sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

DANDO BRONCA COM AMOR - PARASHÁ VAIGASH 5775


"O rabino Dovid estava caminhando pela rua e passou por uma lanchonete não kasher. Ele ficou chocado e surpreso ao ver Daniel, um frequentador da sua sinagoga, sentado na lanchonete e comendo um sanduíche. O rabino parou e ficou olhando fixamente para Daniel, para ver até onde chegava a cara de pau dele. E parece que o nível de atrevimento de Daniel havia chegado ao limite, pois mesmo quando percebeu que o rabino estava olhando para ele, não se abalou e continuou comendo tranquilamente.

O rabino Dovid decidiu esperar Daniel na porta da lanchonete, e assim que ele saiu, começou a repreendê-lo com palavras duras:

- Por que você estava comendo neste lugar? Você não sabe que não é não kasher? Você não tem vergonha na cara? Você não percebeu que eu estava olhando para você o tempo todo, e mesmo assim continuou comendo como se nada estivesse acontecendo?

O mais incrível é que Daniel não se abalou. Abrindo um enorme sorriso, ele respondeu ao rabino:

- Ué, eu sempre escutei que a comida, para ser kasher, precisa ser supervisionada. Quando eu vi você me olhando e supervisionando meu sanduíche enquanto eu comia, fiquei mais tranquilo, pois sabia que estava comendo algo supervisionado pelo rabino e que era, portanto, kasher..."

A piada pode ser engraçada, mas o ensinamento que está por trás dela é muito sério. Muitas vezes queremos ajudar as pessoas a consertarem seus erros, e acabando dando uma grande bronca nelas. Mas se esta repreensão for feita da maneira incorreta, então o tiro pode sair pela culatra, e ao invés da pessoa corrigir seu erro, ela pode procurar desculpas para continuar cometendo os mesmos atos equivocados.
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Na Parashá da semana passada, Miketz, após passar 22 anos afastado de sua família, Yossef finalmente reencontrou seus irmãos e percebeu que aquela era a grande oportunidade de testar se eles estavam arrependidos por terem-no vendido, motivados pela inveja que sentiam dele. Yossef, que na época da venda tinha apenas 17 anos, agora era o vice rei do Egito e não foi reconhecido por seus irmãos. Ele convidou seus irmãos para uma refeição e, antes deles saírem, escondeu sua taça de prata na sacola de seu irmão Biniamin, que também era o filho preferido de Yaacov, para posteriormente acusá-lo de roubo e condená-lo a ser escravo no Egito para sempre. A ideia de Yossef era testar se seus irmãos, por inveja, aproveitariam a oportunidade para também se livrar de Biniamin, como tinham feito com ele.

Já a Parashá desta semana, Vaigash, começa com Yehudá arriscando sua própria vida para enfrentar Yossef e exigir a libertação de Biniamin. Entre outros argumentos, Yehudá mencionou que seu pai, já idoso, não suportaria ficar sem seu filho preferido. Ao ver que os irmãos estavam realmente arrependidos, Yossef não aguentou a emoção e se revelou para eles, como está escrito: "Eu sou Yossef. Meu pai ainda está vivo? E seus irmãos não puderam responder para ele, pois estavam em choque diante dele" (Bereshit 45:3). Por que os irmãos ficaram em choque e não puderam dizer nada? Por causa da enorme vergonha que sentiram ao escutar as palavras de Yossef.

Ensina o Midrash (parte da Torá Oral) que através da reação dos irmãos fica claro que Yossef os estava repreendendo por terem-no vendido. Este entendimento é reforçado pelo fato de diversas vezes os irmãos de Yossef terem repetido que Yaacov ainda estava vivo, não havendo nenhum motivo para que Yossef perguntasse isto novamente, deixando claro que as palavras de Yossef tinham certamente outras implicações. Mas como entender que as palavras "meu pai ainda está vivo?" foram uma repreensão? Segundo o Rav Yossef Dov Soloveitchik (Bielorússia, 1820 - 1892), mais conhecido como Beis Halevi, é como se Yossef estivesse dizendo para Yehudá: "Foi muito bonito agora você ter vindo defender o Biniamin, pedindo para que eu tivesse misericórdia de seu pai idoso. Mas por que você mesmo não teve misericórdia de seu pai idoso quando você decidiu me vender como escravo?". Yossef conseguiu demonstrar, de uma maneira lógica e racional, que o ato dos irmãos de terem-no vendido havia sido um grande erro.

O ato de Yossef de repreender seus irmãos foi correto, pois existe inclusive uma Mitzvá na Torá de repreender uma pessoa que está fazendo algo errado, como está escrito: "Advirta seu companheiro, e que a transgressão não recaia sobre você" (Vayikrá 19:17). Mas o propósito de repreender uma pessoa nunca deve ser de envergonhá-la ou diminuí-la, e sim mostrar que ela cometeu um erro e que precisa corrigir seus caminhos. Esta Mitzvá é muito difícil de ser cumprida, pois quando damos uma bronca em alguém, normalmente atacamos diretamente a pessoa que cometeu a transgressão, e há uma grande chance de ela reagir da maneira oposta como desejávamos. Quando a pessoa é confrontada com a acusação de que cometeu uma transgressão, normalmente ela se torna defensiva e pode até mesmo fortalecer seu comportamento errado apenas para justificar para si mesma que é um comportamento correto. E a isto se refere o final do versículo que diz "e que a transgressão não recaia sobre você", pois se não repreendermos a pessoa da maneira correta, e por causa disto ela piorar ainda mais seus atos, seremos cobrados por este "acréscimo". Portanto, precisamos ser sábios no momento de repreender alguém.

Esta foi a grandeza da repreensão de Yossef, que tocou o coração dos seus irmãos e os ajudou a consertar o que eles haviam feito de errado. Há um pequeno detalhe que nos chama a atenção nas palavras de Yossef, que é a chave para a repreensão ter realmente funcionado. Quando Yossef criticou seus irmãos, ele perguntou "meu pai ainda está vivo?". Mas por que ele não falou "nosso pai"? Qual mensagem ele estava transmitindo ao chamar Yaacov somente de "meu pai"?

