sábado, 24 de setembro de 2016

AMOR PELO MATERIAL OU PELO ESPIRITUAL - PARASHÁ KI TAVÔ 5776

Certa vez o Rav Yitzchak Meir Rotenberg zt"l (Polônia, 1799 - 1866), mais conhecido como Chidushei Harim, estava viajando em uma carruagem puxada por dois cavalos. Depois de alguns quilômetros de viagem, um dos cavalos repentinamente caiu morto no chão. O condutor da carruagem, um homem muito simples, sentiu uma terrível tristeza pela perda de seu precioso cavalo. Sem alternativa, a viagem foi retomada com apenas um cavalo. Não haviam viajado muito quando o segundo cavalo também caiu morto no chão. O dono dos cavalos ficou arrasado. Aqueles cavalos significavam muito para ele, eram seu sustento, eram sua vida. Completamente desolado, o homem sentou-se no chão, abaixou a cabeça e começou a chorar. Chorou sem parar por um longo tempo, um choro amargo e triste. Chorou tanto que acabou morrendo ali mesmo.

O Chidushei Harim ficou muito assustado com aquela cena. Porém, o mais impressionante aconteceu naquela noite. Ele teve um sonho muito real, no qual viu o condutor da carruagem que havia morrido. Aquele homem, uma pessoa boa e pura, havia recebido o Olam Habá (Mundo Vindouro). Mas o que mais chamou a atenção do Chidushei Harim é que o Olam Habá daquele homem era uma linda carruagem puxada por dois magníficos cavalos.

O Chidushei Harim acordou assustado, pois entendeu o significado daquele sonho. Nosso Olam Habá é criado pelo que damos valor no Olam Hazé (mundo material). Para aquele homem, o que ele mais dava valor na vida eram seus cavalos e sua carruagem. Portanto, foi isso o que ele recebeu para toda a eternidade. 
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Nesta semana lemos a Parashá Ki Tavô (literalmente "Quando vierem"). A Parashá começa descrevendo a cerimônia de "Bikurim", na qual os primeiros frutos das sete espécies da Terra de Israel eram levados ao Beit Hamikdash (Templo Sagrado) e oferecidos ao Cohen. Além disso, a pessoa que oferecia os Bikurim lia uma enorme declaração de agradecimento a D'us por todas as bondades que havia recebido, desde a época dos nossos patriarcas, passando pela saída do Egito e terminando na conquista da Terra de Israel, uma terra boa e fértil. Mas grande parte da Parashá é dedicada a uma dura advertência, na qual Moshé ressalta os devastadores castigos que poderiam recair sobre o povo judeu caso se desviassem e não seguissem os caminhos da Torá. Qual é a conexão entre a oferenda dos Bikurim e as advertências?

Além disso, sabemos que estas advertências da Torá não foram apenas ameaças vazias. Infelizmente muitas destas tristes profecias se cumpriram na época da destruição dos nossos dois Templos e em outras épocas da nossa história. Porém, no meio das advertências trazidas pela Parashá, a Torá faz uma interrupção com o seguinte versículo: "Pelo fato de você não ter servido a Hashem, teu D'us, com alegria e bom coração, quando havia abundância em tudo" (Devarim 28:47). O que significam estas palavras?

O entendimento mais simples deste versículo é que tragédias recaem sobre o povo judeu quando não cumprimos as Mitzvót com alegria, apesar de termos sido abençoados com abundância em tudo (em hebraico "Rov Kol"). D'us não cobra um Serviço Divino exemplar nos momentos de dificuldades e aperto, pois Ele sabe o quanto é difícil nos concentrarmos nas nossas Mitzvót quando nosso coração está angustiado com as dificuldades e preocupado com problemas como a falta de dinheiro para pagar as contas no final do mês. Mas que desculpa temos quando está tudo bem, quando temos tranquilidade e abundância? Por isso, nestes momentos de Brachá (benção), a cobrança é muito mais severa e a falha em servir D'us com alegria e agradecimento é considerado algo muito mais grave e sem justificativas. A Parashá junta o assunto dos Bikurim com as advertências para nos ensinar a reconhecer o que temos de bom, as Brachót que temos na vida, e utilizar este sentimento para melhorar nosso Serviço Divino cotidiano. Caso não nos esforcemos para reconhecer o que temos de bom, faremos nosso Serviço Divino sem alegria, apesar de todas as Brachót que recebemos, e isto será considerado por D'us como algo muito grave.

Além desta explicação mais simples, o Rav Ytzchak Luria zt"l (
Israel1534 - 1572), mais conhecido com Arizal, um dos maiores Cabalistas da história do povo judeu, traz uma explicação mais profunda deste versículo. De acordo com o Arizal, o que a Torá está nos ensinando é que, mesmo se a pessoa cumpre as Mitzvót com certo grau de alegria, mas a principal alegria da sua vida não se deriva do seu Serviço Divino, e sim de uma alegria de "Rov Kol", que se refere às outras fontes de alegria, então a pessoa está desconectada da espiritualidade. E quando alguém se desconecta da espiritualidade, a conseqüência é que tragédias recaem sobre ela. Portanto, de acordo com esta explicação, a Torá está nos ensinando que não é suficiente apenas sentir alegria no nosso Serviço Divino, mas que a alegria que sentimos com este preenchimento espiritual deve ser muito maior do que qualquer outro prazer que se deriva dos nossos esforços no mundo material. Sentir esta alegria verdadeira é uma parte muito importante do nosso Serviço Divino.

