?"

Obviamente temos uma enorme responsabilidade de nos fortalecer e educar nossos filhos dentro dos valores judaicos, e para isso precisamos dedicar muito tempo e energia. Mas isto não nos isenta de nos preocuparmos com os outros judeus, principalmente aqueles que estão mais afastados da Torá.

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Na Parashá desta semana, Ki Tavô, Moshé comandou o povo judeu a se reunir em duas montanhas, Guerizin e Eval, para uma nova aceitação da Torá logo que entrassem na Terra de Israel. Doze mandamentos da Torá deveriam ser enumerados, e as pessoas deveriam reconhecer publicamente que aqueles que cumprissem os mandamentos receberiam Brachót (bênçãos), enquanto maldições atingiriam aqueles que os desprezassem. Mas observando com atenção estes mandamentos, algo nos chama a atenção. Cada um deles discute algum ato específico, com exceção do último mandamento, que parece ser mais genérico: " 'Maldito aquele que não mantém as palavras desta Torá, para cumpri-las'. E todo o povo deverá dizer 'Amém' " (Devarim 27:26). O que significam estas palavras tão vagas?

Explica o Ramban (Nachmânides) (Espanha, 1194 - Israel, 1270) que esta maldição se aplica àquele que estuda, ensina, guarda e cumpre os mandamentos da Torá, mas que apesar de ter a possibilidade de aproximar judeus afastados e fortalecer a Torá deles, não faz nada a respeito. Isto quer dizer que esta maldição se aplica até mesmo para aqueles que são completamente justos e retos em seus atos, mas que não se esforçam para fortalecer os conhecimentos de Torá daqueles que não a cumprem. Todos aqueles que têm o poder de influenciar positivamente os outros e não o fazem, recebem sobre si a maldição proferida no Monte Eval, mas aqueles que se esforçam e tentam influenciar os outros de maneira positiva recebem a Brachá proferida no Monte Guerizim.

Temos uma inclinação natural de pensar que não se importar com a espiritualidade dos outros não é algo tão grave. Porém, observando as transgressões que são enumeradas nas outras maldições, podemos começar a ter uma ideia mais clara da gravidade de deixar de aproximar aqueles que estão mais afastados. Por exemplo, a Torá traz as proibições de fazer imagens esculpidas (idolatria), de desprezar os pais, de se envolver em relações imorais e de ferir o companheiro de maneira secreta (que se refere ao Lashon Hará, isso é, denegrir o próximo pelas costas, de maneira covarde). Se o fato de deixar de se importar com a espiritualidade dos outros foi listado junto com transgressões tão graves, isto quer dizer que certamente também esta negligência é considerada grave aos olhos de D'us.

O Rav Naftali Tzvi Yehuda Berlin (Rússia, 1816 - Polônia, 1893), mais conhecido como Netziv, viveu em uma geração na qual já havia um grande fluxo de judeus que abandonavam a Torá e as Mitzvót para se conectarem a outros tipos de ideologia. Na época, muitos judeus observantes acreditavam que o ideal era se isolar de qualquer tipo de influência negativa e continuar com seu próprio trabalho de crescimento espiritual. Mas o Netziv se levantou fortemente contra esta ideia, pois acreditava que enquanto o mundo estava sendo espiritualmente destruído, não era hora de focar na sua própria espiritualidade. Para incentivar as pessoas de sua geração, ele utilizava como exemplo a história do Rei Yoshiahu, que nasceu em uma geração completamente sem conhecimentos de Torá. O Rei Yoshiahu assumiu o trono com 8 anos, após a morte de seu pai, e decidiu fazer uma reforma no Beit Hamikdash (Templo Sagrado). No meio das obras, Chilkiahu, um dos Cohanim (sacerdotes), encontrou um Sefer Torá escondido. Eles viram que o Sefer Torá, ao invés de estar enrolado até o começo, na Parashá Bereshit, estava aberto no meio do Sefer, justamente na parte onde está o versículo "Maldito é aquele que não mantém as palavras desta Torá". Quando o Rei Yoshiahu escutou estas palavras, ele imediatamente rasgou suas roupas e disse: "Está sobre mim a responsabilidade de manter a Torá". Após muitos esforços e dedicação, ele realmente teve sucesso em trazer de volta o povo judeu ao estudo e ao cumprimento da Torá e das Mitzvót.