Explica o Rav Yohanan Zweig que uma possível explicação é que Yossef não quis criticar a atitude errada de seus irmãos de maneira direta, por causa do risco deles se tornarem defensivos e não aceitarem a repreensão. Então ele tentou atingir seu objetivo de outra maneira, focando no dano causado ao invés de focar no ato errado, isto é, mostrando para os irmãos as terríveis consequências que seu ato errado havia causado. Por isso a primeira pergunta de Yossef após ter se revelado aos seus irmãos foi "meu pai ainda está vivo?", pois ele estava deixando claro que, de todos os sofrimentos que havia passado nos últimos 22 anos, o pior de todos havia sido a distância de seu pai. Com esta pergunta, Yossef estava derramando a tristeza que havia se acumulado em seu coração durante todos aqueles anos nos quais ele não conseguiu aproveitar o amor de Yaacov. E a Torá fala que, ao escutar estas palavras, os irmãos de Yossef não conseguiram responder nada, pois estavam completamente envergonhados. Não uma vergonha por terem sido diretamente repreendidos por Yossef, mas pelo resultado de terem entendido a dor e o sofrimento que o erro deles havia causado.

Este é um importante ensinamento para nossas vidas. Muitas vezes queremos criticar uma pessoa por um erro que ela cometeu, mas acabamos fazendo da forma incorreta e pioramos ainda mais a situação. Isto acontece porque normalmente damos uma bronca nos outros apenas preocupados em resolver algo que está nos incomodando, e não com intenção de melhorar algo na outra pessoa. Já Yossef tinha como preocupação principal o crescimento espiritual dos seus irmãos, queria que eles enxergassem o que haviam errado para poderem consertar. Por isso ele fez a crítica de uma maneira que não despertasse desculpas e tentativas de encobrir o ato errado. E a melhor maneira do erro ficar evidente era demonstrando as terríveis consequências do mau ato que eles haviam cometido.

A crítica é uma ferramenta que podemos utilizar para transformar o mundo em um lugar melhor. Mas é uma ferramenta que deve ser utilizada por amor, não por egoísmo. A repreensão é algo que somente deve ser utilizada quando nosso intuito é que o próximo possa consertar seus erros e crescer espiritualmente. Portanto, uma repreensão nunca deve ser feita de forma impensada, quando estamos de "cabeça quente", pois certamente não trará benefícios. Criticar é uma Mitzvá, mas criticar da maneira incorreta, causando dor, sofrimento e tristeza, é uma grande transgressão.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 44:18-47:27, Ez. 37:15-28

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

RASO OU PROFUNDO? - CHÁNUKA II 5775

"Certa vez um professor de moral e ética de uma escola tradicional foi pego traindo a esposa, um ato completamente imoral. Foi um grande choque saber que justamente aquele que ensinava moral e ética se comportava de maneira tão vergonhosa. O professor foi chamado pelo diretor da escola para dar explicações, mas ao contrário do que era esperado, ele não pediu desculpas e nem se envergonhou do seu comportamento imoral. Ele ainda quis se justificar:

- Por acaso o professor de matemática precisa ser um triângulo? Ou o professor de biologia precisa ser uma batata? Então por que eu, só por dar aula de moral e ética, preciso ser uma pessoa moral e ética?"

Infelizmente este comportamento é um dos legados da superficialidade da cultura helenista. Quando Aristóteles, o grande filósofo grego, certa vez foi pego cometendo um ato imoral, ele foi questionado por seus alunos se aquilo não era contraditório com seus ensinamentos. Sem se abalar, ele explicou: "Naquele momento em que eu estava fazendo aquele ato, eu não era o Aristóteles".
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Neste Shabat lemos a Parashá Miketz e continuamos comemorando a festa de Chánuka, que relembra a incrível vitória militar do povo judeu sobre o poderoso exército grego e o posterior milagre do óleo, que era suficiente para acender apenas um dia da Menorá que havia no Beit Hamikdash (Templo Sagrado), mas durou oito dias, tempo suficiente para que mais óleo puro fosse produzido. Inicialmente os Yevanim (gregos) vieram a Israel sem intenção de nos atacar militarmente, pois eles acreditavam que poderiam influenciar o povo judeu a abandonar a Torá e as Mitzvót através da ideologia "iluminada" do Helenismo, que eles consideravam como sendo uma forma superior de vida. Porém, como a maioria do povo judeu resistiu às suas tentativas de assimilação, os gregos se tornaram hostis e começaram a obrigar os judeus a abandonarem a Torá. Um pequeno grupo de judeus iniciou uma rebelião e conseguiu expulsar os gregos. A partir daí nossos sábios decidiram estabelecer uma comemoração permanente desta vitória.

Mas sabemos que no judaísmo as festas não são apenas recordações de algo que aconteceu no passado. Por que continuar comemorando um evento que ocorreu há mais de 2 mil anos? Explica o Rav Yehonasan Gefen que para aprender lições atuais do conflito entre os judeus e os gregos, devemos entender com maior profundidade exatamente o que estava em jogo, e para isso precisamos voltar à descrição que a Torá faz dos antepassados que deram origem aos judeus e aos gregos. Noach (Noé) tinha três filhos: Shem, que deu origem ao povo judeu; Yefet, que deu origem aos gregos; e Cham. A Torá descreve um incidente envolvendo os três filhos de Noach que traria consequências importantes para seus descendentes. Logo após o dilúvio, Noach desceu da arca, se embebedou e ficou nu em sua tenda. Cham, o filho mais novo, não queria dividir a herança de seu pai com mais irmãos, então aproveitou para castrar seu pai, evitando que ele tivesse mais filhos. Quando Shem e Yefet escutaram que Noach estava nu na sua tenda, foram imediatamente cobri-lo para diminuir sua vergonha, e ambos foram recompensados por este bom ato. Os descendentes de Shem foram recompensados com a Mitzvá de vestir uma roupa contendo "Tzitzit", enquanto os descendentes de Yefet foram recompensados com um enterro digno dos corpos de seus soldados após as batalhas. Mas por que esta diferença, se aparentemente o ato foi o mesmo? Por que os descendentes de Shem meritaram uma nova Mitzvá, que é uma oportunidade para crescer em espiritualidade, enquanto a recompensa de Yefet foi apenas um benefício para o corpo?
Explica Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, que foi Shem quem iniciou o ato de cobrir seu pai, e somente depois Yefet se juntou a ele. Isto quer dizer que Shem teve uma incrível agilidade e preocupação com a vergonha de se pai, enquanto Yefet apenas seguiu o que seu irmão já tinha começado a fazer. Além disso, há outra enorme diferença entre os dois atos: a Kavaná (intenção) de cada um deles. Quando Shem viu a nudez de seu pai exposta, ele entendeu que aquilo era um enorme problema espiritual, associado à falta de Tzniut (recato), e por isso teve a reação imediata de cobrir seu pai para tirá-lo daquele estado de vergonha. Já Yefet não reagiu imediatamente, pois não considerava a nudez um problema. Ele somente tomou uma atitude quando percebeu que o corpo do seu pai havia sido mutilado, "estragando" sua perfeição natural e necessitando ser coberto por causa da vergonha de seu corpo não estar intacto. Como Shem viu o ato de cobrir seu pai como algo que podia trazer dignidade ao ser humano, então ele foi recompensando com a mais digna forma de vestimenta: o Tzitzit, que carrega o "emblema" de D'us. Já Yefet, que somente viu problemas na exposição de um corpo nu por causa de sua mutilação, meritou que os corpos de seus descendentes não ficariam abandonados ao apodrecimento nos campos de batalha, e sim seriam honrados através de um enterro digno.