Explica o Rav Yehonasan Gefen que esta mensagem é especialmente importante para Rosh Hashaná, o Dia do Julgamento, que se aproxima. O principal trabalho que devemos fazer em Rosh Hashaná é reconhecer D'us como sendo o nosso Rei. Porém, na prática, como fazemos isso? Um aspecto significativo de reconhecer D'us como o nosso Rei é saber que Ele é a única Fonte de todo o prazer que verdadeiramente nos preenche e que qualquer outra fonte de prazer é vã e sem sentido. É por isso que Rosh Hashaná vem antes de Yom Kipur, pois este é um pré-requisito na nossa limpeza espiritual de Yom Kipur. Quando os desejos de uma pessoa não são direcionados para o nosso Serviço Divino, então eles são automaticamente desviados para os prazeres do mundo material, tornando-se praticamente impossível não cometer transgressões. Há muitos momentos na vida em que os desejos de uma pessoa se chocam com suas aspirações de cumprir a Vontade de D'us, causando um prejuízo ao cuidado que a pessoa tem com as Mitzvót. Portanto, qualquer arrependimento em Yom Kipur é incompleto se não mudarmos a perspectiva de como enxergamos a vida. Enquanto "dividirmos" o prazer de nos conectarmos espiritualmente a D'us com os prazeres do mundo material, nossa limpeza de Yom Kipur ainda deixará manchas que não foram apagadas.

Este conceito fica claro com a história que aconteceu com o Chidushei HaRim, através da qual aprendemos que uma pessoa que está presa aos seus desejos materiais, mesmo que consiga evitar as transgressões, ainda assim se deparará com consequências desagradáveis, pois a pessoa que se conecta de uma maneira muito forte com o mundo material termina perdendo sua conexão espiritual. Porém, ao refletirmos sobre esta história surge um grande questionamento. Por que o Chidushei Harim se assustou com o que viu em seu sonho? Se a carruagem e os cavalos eram coisas que aquele homem apreciava tanto, qual é o problema desta ser a sua recompensa no Olam Habá? Ele não ficou feliz com o que recebeu?
   
O Rav Yssocher Frand responde esta pergunta com uma história pessoal. Quando ele era pequeno, seu sonho era ganhar um estilingue para brincar com os meninos da rua. Porém, apesar de ter pedido aos pais diversas vezes, eles nunca concordaram em lhe dar um estilingue. Imaginem se, no dia do casamento do Rav Frand, instantes antes dele entrar na Chupá, seus pais se aproximassem com um enorme sorriso, estendessem uma linda caixa e dissessem: "Querido filho, este é um dia muito especial. Por isso queremos neste momento te presentear com um lindo estilingue, o presente que você sempre quis". Obviamente isto não faria nenhum sentido, pois aquele estilingue valia muito quando ele era apenas uma criança, mas agora ele já estava crescido demais para isso.

O mesmo ocorre quando estamos no mundo material. Dedicamos a vida para adquirir prazeres materiais, como dinheiro, posses e honra, acreditando que estas coisas nos trarão preenchimento. Mas quando chegarmos ao Olam Habá, veremos que isto se compara a um estilingue nas mãos de um noivo prestes a entrar na Chupá, isto é, veremos que todos estes prazeres materiais na realidade não têm valor verdadeiro nenhum. Assim nos ensina o Rav Moshe Chaim Luzzato zt"l (Itália, 1707 - Israel, 1746), no primeiro capítulo do seu clássico livro "Messilat Yesharim" (Caminho dos Justos): "Qualquer coisa fora da proximidade de D'us que as pessoas acreditam que é algo bom, na verdade não é nada, é apenas vazio". No Olam Habá tudo vai estar claro, as ilusões cairão e então perceberemos o quanto eram sem sentido as coisas pelas quais dedicamos nossas vidas para adquirir neste mundo material.

Então o ideal é fazer voto de abstinência e viver em uma caverna? Não é tão simples assim. Em diversas fontes da Torá existem aparentes contradições sobre este assunto. Por exemplo, a Torá nos ensina "Sejam pessoas sagradas" (Vayikrá 19:2). O Talmud (Yebamot 20a) explica este versículo como sendo a obrigação da pessoa se santificar abstendo-se inclusive do que é permitido. Por outro lado, o Talmud (Nedarim 10a) afirma que o Nazir, pessoa que fez um voto de se abster por algum tempo do prazer de beber vinho, é chamado de "transgressor" por ter renunciado a um dos prazeres do mundo que D'us criou. Já o Talmud Yerushalmi (Kidushin 4:12) vai mais longe ao afirmar que a pessoa terá que prestar contas por todo o prazer que poderia ter obtido comendo algo (que é permitido), mas absteve-se deste prazer. Portanto, o que é o mais importante, conquistar o nosso lado animal, transcender o mundano e revelar a supremacia do espiritual sobre o material, ou devemos encontrar a bondade de D'us nos prazeres do mundo material que Ele nos deu?

A resposta está na diferença entre dois níveis espirituais, a "Prishut" (se abster do mundo material) e a "Kedushá" (santificar o mundo material). Prishut significa a pessoa se abster de qualquer prazer material, vivendo apenas com o que é extremamente necessário para manter sua saúde. Kedushá significa utilizar os prazeres do mundo material, mas de uma maneira completamente controlada, visando sempre o crescimento espiritual. Neste nível, os prazeres materiais não precisam ser anulados, eles podem ser canalizados para nos dar força e energia no nosso trabalho espiritual. De acordo com o livro Messilat Yesharim, apesar dos dois níveis serem elevados, a Prishut é apenas uma preparação para alcançar a Kedushá, um nível no qual estamos muito mais próximos de D'us. A Prishut nos ensina a ter autocontrole, a saber dominar nossos desejos, mas o ideal é viver com Kedushá, canalizando os nossos prazeres da maneira correta, usando os prazeres materiais que D'us nos deu para potencializar nosso lado espiritual.