Há um versículo interessante na história do Rei Yoshiahu. Após encontrar o Sefer Torá, ele falou para os Cohanim e Leviim: "Agora vão e sirvam Hashem, seu D'us, e o Seu povo, Israel" (Divrei Haiamim II 35:3). Mas o que significa servir a D'us e ao Seu povo? Explica o Netziv que após os terríveis reinados de Menashé e Amon, reis que vieram antes de Yoshiahu e que levaram o povo judeu aos caminhos da idolatria, os únicos que haviam conseguido manter um nível espiritual elevado eram os Cohanim e os Leviim. Por isto, eles acabaram se refugiando em seu próprio mundo, para evitar o perigo da assimilação que os rondava. Eles dedicavam-se ao seu próprio crescimento espiritual e à sua conexão com D'us, mas negligenciaram a espiritualidade do resto do povo. Yoshiahu quis dar a eles um forte recado após encontrar o Sefer Torá. Ele os estimulou a mudar de comportamento e, a partir daquele momento, dedicar suas energias para espalhar a Torá entre aqueles que estavam tão afastados e desconectados. E o Rei Yoashiahu ressaltou que, ao servir o povo judeu, ao mesmo tempo eles estariam servindo a D'us, pois certamente esta era a vontade Dele naquele momento.

Se aquele que não se importa com a espiritualidade dos outros entra na maldição contida nesta Parashá, o contrário também é válido, e todo aquele que se esforça para influenciar positivamente os outros para que aumentem sua observância da Torá e das Mitzvót recebe um grande louvor de D'us. Um exemplo de dedicação ao próximo aprendemos com o Rav Isroel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 - Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim. Ele não se preocupava apenas com o seu próprio serviço Divino, ele estava sempre preocupado com a espiritualidade dos outros. Certa vez, quando estava viajando pela Letônia, o Chafetz Chaim chegou a uma cidade chamada Riga. Lá havia uma grande comunidade judaica, mas completamente assimilada, que não cumpria as Mitzvót da Torá. Durante sua estadia de três semanas, o Chafetz Chaim fez tantos esforços que conseguiu convencer 300 judeus a não abrirem suas lojas no Shabat. Em outro momento ele escutou que alguns soldados judeus, por estarem no exército, comiam pão em Pessach. Ele ficou tão triste que criou um "Fundo para cozinha Kasher", para fornecer comida Kasher àqueles que iam para a guerra, e pessoalmente recolheu dinheiro para isso. Ele também entrava em contato pessoal com os soldados, para tentar influenciá-los a cumprir as Mitzvót. E quando grupos de soldados passavam pela sua cidade, Radin, durante o verão, o Chafetz Chaim carinhosamente os convidava para um verdadeiro banquete em sua casa, recebendo-os com amor paternal e encorajando-os a crescer espiritualmente.

Existem várias maneiras através das quais podemos ajudar outros judeus a estarem mais conectados com sua espiritualidade. Pode ser dando aulas, estabelecendo novos centros de estudo de Torá, ajudando a manter os centros de Torá já existentes ou simplesmente se aproximando das pessoas mais afastadas da Torá e convidando-as, por exemplo, para uma deliciosa refeição de Shabat.

Se o Rei Yoshiahu e o Netziv já ficavam tão preocupados em suas gerações, maior ainda é a nossa responsabilidade, em uma geração na qual os números da assimilação chegam a mais de 70% em vários lugares do mundo. Apesar de não nos sentirmos preparados, devemos saber que não estamos isentos de participar nesta importante missão. Se acreditarmos no nosso potencial e, mais ainda, assumirmos a nossa responsabilidade na continuidade da Torá, certamente D'us nos ajudará e teremos muito sucesso em trazer de volta aqueles que estão tão afastados de sua espiritualidade. Além de ajudar outras pessoas, estaremos garantindo mais Brachót para as nossas vidas.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Dt. 26:1-29:9, Is. 60:1-22, At. 7: 30-36

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A FORÇA DO HÁBITO - PARASHÁ KI TETSÊ 5774

"O rabino estava dando um belo discurso, explicando a importância de estarmos sempre conectados com a nossa espiritualidade, mesmo quando não estamos na sinagoga. Ele ressaltou a importância de termos pensamentos de espiritualidade até mesmo quando estamos no trabalho, no meio dos negócios. Um dos frequentadores, querendo fazer uma piadinha, se levantou e gritou:

- Ei, rabino, eu não consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo. Como você quer que eu consiga fazer negócios e mesmo assim ainda pensar em Torá e Mitzvót?