Imediatamente após este incidente, Noach fez uma importante afirmação: "D'us dará beleza para Yefet, e ele habitará nas tendas de Shem" (Bereshit 9:27). Os comentaristas explicam que Yefet recebeu a Brachá (Benção) do tipo mais superficial de beleza. Mas para que este tipo de beleza seja utilizada da maneira correta, ela deve estar na "tenda de Shem", isto é, deve ser utilizada para aumentar a espiritualidade do ser humano. Há um interessante ensinamento do Talmud (Meguila 9b), baseado no versículo mencionado acima, que ensina que um Sefer Torá somente pode ser escrito em duas línguas: hebraico e grego. O Talmud está dando um exemplo de como a beleza de Yefet, quando utilizada na tenda de Shem, pode produzir uma linda combinação.

Por que Noach deu esta Brachá para Shem e Yefet logo depois do incidente ocorrido? Apesar de utilizar uma lógica equivocada, da beleza e perfeição do corpo, Yefet se juntou ao bom ato de seu irmão Shem, que fazia o ato com as intenções espirituais corretas. Apesar de Yefet não ter a intenção correta, junto com Shem ele fez o ato correto, tirando a vergonha de seu pai. E esta foi a Brachá, de que se Yefet estivesse continuamente junto com Shem, aprenderia a fazer os atos corretos e com as intenções corretas. Ele continuaria a apreciar a perfeição do corpo e sua beleza, mas canalizaria isso para o lado espiritual, aprofundando algo que era apenas superficial.

Porém, a Brachá de Noach foi bem clara: isto somente se aplica quando Yefet se esforça para se aprofundar na sua apreciação da beleza e conectá-la com a espiritualidade de Shem. Mas quando Yefet rejeita este aprofundamento, o resultado é que a beleza rapidamente se degrada e se transforma em algo apenas físico e superficial. Foi o que ocorreu com os gregos, que enfatizaram apenas a beleza física do ser humano, e acabaram praticando atos grosseiros de indecência e imoralidade.

Explica o Rav Chaim Friedlander (1923 - Israel, 1986) que há outro aspecto que ressalta a superficialidade dos gregos. Também na área da sabedoria os gregos eram muito superficiais, isto é, o que eles sabiam não influenciava no que eles eram, como se justificou Aristóteles ao deixar claro que os ensinamentos de sua sabedoria não deveriam obrigatoriamente se refletir em seus atos cotidianos. Por outro lado, o judaísmo representa justamente o contrário desta superficialidade grega. A Torá nos obriga a aplicarmos suas lições à nossa parte mais interior. Uma pessoa que estuda Torá e não a aplica em seus atos cotidianos não é considerado um verdadeiro estudioso de Torá. Estas diferenças entre os gregos e o povo judeu causaram este grande antagonismo entre as duas nações, e ao invés de apreciar a profundidade dos ensinamentos da Torá, os gregos reagiram com inveja e fizeram enormes esforços para destruir esta forma de sabedoria "rival". A superficialidade dos gregos pode ser percebida até mesmo nas letras de seu nome. "Yavan" é escrito com as letras "yud", "vav" e "nun sofit", sendo as três letras finas e retas, sem nenhuma "espessura", demonstrando que Yavan era uma nação superficial.

Portanto, esta guerra entre os gregos e o povo judeu não foi apenas uma batalha militar entre duas nações lutando pelo poder, mas sim uma batalha espiritual, um choque entre duas ideologias: a superficialidade de Yavan contra a espiritualidade profunda de Israel. Esta foi a primeira guerra ideológica da história da humanidade, um choque entre duas perspectivas de vida que não podiam coexistir de forma pacífica. Por isso todos os anos recordamos o conflito judaico-helenista, que aconteceu há mais de 2 mil anos atrás, pois apesar de termos sido vitoriosos naquela batalha, a luta continua até os nossos dias.

A Cultura Ocidental foi fortemente influenciada pela forma de pensar dos gregos, em especial a superficialidade, a falta de espiritualidade e a busca pela beleza do material sem nenhuma profundidade. Esta guerra existe inclusive dentre aqueles que estão conectados com a Torá. Por exemplo, muitas pessoas julgam os outros mais pelas roupas que usam do que pelos seus traços de caráter, criando rótulos de "kasher" ou "não kasher" sem nem mesmo conhecer as pessoas. Mesmo quando julgamos a nós mesmos, sentimos que usar roupas "religiosas" é um grande indicador do nosso sucesso espiritual, e não fazemos uma real reflexão sobre o nosso comprometimento com a Torá e com as Mitzvót. Muitas vezes nos preocupamos mais em como os outros nos veem rezando do que com a nossa real conexão com D'us no momento da Tefilá. Estes são apenas alguns poucos exemplos que demonstram o enorme risco de que toda a Torá que aprendemos se mantenha apenas em um nível superficial, sem conseguir penetrar em nossos corações e influenciar nossos traços de caráter.