As "broncas" da Parashá são um forte lembrete de que não é suficiente apenas cumprir as Mitzvót, mas também devemos olhar o mundo espiritual como a força principal que impulsiona nossas vidas. Honra, poder, dinheiro e comida, desconectadas de um contexto espiritual, são fontes ilusórias de prazer. Fazer de D'us o nosso Rei significa internalizar que Ele é a única e verdadeira Fonte de alegria e prazer.
QUE SEJAMOS INSCRITOS E SELADOS NO LIVRO DA VIDA
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 26:1-29:9, Is. 60:1-22

sábado, 17 de setembro de 2016

ALÉM DAS APARÊNCIAS - PARASHÁ KI TETSÊ 5776

"Marcelo voltava do trabalho dirigindo em um dia de trânsito pesado. De repente, ele viu no retrovisor que um carro, dirigido por um homem de meia idade, vinha apressadamente "costurando" no trânsito. Ele vinha forçando a passagem, acendendo e pagando as luzes. Quando aquele carro chegou ao lado do carro de Marcelo, forçou a passagem querendo mudar de pista e entrar na frente dele. Marcelo ficou muito irritado com aquele homem, pois enquanto todos aguardavam pacientemente o trânsito, aquele malandro queria levar vantagem. Marcelo teve vontade de acelerar, impedindo a passagem do outro carro, e dizer para aquele folgado algumas verdades. Quase seus instintos conseguiram dominá-lo, mas ele respirou fundo e conseguiu se controlar. Diminuiu a marcha e deixou o outro carro passar e seguir seu caminho.

Ao chegar em casa, ainda um pouco estressado, Marcelo recebeu a assustadora notícia que seu filho de três anos havia sofrido um grave acidente e estava no hospital. Imediatamente seguiu para lá, desesperado. Quando chegou, sua esposa veio ao seu encontro e o tranquilizou:

- Fique calmo, querido. Graças a D'us agora está tudo bem. O médico chegou a tempo para socorrer nosso filho e dar os primeiros socorros. Ele já está fora de perigo.

Marcelo, mais tranquilo, pediu que sua esposa o levasse até o médico para agradecê-lo. Qual não foi sua surpresa quando percebeu que o médico era aquele homem cujo carro havia forçado passagem quando ele voltava para casa..."

Por trás de uma atitude, sempre existe uma história, um motivo que leva as pessoas a agirem de determinada maneira. Se você quer acertar no julgamento dos outros, procure ver além das aparências.
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A Parashá desta semana, Ki Tetsê (literalmente "Quando vocês saírem"), traz diversas leis relacionadas aos cuidados nos relacionamentos interpessoais. Entre os vários assuntos, há um extremamente importante para refletirmos em Elul, o último mês do ano, a época de preparação final para o nosso julgamento de Rosh Hashaná: a transgressão de Lashon Hará, que significa utilizar a nossa fala para denegrir e diminuir a honra dos outros, causando sofrimento e prejuízos financeiros, espirituais ou psicológicos.

Cometemos diversos erros durante o ano, nas mais diferentes áreas. Mas infelizmente um dos erros no qual mais tropeçamos é o mau uso da nossa fala. Pelo fato de falarmos o tempo inteiro, o descuido nesta área pode ter consequências graves, como está escrito: "Lembre-se o que Hashem, teu D'us, fez para Miriam no caminho, quando vocês saíram do Egito" (Devarim 24:9). Rashi (França, 1040 - 1105) explica que este versículo é uma advertência em relação ao Lashon Hará. A Torá está nos avisando que, da mesma forma que Miriam falou negativamente de seu irmão Moshé e foi castigada com Tzaráat, uma doença espiritual que se manifestava através de manchas na pele, também aquele que fala Lashon Hará é castigado com Tzaráat. Desde a destruição do nosso Beit Hamikdash (Templo Sagrado) a Tzaráat já não causa mais manchas físicas no nosso corpo, mas certamente continua manchando a nossa alma.

Este versículo, que nos comanda a lembrar das consequências do Lashon Hará de Miriam, é considerado pelo Rav Isroel Meir HaCohen zt"l (Bieloríssia, 1838 - Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, como uma das 613 Mitzvót da Torá. Mas qual é a conexão entre a transgressão de Lashon Hará e o castigo de Tzaráat? Sabemos que D'us é Misericordioso e, por isso, Ele faz com que o castigo que vem como consequência de uma transgressão já traga um componente de conserto deste erro. Como a Tzaráat vem consertar o Lashon Hará? E por que a Torá fez questão de conectar a Tzaráat com o erro de Miriam, ao invés de explicar de uma maneira genérica que todo aquele que fala Lashon Hará fica com Tzaráat?

Antes de tudo precisamos entender exatamente qual foi o erro de Miriam, uma Tzadeket (mulher justa e correta) que havia atingido o nível de profecia. O Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 - Egito, 1204) nos ensina que Miriam era a irmã mais velha de Moshé e havia ajudado a criá-lo desde pequeno. Ela arriscou sua própria vida para acompanhá-lo no rio Nilo quando Moshé foi colocado em uma cestinha à deriva. Em seu Lashon Hará, Miriam não falou nada de mal sobre Moshé, apenas se equivocou ao igualá-lo aos outros profetas. Além disso, Moshé não se ofendeu nem guardou rancor. Apesar de tudo isso, Miriam foi castigada com Tzaráat.