- É fácil, meu querido - respondeu o rabino, sem se abalar - da mesma maneira que você consegue todos os dias pensar nos seus negócios mesmo estando no meio da sua Tefilá (reza), então você também vai conseguir pensar em espiritualidade mesmo quando estiver no meio dos seus negócios"

Pela força do hábito, muitas vezes acabamos cumprindo as Mitzvót de forma mecânica. Como na Tefilá, quando muitas vezes nosso corpo está na sinagoga, mas nossa cabeça está vagando em diferentes lugares do planeta...
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Na Parashá desta semana, Ki Tetsê, a Torá lista os povos que não podem fazer parte do povo judeu de forma completa. Para alguns povos, como os egípcios, a proibição é por apenas algumas poucas gerações, mas para outros povos, como Amon e Moav, a proibição é eterna. Mas por que esta rigorosidade com Amon e Moav? Eles foram piores do que os egípcios, que nos escravizaram e nos torturaram por 210 anos?

A Torá traz explicitamente dois motivos pelos quais Amon e Moav não são aceitos como parte do povo judeu, sendo o primeiro deles: "Pelo fato deles não terem recebido vocês com pão e água no caminho, quando vocês estavam saindo do Egito" (Devarim 23:5). Amon e Moav viram diante deles um povo de pessoas sofridas, que haviam passado por dois séculos de duros castigos e humilhações no Egito, e que estavam em um deserto inóspito, mas mesmo assim não tiveram a dignidade de nos oferecer nem mesmo pão e água. Seria o equivalente a ver um sobrevivente do Holocausto, magro e abatido, pedindo um prato de comida, e não sentir absolutamente nenhuma misericórdia por ele. Como a essência do povo judeu é o Chessed (bondade), característica que herdamos de Avraham Avinu, então pessoas tão desumanos como os habitantes de Amon e Moav não podem fazer parte do nosso povo.

Porém, esta extrema falta de bondade de Amon e Moav levanta um sério questionamento. Os dois povos são descendentes de Lót, o sobrinho de Avraham. E a Torá nos ensina que Lót, como Avraham, se destacou justamente na característica de Chessed, chegando ao ponto de arriscar sua vida e a integridade física de suas próprias filhas apenas para fazer bondade com dois beduínos, que na verdade eram anjos disfarçados. Sabemos que até hoje o Chessed é parte do povo judeu por causa da "genética espiritual" que herdamos de Avraham. Então por que Amon e Moav, que também deveriam ter esta característica de Chessed embutida em sua "genética espiritual" herdada de Lót, se comportaram de maneira tão desumana e mostraram tamanha indiferença diante de pessoas necessitadas?

Explica o Rav Yaacov Ashkenazy (Polônia, 1550, 1625), mais conhecido como "Melitz Yosher", que uma pessoa que cumpre uma Mitzvá ou pratica um bom ato por causa do reconhecimento interno da importância deste ato e pelo genuíno desejo de ajudar os outros, faz com que esta boa característica fique enraizada em seu coração, conseguindo transmiti-la para as futuras gerações. Mas se esta boa característica vem apenas pela força do hábito, então ela não fica enraizada no coração da pessoa e, portanto, não é transmitida para seus descendentes.

Esta foi a grande diferença entre os descendentes de Avraham e os descendentes de Lót. Avraham buscou D'us por toda a sua vida, para saber a quem agradecer por tudo de bom que recebia. Esta busca fez com que Avraham refletisse sobre a importância da bondade e entendesse de maneira profunda que o Chessed é um dos pilares que sustenta o mundo. Como ele internalizou esta Mitzvá em seu coração, esta característica foi transmitida também ao coração de seus descendentes. Já Lót não trabalhou em seu coração o valor do Chessed. Por sua longa convivência com Avraham, um homem que aproveitava cada pequena oportunidade para fazer Chessed, Lót aprendeu a fazer bondades simplesmente como um hábito, como parte natural da vida, mas nunca internalizou a sua importância, simplesmente fazia bondades de forma mecânica. Por isso esta característica não foi transmitida aos seus descendentes, que acabaram se transformando, poucas gerações depois, em pessoas egoístas e completamente insensíveis.