Vemos que no mundo não judaico, e também no mundo judaico, ainda é muito forte a influência da ideologia grega. Portanto, a guerra contra os gregos não é algo do passado, é algo do presente, é uma luta que cada um de nós deve lutar. A luta contra a superficialidade, contra os rótulos que criamos em nossas cabeças, contra a exaltação da beleza física sem nenhum tipo de profundidade. Quando acendemos cada uma das velas de Chánuka, é uma nova chance de abrirmos nossos corações, para que todo o nosso conhecimento de Torá possa penetrar e nos preencher, e não permanecer dentro de nós apenas de maneira superficial.

Que em Chánuka possamos não apenas vestir roupas "religiosas", mas possamos também meritar um coração "religioso", que não rotula as pessoas e que absorve e transforma em bons atos todos os nossos conhecimentos de Torá.

SHABAT SHALOM e CHÁNUKA SAMEACH

Rav Efraim Birbojm
 

sábado, 13 de dezembro de 2014

VALORES VERDADEIROS - PARASHÁ VAIESHEV E CHÁNUKA 5775

"Um rei havia presenteado sua filha com um belo colar de diamantes, mas certo dia o colar desapareceu. O rei, desesperado, anunciou uma grande recompensa para quem o encontrasse. Naquela mesma semana Jorge resolveu voltar caminhando para casa. Quando chegou perto de uma área industrial, passou por um rio poluído, sujo e com um cheiro insuportável. Jorge então viu algo brilhando no fundo do rio. Curioso, chegou mais perto e viu que era o colar de diamantes da princesa. Quis pegá-lo para receber a recompensa e enfiou a mão naquela água imunda, mas não conseguiu alcançá-lo. Entrou no rio e sujou toda a roupa, mas ainda assim não alcançou o colar. Estava tão obcecado que decidiu mergulhar no rio imundo, porém não alcançava o colar. Ficou desolado, pois estava imundo e o colar continuava no fundo do rio, tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe.

Caminhava cabisbaixo quando encontrou Aharon, um homem muito sábio, que percebeu que havia algo errado. Aharon perguntou qual era o problema, mas Jorge não queria compartilhar o segredo, com medo que Aharon iria pegar o colar escondido. Mas Aharon insistiu e Jorge acabou explicando o mistério do colar que podia ser visto mas não podia ser alcançado. Aharon abriu um sorriso e disse:

- Vou te dar uma dica preciosa. Ao invés de olhar para baixo, para o rio imundo, tente olhar para cima. Assim você vai conseguir pegar o colar valioso.

Jorge não entendeu as palavras de Aharon. O que significava olhar para cima, se ele estava procurando um colar de diamantes no fundo do rio? Porém, como não tinha nada a perder, voltou ao local e olhou para cima. Não acreditou quando viu que sobre o rio se estendiam os galhos de uma árvore, e na ponta de um deles estava pendurado o colar. Entendeu que, até aquele momento, havia apenas tentado pegar o simples reflexo do colar verdadeiro".

Buscar preenchimento completo nos bens materiais é como mergulhar em um rio poluído e imundo, pois é um mero reflexo da felicidade verdadeira que existe no mundo espiritual.
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Nesta semana lemos a Parashá Vaieshev, que fala sobre Yossef, filho de Yaacov, e seus irmãos. A Parashá começa com Yossef descrevendo aos irmãos seus dois sonhos, que causaram um grande desgaste no relacionamento entre eles. Assim ele descreveu seu primeiro sonho: "Nós estávamos atando feixes no meio do campo, e eis que meu feixe se levantava e ficava em pé, e seus feixes se juntavam em volta e se curvaram diante do meu feixe" (Bereshit 37:7). E assim ele descreveu seu segundo sonho: "O sol, a lua e onze estrelas se curvavam diante de mim" (Bereshit 37:9). É interessante perceber que, apesar dos sonhos terem sido muito parecidos, a reação dos irmãos de Yossef foi completamente diferente. Depois do primeiro sonho a Torá diz que os irmãos de Yossef o odiaram ainda mais, porém depois do segundo sonho a Torá diz que os irmãos de Yossef sentiram inveja dele. Por que esta diferença?

Responde o Rav Yossef Dov Soloveitchik (Bielorússia, 1820 - 1892), mais conhecido como Beit Halevi, que os sonhos têm entre si uma diferença sutil, mas que muda completamente o significado deles. No primeiro sonho não foram os irmãos que se curvaram para Yossef, e sim os feixes deles que se curvaram para o feixe de Yossef. Já no segundo sonho os próprios irmãos, representados pelas onze estrelas, se curvaram diante de Yossef. Este pequeno detalhe foi suficiente para fazer uma enorme diferença na reação dos irmãos de Yossef.

Explica o Beit Halevi que os dois sonhos representavam visões proféticas sobre duas áreas nas quais os irmãos de Yossef seriam subordinados e inferiores a ele. Os feixes do campo do primeiro sonho representavam a futura superioridade que Yossef teria sobre seus irmãos em relação ao sucesso no Olam Hazé (mundo material). Os feixes dos irmãos se curvarem diante do feixe de Yossef significava que eles seriam dependentes de Yossef em seu sustento físico. Porém, o sucesso no mundo material não faz com que a pessoa seja intrinsecamente superior às outras, somente significa que ela tem mais posses. Uma pessoa milionária não é melhor e nem está em um nível mais alto do que uma pessoa muito pobre. É por isso que a Torá diz que os feixes se curvaram, isto é, as posses físicas dos irmãos de Yossef estariam subordinadas às posses físicas de Yossef, mas não a essência deles. Já o segundo sonho representava a visão profética da superioridade espiritual que Yossef teria sobre seus irmãos. As estrelas fazem parte das "Mazalot" (constelações), que exercem muita influência sobre as características de cada ser humano. Portanto, neste segundo sonho foram os irmãos mesmos que se curvaram diante de Yossef. O sonho mostrava que Yossef também chegaria a uma realização espiritual maior do que seus irmãos.

Esta explicação nos ajuda a entender a diferente reação dos irmãos de Yossef a cada um dos sonhos. O ódio surge quando alguém se ressente da atitude de outra pessoa, enquanto a inveja surge quando alguém se sente inferior em relação a outra pessoa. Os irmãos de Yossef o odiaram após o primeiro sonho, pois se ressentiram ao entender que dependeriam dele para obter seu sustento e que seriam governados por ele. Porém, eles não sentiram inveja, pois o fato de Yossef ter mais riquezas não os fez se sentirem inferiores. Eles viam as realizações e conquistas materiais como algo externo à pessoa e, portanto, algo que não era digno de inveja. Mas após ouvirem o segundo sonho, a Torá descreve que eles sentiram inveja, pois o sonho revelava que Yossef chegaria a um nível espiritual superior ao nível deles. Como as conquistas espirituais são algo intrínseco da pessoa, isto despertou inveja nos irmãos, pois os fez se sentirem inferiores.