Das palavras do Rambam aprendemos que a transgressão de Miriam foi consequência de um erro em suas considerações. Se não fosse este pequeno erro de cálculo, suas palavras teriam sido corretas, pois ela teve boas intenções e certamente foi cuidadosa em verificar se havia reunido todas as condições necessárias para que fosse permitido falar algo que pode denegrir outra pessoa. Portanto, aprendemos de Miriam que o castigo da Tzaráat está associado ao julgamento equivocado. Se pararmos para refletir, perceberemos que na maioria das vezes que tropeçamos em Lashon Hará é por termos sido precipitados e não julgarmos a pessoa da maneira correta. A causa é o desleixo no cumprimento da Mitzvá de "com justiça julgue seu companheiro" (Vayikrá 19:15).

Mas esta Mitzvá não é fácil de ser entendida. O Rabeinu Yona zt"l (Espanha, século 12) explica esta Mitzvá da seguinte maneira: sempre que vemos uma pessoa fazendo algo que parece errado, e existe a possibilidade de julgar seu ato de uma maneira meritória, somos obrigados a julgá-la positivamente. Ele acrescenta que, se a pessoa que está sendo analisada é alguém com temor a D'us, nossa obrigação vai além e devemos julgá-la de forma positiva mesmo quando as evidências e o entendimento racional estejam pendendo para o lado da culpa. De acordo com a explicação do Rabeinu Yona parece que esta Mitzvá não é lógica e racional, pois não parece muito lógico julgar uma pessoa de forma positiva quando tudo parece apontar para o outro lado. Quando uma situação se inclina para o lado da culpa, julgar a pessoa positivamente é, aparentemente, fazer o contrário do que é correto e justo. Então por que a Torá nos comanda a "com justiça julgará seu companheiro", e não a "com bondade julgará seu companheiro"?

Ensina o livro "Lekach Tov" que, na verdade, quando julgamos alguém que tem um temor a D'us elevado e sincero, inclinar o julgamento para o lado positivo é certamente o correto e o justo, mesmo quando as evidências parecem pender para o outro lado. Para alguém com temor a D'us as transgressões são algo tão abominável, e o estrago causado por elas é tão marcante, que a pessoa se afasta com todas as suas forças de qualquer tipo de erro. Por isso, por mais ilógico que possa parecer uma justificativa para um ato desta pessoa, certamente é mais lógico do que imaginar que alguém neste nível de temor a D'us tenha cometido o erro que aparenta. Então por que erramos tanto no julgamento das pessoas? Pois somos tão pequenos e estamos tão distantes do temor a D'us verdadeiro que não conseguimos nem entender o quanto pessoas com temor a D'us se afastam das transgressões. Portanto, quando achamos difícil julgar alguém para o lado positivo, muitas vezes o erro está em nós mesmos, na nossa falta de entendimento do que é o temor a D'us.

Além disso, outro motivo pelo qual tropeçamos muito em não julgar os outros de forma favorável é o fato de enxergarmos o mundo de acordo com os pensamentos do nosso próprio coração. Aquele que honra as criaturas comprova que ele também é uma pessoa honrada, enquanto aquele que despreza as criaturas justamente as despreza por projetar nos outros seus próprios erros, como afirmam nossos sábios: "Todo aquele que vê defeitos em seu companheiro, na verdade está vendo seus próprios defeitos". Por isso, quanto mais elevada for a pessoa que está fazendo o julgamento, suas considerações vão emanar do lado do bem e será mais fácil para ela julgar o próximo positivamente. Por outro lado, quanto mais baixa for a pessoa, suas considerações vão emanar do lado negativo e ela estará mais propensa a julgar tudo de maneira negativa. Portanto, no final das contas, a Mitzvá de "com justiça julgue seu companheiro" é uma forma de autoavaliação e aquele que sempre julgar tudo para o mal deve parar e procurar o mal que há dentro de si.

Mas como a Tzaráat ajudava o transgressor a corrigir seu erro de julgamento? A pessoa com Tzaráat passava por um terrível sofrimento. Era desprezada pela sociedade e precisava se afastar de sua esposa e de seus filhos. Ao invés de amigos, sua companhia eram as moscas que ficavam em volta das feridas de sua pele. Esta pessoa ficava sozinha, sentada fora do acampamento, impura e abandonada. A pessoa contaminada com Tzaráat era uma pessoa cujo mundo material havia sido completamente destruído, a ponto de nossos sábios definirem que, naquele estado, ela era como uma pessoa morta. Como seria possível encorajar uma pessoa nestas condições? Como alguém poderia trazer consolo para ela? Somente ressaltando seu lado espiritual. Apesar de seu lado material ter sido destruído, sabemos que o mundo material é limitado, é apenas um corredor diante do mundo espiritual. Mesmo que, neste momento, seu corpo material havia se tornado algo desprezível, a pessoa precisava focar que o corpo é apenas uma vestimenta temporária para sua alma eterna.

Ensinam os nossos sábios que tudo o que nos puxa para o lado positivo é fundamentado na vontade da alma, enquanto tudo o que nos puxa para o lado negativo é fundamentado na vontade do corpo. Na prática, a Tzaráat destruía o mundo material da pessoa que falou Lashon Hará, obrigando-a a se agarrar em seu lado espiritual e voltar a colocar sua alma como o principal e seu corpo como o secundário. Isto fazia com que, daquele momento em diante, a pessoa fizesse suas considerações de uma maneira mais espiritual e, portanto, pendendo para o lado positivo. A pessoa passava a julgar os outros de uma maneira favorável, interpretando com seu lado bom e nobre as ações, omissões, pensamentos e falas de seu companheiro. Este era o conserto que a Tzaráat trazia para o erro de Lashon Hará, que é principalmente consequência de julgarmos as pessoas de maneira negativa.