Com este ensinamento do "Melitz Yosher" podemos entender um triste fenômeno, que é o de jovens educados em casas observantes de Mitzvót, mas que acabam se afastando dos caminhos espirituais. Por que isto acontece? Pois quando os pais cumprem as Mitzvót sem internalizar o significado dos seus atos e a importância deles, cumprindo-as apenas por hábito e de maneira mecânica, então dificilmente conseguirão transmitir aos filhos a atitude correta em relação às Mitzvót. Assim, os filhos também apenas cumprirão as Mitzvót de maneira mecânica e, mais cedo ou mais tarde, acabarão abandonando-as.

Há outro ponto interessante sobre este incrível ensinamento do "Melitz Yosher". Apesar de muitas vezes estarmos dispostos a gastar esforços, tempo e até mesmo dinheiro para cumprir uma Mitzvá, ainda assim não é uma garantia que esta Mitzvá não está sendo cumprida apenas por hábito. Lót chegou ao ponto de arriscar a sua vida para cumprir uma Mitzvá, mas mesmo assim a Torá ainda considera que esta Mitzvá foi feita apenas pela força do hábito, tendo pouco valor espiritual. Portanto, precisamos o tempo inteiro verificar nossos atos, para checar se estamos cumprindo as Mitzvót com o coração, internalizando sua importância e o seu impacto espiritual, ou se estamos apenas cumprindo de maneira mecânica, por força do hábito, mas sem nenhuma profundidade espiritual.

Em Mitzvót que se repetem poucas vezes durante nossa vida é mais fácil sentir a espiritualidade do momento. Por exemplo, quando uma pessoa participa do Brit-Milá de seu filho, ou faz a Brachá sobre seus "Arba Minim" (4 espécies) em Sucót, ela consegue se concentrar e ter Kavaná (intenção) em suas palavras e seus atos. Mas a grande dificuldade está justamente nas Mitzvót constantes, que repetimos várias vezes todos os dias, como a Tefilá (reza). Pronunciamos 3 vezes por dia, 7 dias por semana, praticamente as mesmas palavras, e por isso é tão difícil manter a concentração. Muitas vezes estamos no meio da Tefilá e percebemos que nossa cabeça está distante, pensando nos negócios, na viagem de férias ou simplesmente naquele dinheiro que estamos devendo a um amigo. Como lutar contra a força do hábito nestes casos?

Explicam nossos sábios que precisamos todos os dias tentar trazer um gosto novo para nossas Mitzvót. Por exemplo, estudando sobre o significado das palavras que mencionamos na Tefilá, desde o entendimento mais simples até as implicações mais profundas de cada uma das palavras que nossos sábios fixaram no Sidur. Algumas vezes podemos mudar de Sidur, simplesmente para quebrar a rotina. Outras vezes podemos fazer a Tefilá em um lugar diferente da sinagoga, ou até mesmo em outra sinagoga, apenas pelo efeito de renovação que isto pode trazer, para fugir da força do hábito.

Estamos no mês de Elul, o mês de preparação espiritual para Rosh Hashaná, o Dia do Julgamento. Certamente há muitas Mitzvót que ainda não cumprimos e que gostaríamos de começar a cumprir, e esta é a época propícia do ano para receber sobre nós um crescimento espiritual. Mas além de acrescentar na quantidade de Mitzvót que gostaríamos de cumprir, um trabalho muito importante é acrescentar na qualidade daquelas Mitzvót que nós já cumprimos, mas que, por causa da força do hábito, acabam se tornando apenas atos mecânicos.

Internalizar a importância de cada Mitzvá e enraizá-la nos nossos corações é a melhor forma de garantir que não apenas nosso próprio serviço espiritual será muito mais significativo, mas que também teremos mais sucesso na transmissão dos valores judaicos para todos os nossos descendentes.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Dt. 21:10-25:19, Is. 54:1-10