De acordo com o Rav Yehonasan Gefen, dos ensinamentos do Beit Halevi aprendemos duas lições importantes. A primeira lição é que as posses materiais de uma pessoa não definem sua verdadeira grandeza. A Torá nos ensina que uma pessoa que tem muito dinheiro deve ser respeitada, mas não devemos invejar a riqueza de ninguém, pois o dinheiro não é o medidor do valor real de uma pessoa. Somente o nível espiritual determina a verdadeira grandeza de alguém, e isto sim é digno de ser invejado.

Infelizmente vivemos em uma sociedade que dá muita ênfase para as posses materiais. As pessoas não são medidas pelo que elas são, e sim pelo que elas têm. Por exemplo, vemos que as pessoas em geral são muito reservadas em relação à sua situação financeira. Por que? Quando algo é muito importante para uma pessoa, ela não gosta de revelar aos outros, pois considera como sendo parte da sua essência. É por isso que a maioria das pessoas não revela nem mesmo aos amigos seu salário e o valor do seu apartamento. Esta visão equivocada é tão penetrante que "contamina" até mesmo pessoas mais conectadas com a espiritualidade, tornando difícil não dar importância ao status financeiro. Uma solução é aprendermos com os Gdolei HaDor (grandes sábios da nossa geração), como o Rav Chaim Kanievsky e o Rav Aharon Leib Shteinman, rabinos que têm prestígio e poder suficientes para serem pessoas ricas e ostentadoras, mas que preferiram viver vidas simples, sem nenhum tipo de luxo. Sob as mãos deles passam milhares e milhares de dólares, mas tudo é destinado à caridade. E mesmo sendo simples e pobres, eles são os gigantes espirituais da nossa geração, respeitados por todos. Quanto mais claridade tivermos do nosso verdadeiro valor, mais força teremos para lutar contra esta má inclinação.

A verdade é que esta luta já é antiga dentro do povo judeu. Na próxima 3ª feira de noite (16/12) começa a festa de Chánuka, época em que recordamos a milagrosa vitória do povo judeu sobre os gregos, que constituíam o maior e mais poderoso império da época. Porém, maior do que a vitória militar foi a vitória espiritual. Os gregos trouxeram para Israel sua filosofia, baseada na busca de prazeres físicos, na perfeição do corpo e na supervalorização dos nossos bens materiais, contaminando o povo judeu e tentando arrancar nossa espiritualidade através da assimilação. Mas uma parte do povo não se intimidou com a força física nem com a "gloriosa" filosofia grega, e mesmo sendo um pequeno grupo, estes judeus foram valentes e se rebelaram contra o domínio grego. Milagrosamente eles conseguiram infligir ao poderoso exército grego pesadas baixas, até que os gregos desistiram e partiram. Foi a vitória do espiritual sobre o material, da santidade sobre a impureza. É esta vitória que recordamos quando acendemos, durante os 8 dias de Chánuka, não apenas as velas das nossas Chanukiót, mas os nossos próprios corações. Pois apenas uma batalha foi vencida contra os gregos, porém a luta continua. Depende de nós expulsarmos do mundo a escuridão grega. A escuridão que nos cega e não nos deixa perceber que o verdadeiro valor de um ser humano é o que ele é, e não o que ele tem.

SHABAT SHALOM e CHÁNUKA SAMEACH

Rav Efraim Birbojm

sábado, 6 de dezembro de 2014

RESSURREIÇÃO DOS MORTOS - PARASHÁ VAISHLACH 5775

O Rav Yitzchak Hutner (Polônia, 1906 - Israel, 1980), o Rosh Yeshivá (líder espiritual) da Yeshivá Pachad Yitzchak, além de ser um grande sábio de Torá, era também uma pessoa extremamente sensível às necessidades das pessoas, em especial de seus alunos.

Certa vez, seu aluno Moshé Cohen (nome fictício), que não era daqueles alunos que mais se destacavam, fez uma pergunta aparentemente simples no meio de uma das aulas. Para o espanto de todos, o Rav Hutner respondeu a pergunta com um entusiasmo fora do normal, como se a pergunta tivesse sido genial. E durante a aula ele repetiu a pergunta várias vezes, com grande admiração. Mas os outros alunos, que não enxergaram nenhuma genialidade naquela pergunta, não conseguiram entender a reação do rabino.

Porém, o Rav Yitzchak Hutner sabia muito bem o que estava fazendo. Moshé Cohen estava passando por um momento muito difícil. Com dificuldades no estudo, ele tinha sérios problemas de autoestima e estava em uma fase de grande queda espiritual, desanimado e com risco de acabar se desviando completamente dos caminhos da Torá. Naquele dia, quando ele escutou os elogios do Rav Hutner, sua vida mudou. Receber aqueles elogios do Rosh Yeshivá deu um enorme impulso na sua autoestima. Ele conseguiu frear aquela queda espiritual e começou uma mudança de marcha na sua vida, melhorando cada vez mais nos estudos e no cumprimento das Mitzvót. Pouco tempo depois ele havia se transformado em uma fonte de vitalidade na Yeshivá. Os pais de Moshé Cohen relataram que o Rav Hutner conseguiu, com um simples ato, realizar uma proeza gigantesca, no mesmo nível de "ressuscitar os mortos".

Quando o Rav Hutner mostrou ao seu aluno que ele era capaz, isso deu a ele um enorme impulso, capaz de salvar até mesmo seu judaísmo. (História Real).

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Nesta semana lemos a Parashá Vaishlach, cujo tema principal é o reencontro de Yaacov com o seu irmão Essav. Yaacov estava preocupado, pois o reencontro poderia terminar em uma sangrenta batalha de vida ou morte, porém tudo terminou bem, com os dois irmãos se abraçando e chorando.