Elul é o momento de fazermos uma autoavaliação sincera. Julgamos os outros sempre de maneira precipitada, sem termos nas mãos todas as informações. Não nos esforçamos para procurar justificativas positivas para os aparentes maus atos das pessoas. Não chegamos nem mesmo a cogitar que "talvez não foi exatamente assim" ou "talvez o erro foi meu". De acordo com o conceito que vimos, isto é sinal de que o mal não está nos outros, e sim dentro de nós mesmos. Por isso, é importante sermos sinceros antes do nosso julgamento de Rosh Hashaná, pois podemos passar a vida enganando os outros e a nós mesmos, mas não podemos enganar a D'us.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 21:10-25:19, Is. 54:1-10

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

MESMO COM A ESPADA NO PESCOÇO - PARASHÁ SHOFTIM 5776

"Chaim foi levado a julgamento, acusado de um grave crime. Era uma acusação tão pesada que, caso ele fosse condenado, poderia receber a pena de morte. Seus parentes e amigos não economizaram para contratar os melhores advogados e fazer de tudo para inocentá-lo. Porém, apesar dos esforços incansáveis dos advogados, eles não tiveram sucesso em derrubar as acusações da promotoria. Infelizmente Chaim foi condenado à morte.

O desapontamento foi enorme, mas não era motivo para desistir. Ainda havia a possibilidade de recorrer a uma instância superior e apelar pela revogação da pena. Para este novo julgamento foram contratados mais advogados e uma enorme fortuna foi investida para tentar salvar Chaim. Mas novamente a promotoria foi mais forte e o decreto se manteve.

A situação foi ficando cada vez mais séria, pois as chances de reverter a pena foram diminuindo. Mas ainda havia uma esperança: o pedido de clemência feito diretamente ao rei. Foram recrutadas pessoas importantes, que tinham acesso direto ao rei, para que falassem coisas boas sobre Chaim. Além disso, a família de Chaim transbordou a caixa de correio do palácio real com cartas que descreviam a situação difícil da família de Chaim, em especial seus jovens filhos e seus pais idosos, além de outros fatos que poderiam despertar a misericórdia do rei. Porém, todos os esforços pareciam ser em vão, pois o decreto continuava de pé e a data da execução se aproximava. A família e os amigos já estavam entrando em depressão, pois Chaim foi levado ao "corredor da morte" para aguardar sua execução. Sobrava ainda apenas uma pequena ponta de esperança, irracional, de que algo inesperado aconteceria para salvá-lo, quem sabe algum milagre.

Quando chegou o fatídico dia, Chaim foi levado para a sala de execuções. Os familiares, ao escutarem as notícias, ficaram desesperados e perderam as últimas esperanças. Já não havia mais nada que podiam fazer para salvá-lo.  A pessoa apontada pelo tribunal para aplicação da pena de morte desembainhou sua espada, verificou se ela estava devidamente afiada e apoiou sobre o pescoço de Chaim, que ficou aguardando os poucos segundos até o golpe final. Quando o homem levantou a espada para dar o golpe fatal, um grito o fez parar. O rei entrou subitamente na sala de execução e mandou interromper a aplicação da pena. O pedido de clemência havia sido aceito. No último momento, quando já praticamente não restavam esperanças, chegou a salvação".

Explica o Rav Yitzchak Zeev Soloveitchik zt"l (Bielorússia, 1886 – Israel, 1959) que esta é uma ilustração do famoso ensinamento dos nossos sábios: "Mesmo se uma espada afiada está apoiada sobre seu pescoço, não desista da misericórdia". Nunca podemos desistir, mesmo quando tudo parece perdido. Esta é a Emuná (fé) verdadeira. 
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Na Parashá desta semana, Shoftim (literalmente "Juízes"), a Torá fala sobre as futuras guerras que o povo judeu travaria na conquista de Israel. Moshé deu um discurso para fortalecer a Emuná (fé) do povo, como está escrito: "Quando você sair para a guerra contra seus inimigos, e vir o cavalo e a charrete, um povo mais numeroso que você, não os tema, pois D'us está com você, Quem te tirou da terra do Egito" (Devarim 20:1). Moshé estava especialmente preocupado com o medo que o povo judeu poderia sentir de seus inimigos, pois após o relato dos dez espiões, que voltaram dizendo que os habitantes da Terra de Israel eram gigantes e as cidades eram muito fortificadas, o medo e a insegurança fez com que o povo chorasse e aquela geração inteira fosse proibida de entrar em Israel.

Porém, ao refletir sobre este discurso de Moshé para fortalecer a Emuná do povo, surge um questionamento. Por que foi tão grave aquele choro do povo judeu? Não é natural sentir medo diante de uma grande dificuldade ou uma situação na qual as condições são adversas? Como reagiríamos ao escutar que os inimigos que vamos enfrentar são gigantes que vivem em fortalezas? Qual foi exatamente a falha do povo, pela qual mereceram receber um castigo tão duro?

Explica o Rav Yechezkel Levenstein zt"l (Polônia, 1895 - Israel, 1974) que é uma obrigação daquele que tem Emuná saber que não há nada que D'us é incapaz de fazer. Temos a obrigação de reconhecer que não existe em toda Criação nenhuma lei ou força independente do controle total Dele. Nada acontece sem a Sua permissão, nem mesmo a folha de uma árvore cai se esta não foi a Sua vontade.

Mas manter a nossa Emuná completa em todas as situações não é algo fácil e muitas vezes nós tropeçamos nesta Mitzvá, pois acabamos associando que as coisas acontecem por "causas naturais", como se fossem forças independentes de D'us e sem a Sua supervisão. Até mesmo grandes personalidades da Torá tiveram seus pequenos deslizes nesta área. Por exemplo, quando Sara escutou o anjo disfarçado de beduíno avisando para Avraham que eles teriam um filho, sua primeira reação foi rir com descrédito, recebendo uma dura crítica de D'us: "Existe algo impossível para D'us?" (Bereshit 18:14). De acordo com as "leis da natureza" realmente era impossível Sara engravidar aos 90 anos. Porém, vivemos em um mundo que não é regido pelas leis da natureza, e sim por D'us, que tem controle sobre tudo. Sara, aos 90 anos, engravidou e teve um filho, indo contra todas as forças e leis da natureza.     

Ter Emuná significa ter a certeza de que, da mesma forma que D'us criou o universo inteiro, Ele pode mudar toda a ordem da Criação se esta for a Sua vontade. D'us renova Sua Criação a cada instante e, portanto, pode mudar qualquer lei do mundo quando quiser. Isto significa que aquele que tem Emuná verdadeira tem a obrigação de nunca desistir, em qualquer tipo de situação. Mesmo que um doente já esteja desacreditado pela medicina, mesmo quando tudo parece perdido, não podemos desistir, como ensina o Talmud (Brachót 10a): "Mesmo que uma espada afiada esteja colocada sobre seu pescoço, não desista da misericórdia". É proibido desistir da misericórdia de D'us em qualquer situação. A única coisa que pode mudar é a intensidade das nossas Tefilót (rezas) e pedidos para D'us, pois a Tefilá aumenta os nossos méritos e, em situações difíceis, são necessários mais méritos para uma intervenção Divina.

Muitos pensam que aquele que tem Emuná está em um nível especial e diferenciado. Mas a verdade é que não existe Emuná "pela metade", temos a obrigação de desenvolver uma Emuná completa. Seremos julgados pela nossa falta de Emuná mesmo em assuntos que, de acordo com as "leis da natureza", parecia não haver mais esperança ou salvação. Por que a falta de Emuná é considerado algo tão grave, a ponto de uma geração inteira ter perdido o mérito de entrar em Israel? Pois D'us tem controle total sobre tudo o que ocorre no universo, cada pequeno detalhe. Ele controla até mesmo cada grama que cresce e cada gota de chuva que cai. Para D'us não existe nenhuma diferença se existem "causas naturais" para a salvação ou não. Portanto, quando a pessoa perde suas esperanças, é como se estivesse limitando as possibilidades de D'us e dando forças independentes para as leis da natureza. Esta foi a grande bronca de D'us em Sara, pois o riso, mesmo sem intenção, demonstrou que ela não acreditava com toda sua força que D'us poderia reverter as leis da natureza que Ele mesmo criou. O choro do povo judeu demonstrou que eles não acreditavam que D'us poderia leva-los à vitória, limitando-O, e por isso não mereceram entrar em Israel.

Podemos tropeçar neste tipo de erro no nosso cotidiano. Quando estamos procurando uma vaga de estacionamento, muitas vezes não rezamos por pensar que isto é "algo pequeno demais para incomodar D'us". Porém, na realidade isto é falta de Emuná. É difícil para D'us, que criou todo o universo, conseguir uma vaga para nós? D'us é limitado e não consegue cuidar de várias coisas ao mesmo tempo? Não pedir a vaga é como se estivéssemos limitando a capacidade de atuação de D'us no mundo e, portanto, é considerado um grande erro. O correto é justamente o contrário, pois quando pedimos a D'us coisas pequenas do cotidiano, colocamos no coração a certeza de que tudo vem Dele.

Há ainda outro grande teste de Emuná que talvez é ainda mais difícil: conseguir lembrar que tudo vem de D'us mesmo nas situações em que há "causas naturais" para que algo ocorra. Por exemplo, uma enfermidade cuja cura é conhecida pela medicina. Neste caso, o grande teste é conseguir enxergar que a salvação não está vindo dos remédios ou da habilidade do médico, e sim diretamente de D'us. Esquecemos que foi D'us quem decretou que aquele remédio cure, e que foi Ele quem deu sabedoria ao médico para fazer o diagnóstico correto e receitar o remédio adequado.

A própria linguagem do versículo já demonstra o quanto não podemos nos deixar levar pelas impressões do mundo material. "Um povo mais numeroso que você" significa que, mesmo que pelas leis da natureza não haveria chance de vencer o inimigo, o povo judeu deveria estar confiante na vitória e não deveria sentir nenhum tipo de temor. Rashi (França, 1040 - 1105) explica que a linguagem "cavalo e charrete", no singular, significa que não importa quantos cavalos e charretes se levantam contra o povo judeu, aos olhos de D'us é tão insignificante quanto um único cavalo e uma única charrete. Também a linguagem "mais numeroso que você" é como se D'us estivesse dizendo: "Para você eles são mais numerosos, mas para Mim eles não são numerosos".  A Torá está nos ensinando que o sentimento do povo judeu quando sai para a guerra deve ser a mesma tranquilidade de quem sai para combater um único cavalo e uma única charrete, pois enquanto nossos inimigos apostam na vitória de pessoas de carne e osso, nós apostamos na vitória de D'us, e aos olhos Dele não há nenhuma diferença se é um povo numeroso ou não.