Já no final da Parashá a Torá descreve a genealogia de Essav, algo aparentemente sem importância. Mas olhando com atenção, percebemos um nome que nos chama a atenção: "E Timná era uma concubina de Elifaz, filho de Essav, e ela deu a luz a Amalek" (Bereshit 36:12). Amalek, o neto de Essav, foi quem deu origem ao terrível povo de Amalek, a nação que se empenhou diversas vezes na história em tentar exterminar o povo judeu. Mas por que justamente desta mulher chamada Timná saiu Amalek e toda a sua descendência de pessoas cruéis?

Explica o Talmud (Sanhedrin 99b) que Timná era uma princesa, mas ela estava disposta a largar os luxos do palácio para se converter ao judaísmo. Ela procurou Avraham, Ytzchak e Yaacov, nossos patriarcas, mas eles não a aceitaram. Então ela decidiu se tornar concubina de Elifaz, pensando: "É melhor eu ser uma escrava neste povo do que uma mulher poderosa em outra nação". Em outras palavras, a vontade de Timná de entrar no povo judeu era tão grande que ela tentou inclusive pela "porta dos fundos", se tornando parte da família de Essav. A consequência foi que o povo de Amalek, que causou tanto sofrimento ao povo judeu, saiu justamente dela. O Talmud conclui que Amalek nasceu de Timná após ela ter se tornado a concubina de Elifaz justamente pelos nossos patriarcas terem afastado ela. De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), o correto teria sido eles aceitarem Timná e permitirem a sua conversão.

Mas este ensinamento do Talmud desperta um enorme questionamento. Sabemos que os nossos patriarcas dedicaram suas vidas para aproximar pessoas de D'us. Portanto, se eles decidiram não aceitar Timná é porque tinham suficientes razões para isso. Eles sabiam que havia algo muito ruim na natureza dela, e por isso se recusaram a permitir sua entrada no povo judeu. Então, se eles tinham motivos que justificavam a decisão deles, por que foram punidos de forma tão dura, com sofrimentos para todas as gerações?

Explica o Rav Chaim Shmulevitz (Lituânia, 1902 - Israel, 1979) que deste episódio de Timná aprendemos que não importa o quanto uma pessoa possa ser ruim, ela não deve ser completamente rejeitada. Isto quer dizer que, enquanto houver ainda alguma esperança da pessoa melhorar, é proibido afastá-la, pois isto terminaria com suas chances de voltar ao caminho correto. Portanto, se os patriarcas e seus descendentes foram castigados, fica óbvio que apesar das más características de Timná, certamente ela tinha dentro de si algum potencial oculto que justificaria permiti-la entrar no povo judeu.

A mesma lição aprendemos em relação à Lót, o sobrinho de Avraham, uma pessoa instável e rebelde. Após uma briga entre os pastores de Avraham e os pastores de Lót, Avraham percebeu que seu relacionamento com Lót estava começando a se deteriorar e poderia se tornar insustentável, e por isso decidiu que era hora deles se separarem. Porém, o que parecia uma decisão correta e racional de Avraham foi duramente criticada pela Torá. Diz o Midrash (parte da Torá Oral) que houve uma "raiva Divina" contra Avraham Avinu no dia em que ele se separou de Lót, como se D'us estivesse questionando: "Avraham se conecta com todas as pessoas, mas justamente com seu próprio sobrinho ele não se conecta?". Este Midrash está nos ensinando algo incrível, pois Avraham havia feito esforços sobre-humanos para estar perto de Lót e tentar influenciá-lo para o bem. Rashi explica que Avraham esteve disposto a abrir mão do dom da profecia por muito tempo, pois D'us não falou com ele durante todo o tempo em que ele estava perto de Lót, e apesar disso Avraham só se afastou de Lót quando sentiu que o relacionamento estava se estremecendo. Mesmo assim a Torá critica Avraham por ter mandado Lót embora, pois apesar de todas as más qualidades que Lót tinha, ainda havia alguma esperança de trazê-lo de volta aos caminhos corretos.

O Rav Avraham Yeshaya Karelitz (Bielorússia, 1878 - Israel, 1953), mais conhecido como Chazon Ish, explica que existe um limite até quando devemos manter perto de nós uma pessoa com problemas espirituais. Segundo ele, uma pessoa que precisa de cuidados espirituais se assemelha a um doente no hospital. Por um lado, afastá-la é comparado a mandar um doente embora do hospital no meio do tratamento, colocando sua vida em risco. Por outro lado, se este doente tiver uma doença extremamente contagiosa e ameaçar a saúde dos outros em volta, então o afastamento é justificável. É por isso que quando Sara pediu para que Avraham expulsasse seu filho Ishmael de casa, ela teve o apoio total de D'us, pois a má índole de Ishmael certamente influenciaria de forma negativa o outro filho de Avraham, Yitzchak, colocando em risco todo o futuro do povo judeu. Mas enquanto houver esperança e isto não prejudicar ninguém em volta, temos que fazer de tudo para não afastar nenhuma pessoa, por pior que ela seja.

Então qual é a maneira correta de lidar com este problema? A verdade é que incomoda estar perto de uma pessoa que não está bem ou que está caindo espiritualmente, e por isso muitas vezes nos afastamos, principalmente por não sabermos como ajudar. O que podemos fazer na prática? Explica o Rav Chaim ben Atar (Marrocos, 1696 - Israel, 1743), mais conhecido como Or HaChaim HaKadosh, que há um grande ensinamento sobre este assunto na forma como Ytzchak lidou com seu filho Essav "HaRashá" (o malvado). Apesar de Ytzchak estar totalmente ciente de que Essav estava em um nível espiritual muito baixo e Yaacov estava em um nível espiritual muito alto, ainda assim ele preferiu dar a Brachá (benção) de primogenitura para Essav. Por que? Pois como qualquer outro pai, lhe doía muito ver seu filho em um caminho de maldades e transgressões. Ele acreditava que, ao receber a Brachá, Essav começaria a reagir à sua queda espiritual e melhoraria seu comportamento. E, de acordo com o Or HaChaim, pode ser que isto realmente teria funcionado.