Na verdade, a Mitzvá de Emuná é ainda mais profunda do que imaginamos. Não apenas que não há nenhum benefício em se apoiar nas "causas naturais", mas ao contrário, a salvação de D'us vem justamente no momento em que parece que não há mais esperanças. Assim nos ensinou David HaMelech: "Muitas são as aflições do Tzadik (Justo), mas de todas elas D'us o salva" (Tehilim 34:19). A salvação de D'us vem justamente quando parece que são muitas as aflições que recaem sobre o Tzadik, como se não houvesse mais nenhuma chance de salvação. O motivo que D'us coloca a pessoa em uma situação na qual aparentemente não há esperanças é para que Ele possa avaliar se a sua Emuná é completa ou não.

Daqui aprendemos, portanto, que todo o tempo em que confiamos nas "causas naturais" e nos sentimos dependentes delas, é um sinal que estamos desconectados da nossa Emuná verdadeira. A Emuná exigida de nós é uma confiança plena em D'us, de que Ele está no controle e sempre faz o que é o melhor para nós. Quando realmente internalizarmos este conceito, perceberemos que as dificuldades são apenas testes que Ele manda para nos ajudar a crescer e melhorar em diversas área, em especial na Emuná. Mesmo quando a espada afiada está sobre o nosso pescoço, para D'us trazer a salvação não existe nenhuma dificuldade, pois para Ele não há diferença se está perto do fim ou não. A Emuná nos permite, apesar de vivermos em um mundo de incertezas e dificuldades, encontrar um oásis de tranquilidade e paz.
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 16:18-21:9, Is. 51:12-52:12

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

ELEVANDO O CORPO E A ALMA - PARASHÁ REÊ 5776

"Aharon era um aluno esforçado, mas para ele o estudo de Torá parecia muito difícil e pesado. Ele estudava, demorava para entender, e logo esquecia o que havia aprendido. Desanimado, foi questionar ao rabino:

- Por que devemos estudar Torá, se é tão difícil entender? E mesmo quando conseguimos entender, com o passar do tempo acabamos esquecendo tudo! Isto não é um esforço em vão?

O rabino escutou com atenção a pergunta, mas não respondeu imediatamente. Ficou olhando para o horizonte por alguns instantes e depois pediu para Aharon:

- Por favor, você poderia pegar aquele cesto de junco, descer até o riacho e encher o cesto de água para mim?

O discípulo olhou para o cesto, cheio de furos e completamente sujo, e achou muito estranho o pedido do rabino. Apesar disso, ele obedeceu. Pegou o cesto, desceu a enorme escadaria que levava até o riacho, encheu o cesto de água e começou a subir de volta. Como cesto era furado, a água foi escorrendo. Quando Aharon chegou até o rabino, já não restava quase nada de água. O rabino perguntou o que ele havia aprendido com aquela atividade. Aharon olhou para o cesto quase vazio e disse, de forma debochada, que a única coisa que ele havia aprendido era que um cesto de junco não servia para carregar água. O rabino pediu a Aharon que repetisse o processo de novo. Quando Aharon voltou com o cesto novamente quase vazio, o rabino outra vez perguntou o que ele havia aprendido. Aharon, já um pouco irritado, novamente respondeu com sarcasmo que um cesto furado não servia para carregar água. O rabino, sem se alterar, continuou pedindo que Aharon repetisse a tarefa, e Aharon continuou dando sempre a mesma resposta. Depois da décima vez, Aharon estava completamente exausto de tanto descer e subir as escadas. Desta vez, quando o rabino perguntou o que ele havia aprendido, Aharon olhou por alguns instantes para o cesto, refletiu e percebeu, admirado, que o cesto estava completamente limpo. Apesar do cesto não segurar a água, a repetição do ato de tentar enchê-lo acabou lavando o cesto completamente. O rabino, satisfeito, concluiu:

- Mesmo que você demore a aprender e não consiga decorar tudo o que estuda na Torá, saiba que este processo de esforço no estudo vai limpando aos poucos o seu corpo e a sua alma. Mesmo que não conseguimos enxergar, cada palavra de Torá que estudamos nos purifica e nos aproxima um pouco mais de D'us".

Conhecemos os efeitos positivos da Torá para nossa alma infinita. Mas esquecemos que a Torá também ajuda a purificar o nosso corpo e a nos conectar, mesmo estando em um mundo físico, a uma realidade espiritual. 
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Na Parashá desta semana, Reê, a Torá traz assuntos extremamente importantes para a nossa vida: os "Shalosh Regalim" (três vezes no ano em que todos os homens tinham a obrigação de ir ao Beit Hamikdash - Pessach, Shavuót e Sucót), a nossa obrigação de cuidar dos pobres e necessitados, e as leis de Kashrut. Além disso, a Torá traz uma série de leis que se aplicam ao nosso cotidiano.

Uma das leis trazidas nesta Parashá nos chama a atenção: "Vocês são filhos de Hashem, teu D'us. Não causem cortes sobre vocês" (Devarim 14:1). O versículo está nos ensinando que uma pessoa, diante da perda de um parente próximo e querido, não pode se desesperar ao ponto de causar feridas em seu próprio corpo. Mas por que antes de a Torá nos ensinar esta proibição de se autoflagelar, o versículo escreve "vocês são filhos de D'us"? Explica Rashi (França, 1040 - 1105) que não devemos desfigurar nosso corpo justamente por sermos filhos de D'us. Por isso, é apropriado que cuidemos bem do nosso corpo para mantê-lo com uma boa aparência.

Porém, esta explicação de Rashi é aparentemente contraditória com um ensinamento do Talmud (Nidá 31a), que afirma que há três sócios na criação do ser humano: o pai, a mãe e D'us. Enquanto os pais provêm à criança suas características físicas, D'us provê à criança uma alma. Então por que este versículo descreve nossa relação com D'us como sendo "filhos" em um contexto de cuidar do nosso corpo, e não da nossa alma?