Mas como a Brachá teria ajudado Essav a corrigir seus caminhos? Segundo o Rav Yehonasan Guefen, um dos principais motivos das quedas espirituais é a falta de autoestima, que pode levar a pessoa à depressão e às suas consequências negativas. Ao dar a Brachá para Essav, Ytzchak estaria encorajando-o e mostrando que acreditava no seu potencial como parte da cadeia de transmissão do legado dos patriarcas. Esta demonstração de confiança poderia ser o catalisador que causaria as mudanças necessárias na vida de Essav. Portanto, da atitude de Ytzchak aprendemos que encorajar e mostrar que acreditamos em uma pessoa, apesar dela ser rebelde, desobediente e teimosa, é uma poderosa ferramenta para fazer com que a pessoa acredite nela mesma e consiga encontrar dentro de si a força necessária para mudar seu caminho.

Aprendemos de Timná que rejeitar uma pessoa como se fosse uma causa perdida é algo muito grave. Se a Torá nos ensina que até mesmo Timná, a pessoa que produziu Amalek, merecia uma chance para conseguir se reerguer, muito maior é a nossa responsabilidade com as pessoas que estão caindo espiritualmente e que precisam da nossa ajuda para se reerguerem. E uma das melhores maneiras de ajudar alguém a mudar e melhorar é mostrando que confiamos nele.

Este princípio não se aplica apenas em relação às pessoas que estão caindo espiritualmente, mas pode também ser aplicado no nosso comportamento geral em relação aos filhos, alunos e pessoas que estão à nossa volta. Ensina o Talmud (Sotá 47a): "Sempre a mão esquerda deve afastar e a mão direita deve aproximar". A mão direita é a mão forte, enquanto a mão esquerda é a mão fraca. Uma das explicações desta afirmação do Talmud é que sempre devemos dar prioridade ao reforço positivo e aos elogios, ao invés de fazer críticas. Mostrar o que cada um tem de bom é muito mais efetivo para ajudar no crescimento das pessoas do que ficar o tempo todo lembrando suas falhas e defeitos. Da mesma forma que gostamos de procurar somente nossas próprias qualidades e ignorar nossos defeitos, assim devemos nos comportar com os outros. A verdadeira "ressurreição dos mortos" está apenas nas mãos de D'us, mas Ele nos deu o dom de, através de palavras e atitudes de incentivo, darmos vida para outras pessoas.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

BONS MODOS VÊM ANTES DA TORÁ – PARASHÁ VAIETZE 5775

"O Rav Isroel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 - Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, aprendeu muitas coisas na vida observando cuidadosamente cada atitude de seu rabino, o Rav Nachum Kaplan (Lituânia, 1812 - 1879), carinhosamente conhecido como Reb Nechumke, pois sabia que todos os atos do seu rabino eram muito ponderados e tinham alguma motivação profunda.

Um dos exemplos ocorreu em um dia de Chánuka, quando a casa do Reb Nechumke estava cheia de parentes e alunos que queriam participar com ele do acendimento das velas. A Chanukiá polida e brilhante já estava no lugar apropriado, os copinhos já estavam cheios de azeite cristalino e puro, e os pavios de algodão já estavam preparados para o acendimento. Quando chegou o horário de acendimento, ao contrário do que todos esperavam, o Rav Nechumke permaneceu sentado ao lado da Chanukiá, estudando tranquilamente. Nas janelas das casas vizinhas já era possível ver várias velas de Chánuka sendo acesas, mas o Rav Nechumke não se movia do lugar para acender sua Chanukiá. Passou uma hora, e depois mais uma hora, mas o Reb Nechumke continuava sentado ao lado da Chanukiá e não se levantava para acendê-la. Lá fora já estava escuro e ninguém entendia o motivo do atraso, estavam todos perplexos. As crianças menores já estavam sem paciência, ansiosas pelo acendimento.

Após mais uma hora ter passado, todos escutaram uma leve batida na porta. A porta se abriu lentamente e a esposa do Rav Nechumke entrou em casa. Quando o Rav Nechumke viu que sua esposa havia chegado, abriu um enorme sorriso e imediatamente foi acender a Chanukiá. Depois do acendimento, os alunos questionaram o motivo daquela demora:

- Rav, de acordo com uma das opiniões dos nossos sábios, somente é possível acender as velas de Chánuka até o por do sol. Sabemos o quanto você é exigente e tenta cumprir as Mitzvót levando em consideração mesmo as opiniões mais rigorosas. Então por que você esperou pela sua esposa, se de acordo com a Halachá (Lei Judaica) ela não tinha obrigação de estar presente no momento do acendimento das velas?

- Vocês fizeram uma boa pergunta - começou a dizer o Rav Nechumke, olhando para os alunos com carinho - mas o que eu fiz está baseado em um ensinamento dos nossos sábios. Explica o Talmud (Torá Oral) que se um homem é tão pobre que não tem condições de comprar as velas de Shabat e as velas de Chánuka, ele deve dar prioridade para as velas de Shabat, pois elas envolvem o conceito de "Shalom Bait" (Harmonia familiar). Eu sabia que se eu não esperasse minha esposa e acendesse a Chanukiá sem ela, certamente eu causaria um sofrimento nela e com isso poderia prejudicar meu Shalom Bait. Se de acordo com o ensinamento dos nossos sábios as velas de Shabat têm prioridade sobre as velas de Chánuka por causa do Shalom Bait, então eu decidi que poderia me apoiar nas opiniões mais lenientes, que permitem o acendimento das velas de Chánuka depois do pôr do sol, para assim garantir que eu não causaria nenhuma mágoa em minha esposa."

Devemos cumprir com alegria e com seriedade todas as Mitzvót, mas sem nunca esquecer a nossa obrigação de "Derech Eretz" (se comportar de maneira decente e respeitosa).
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Na Parashá desta semana, Vaietze, Yaacov foge da fúria de seu irmão Essav, que queria matá-lo, e parte em direção à casa de seu tio Lavan, onde também poderia procurar por uma esposa. Porém, antes disso, Yaacov decidiu passar 14 anos estudando na Yeshivá (Centro de estudos) de Shem e Ever, descendentes de Noach (Noé), para desenvolver sua espiritualidade e se elevar. Quando finalmente ele se dirigiu à casa de seu tio Lavan, no caminho passou por uma incrível experiência transcendental.

Quando Yaacov chegou ao lugar onde futuramente seria construído o Beit Hamikdash, anoiteceu de repente. Sem condições de continuar a viagem, ele colocou algumas pedras para apoiar sua cabeça, deitou e dormiu. Yaacov então teve um sonho profético, no qual ele viu uma escada apoiada na terra e cujo topo chegava até o céu, e nela havia anjos subindo e descendo. Uma incrível visão celestial, que poucas pessoas na história meritaram. Yaacov teve a oportunidade de atingir níveis de sabedoria ilimitados, e muitos segredos da criação foram mostrados para ele. Nesta visão profética houve também uma revelação de D'us, na qual Ele fez uma promessa eterna a Yaacov e seus descendentes.