Além disso, o Talmud (Yevamot 13b) aprende das palavras "não causem cortes" outro ensinamento. É proibido, em uma mesma comunidade, as pessoas se dividirem em "facções" e cumprirem as Halachót (leis judaicas) de forma divergente, dando a impressão que existem várias Torót, e não apenas uma Torá para todo o povo judeu. Mas por que ambos os ensinamentos derivam do mesmo versículo? Qual é a conexão entre não causar cortes no corpo e não dividir o povo em facções que cumprem a Halachá de maneira divergente?
Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta está no "Shemá Israel", onde nós somos comandados a ensinar Torá aos nossos filhos, como está escrito: "E ensinem aos seus filhos" (Devarim 6:7). Rashi comenta que a linguagem "seus filhos" se refere, na verdade, aos seus alunos, pois os alunos de uma pessoa são considerados como se fossem seus filhos. Para dar suporte à sua opinião, Rashi menciona justamente o versículo da nossa Parashá, "vocês são filhos de D'us". Através deste comentário de Rashi no "Shemá Israel" podemos entender que ele opina que através do estudo da Torá de D'us nos tornamos "Seus alunos" e, portanto, podemos ser chamados de "Seus filhos".

O Talmud (Baba Metsia 33a) ressalta ainda mais esta elevação que o estudo de Torá traz ao ser humano. Existe a Mitzvá de "Ashavat Aveidá", que cumprimos ao devolver um objeto perdido ao seu dono. O Talmud nos ensina que, quando uma pessoa está diante de um objeto perdido de seu professor de Torá e um objeto perdido de seu pai, ela está obrigada a devolver primeiro o objeto ao seu professor de Torá e somente depois ao seu pai. Mas por que devemos devolver nesta ordem, que aparentemente vai contra a nossa lógica? O pai, a pessoa que nos deu a vida, não deveria ter a prioridade?

O Talmud traz uma justifica incrível. O pai dá ao filho apenas uma existência física e finita no mundo material, enquanto o professor que ensina Torá dá ao seu aluno, além de uma existência infinita para sua alma no Mundo Vindouro, também uma elevação para o corpo físico dado por seu pai. Quando uma pessoa consegue elevar seu corpo material, ela passa de uma existência física e finita a um estado espiritual eterno. Obviamente que temos uma enorme obrigação de honrar nossos pais e demonstrar eterna gratidão por tudo o que eles fizeram e fazem por nós, mas o Talmud deixa claro que aquele que nos ensina Torá "completa" o que nossos pais nos deram, ao nos ajudar a transformar um corpo que era apenas físico em algo repleto de espiritualidade.

Com este conceito podemos entender qual é a relação entre não dilacerar o corpo e o fato de sermos "filhos de D'us". O corpo e a alma foram criados com naturezas opostas. Enquanto a alma busca naturalmente a conexão com D'us e a espiritualidade, o corpo busca naturalmente a conexão com os prazeres materiais, dando a impressão de que vieram de fontes diferentes. Porém, embora o Talmud afirme que D'us é a Fonte da nossa alma, enquanto os pais são a fonte do nosso corpo, o estudo da Torá permite que o corpo se eleve e também possa ser percebido como um produto da mesma Fonte Divina, isto é, que deixa de ser algo apenas material e seja visto como algo espiritual e infinito. Por isso, aquele que quer se comportar como "filho de D'us" deve se esforçar para que seu corpo, que também demonstra a grandeza de D'us, seja cuidado da maneira correta. Cuidar do corpo, neste caso, é uma forma de ressaltar ainda mais a Divindade que está por trás da Criação do ser humano, tanto fisicamente quanto espiritualmente.

Quando conseguimos alcançar a reconciliação entre o corpo e a alma, damos a maior prova de que tudo vem de uma única Fonte. Mas como podemos fazer esta reconciliação? Como criações com naturezas tão opostas podem trabalhar juntas? A única "ferramenta" capaz de realizar esta reconciliação é a Torá, que nos ensina a como canalizar os prazeres físicos para um propósito espiritual. E pelo fato de a Torá ser a única "ferramenta" que faz esta reconciliação, é muito importante que ela seja vista também como vinda de uma única Fonte. Qualquer ação que venha distorcer esta verdade debilita a eficácia da Torá em unir e reconciliar todas as aparentemente divergentes forças da Criação. É por isso que deste mesmo versículo o Talmud aprende a grave proibição de se formarem facções separadas que, na mesma comunidade, cumprem a Halachá de forma divergente, pois isto destrói o espírito de união da Torá.

Realmente o estudo da Torá é difícil, e guardar seus conhecimentos exige muita dedicação, Chazarót (revisões) constantes e concentração. Estudar Talmud, por exemplo, é um grande desafio ao nosso intelecto. Porém, um dos efeitos mais importantes do nosso estudo de Torá é a purificação que ele traz para a nossa alma e para o nosso corpo. Estamos sempre tão conectados com os nossos desejos que esquecemos que é necessário canalizar também a parte material para o lado espiritual. Às vezes esquecemos que devemos ser espirituais também fora da sinagoga, mesmo nos menores e mais simples atos do cotidiano. O estudo da Torá nos ajuda, pois ao purificar nosso corpo e nossa alma, nos conecta com o espiritual mesmo nas atividades mais mundanas. Pois a mesma Fonte que criou a nossa alma também criou o nosso corpo, para que juntos, corpo e alma, possamos nos elevar e atingir a perfeição.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 11:26-16:17, Is. 54:11-55:5