Além disso, a Torá ressalta que todo o evento foi diretamente direcionado por D'us, e muitas coisas acima das leis da natureza ocorreram para que Yaacov tivesse esta visão profética. Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que há vários milagres indicados no seguinte versículo: "Ele (Yaacov) encontrou o lugar e passou a noite lá, pois o sol se pôs. E ele pegou das pedras do lugar que ele tinha colocado em volta de sua cabeça, e deitou naquele lugar" (Bereshit 28:11). "Pois o sol se pôs" significa que D'us fez com que milagrosamente o pôr do sol acontecesse antes do horário, para forçar Yaacov a dormir lá. "E encontrou o lugar" significa que Yaacov "saltou" de forma milagrosa até aquele lugar sagrado, onde D'us queria se revelar para ele. "E ele pegou as pedras do lugar" significa que as pedras se juntaram e se tornaram uma só pedra grande, para que Yaacov pudesse apoiar sua cabeça e dormir.

Se nós tivéssemos o mérito de receber durante um sonho uma visão profética tão elevada como a de Yaacov, não acordaríamos muito felizes por esta experiência transcendental e esta conexão espiritual tão incrível? Não estaríamos contentes por termos sido escolhidos para tal revelação, com a ocorrência de tantos milagres que a antecederam? Mas a Torá descreve que esta não foi a reação de Yaacov: "E Yaacov acordou do seu sono e disse: 'Então existe D'us neste lugar, e eu não sabia'" (Bereshit 28:16). De acordo com Rashi, é como se Yaacov estivesse dizendo: "Se eu soubesse, não teria dormido neste lugar tão sagrado". Ao invés de acordar alegre, Yaacov acordou arrependido de ter dormido lá.

A reação de Yaacov é difícil de ser entendida. Nossos sábios ensinam que não foi nem mesmo um sono pesado, foi apenas uma soneca. E foi justamente por causa desta soneca que a alma de Yaacov se conectou com D'us e alcançou incríveis visões proféticas. Além disso, estava óbvio pelos milagres que aconteceram que foi D'us que "forçou" Yaacov a dormir naquele lugar sagrado. Então por que ele ficou tão temeroso de ter dormido lá? Se não tivesse dormido, ele teria perdido a oportunidade daquela visão profética, então por que se arrependeu?

Explica o Rav Nosson Tzvi Finkel (Lituânia, 1849 - Israel, 1927), mais conhecido como Alter MiSlobodka, que daqui aprendemos o quanto nossos antepassados eram rigorosos com a característica de "Derech Eretz". Derech Eretz é a forma da pessoa se comportar, em todos os seus atos, com educação, respeito, atenção e decência. Yaacov entendeu que, mesmo que foi apenas uma soneca, era um sinal de desrespeito com a santidade do lugar. Isto significa que Yaacov deu mais importância ao Derech Eretz do que à Revelação Divina e todos os segredos ocultos que foram mostrados a ele, e estaria disposto a abrir mão de todo aquele crescimento espiritual apenas para ter se portado com mais Derech Eretz.

Este comportamento de Yaacov ilustra muito bem um importante conceito ensinado pelos nossos sábios: "Derech Eretz Kadmá LaTorá" (o Derech Eretz vem antes da Torá). O que significa esta expressão? Explica o Rabeinu Yona (Espanha, século 12) que a pessoa precisa continuamente melhorar seus traços de caráter, pois somente assim a Torá que ela estudar ficará para sempre com ela. Mas se a pessoa estudar sem ter refinado seu caráter, no final acabará perdendo seu estudo. O Derech Eretz precisa vir antes da Torá pois é parte das fundações do ser humano, que permitirá que tudo construído em sua vida se mantenha em pé.

Se Yaacov estava disposto a abrir mão de uma grande Revelação Divina por causa do Derech Eretz, muito maior é a nossa obrigação de termos cuidado com nosso comportamento nos atos cotidianos, evitando causar qualquer constrangimento ou sofrimento aos outros. Muitas vezes, por nos descuidarmos, acabamos ofendendo e até mesmo humilhando outras pessoas. Por isso, antes de almejar nos tornarmos pessoas espiritualmente elevadas, precisamos almejar no tornarmos pessoas educadas e corretas. Assim, tudo o que construirmos espiritualmente se manterá para sempre.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

sábado, 22 de novembro de 2014

SEJA VOCÊ MESMO - PARASHÁ TOLDOT 5775

"O Rav Yerucham Leibovitz (Bielorússia, 1873 - 1936), o grande Mashguiach (líder espiritual) da Yeshivá de Mir, certa vez foi visitar o Rav Nosson Tzvi Finkel (Lituânia, 1849 - Israel, 1927), mais conhecido como Alter MiSlobodka. No primeiro dia da visita os dois se fecharam em uma sala, e era possível escutar do lado de fora que o Alter estava dando uma enorme bronca no Rav Yerucham. A mesma cena se repetiu nos dias que se seguiram, por quase uma semana.

Mas afinal, por que o Alter estava tão incomodado com o Rav Yerucham, uma pessoa tão reta e pura? Pois Slobodka era uma Yeshivá (Centro de estudos de Torá) que reforçava muito a ideia de que seus alunos não deveriam ser forçados a se "moldarem" de uma maneira específica. O Alter MiSlobodka sempre se esforçou para ressaltar o que cada aluno tinha de único e especial. Ele tinha o cuidado de não trazer para a Yeshivá professores muito carismáticos, pois tinha receio de que alguém carismático acabaria influenciando de maneira muito forte os alunos, fazendo-os seguir exatamente seu estilo, ao invés de investirem em suas próprias qualidades.

Foi por isso que o Alter MiSlobodka estava tão bravo. Ele sabia que o Rav Yerucham era tão carismático que, mesmo sem intenção, estava transformando seus alunos da Yeshivá de Mir em seus "seguidores", ao invés de incentivar que cada um deles desenvolvesse sua expressão única e individual.

Quais foram os benefícios de Slobodka ter encorajado seus alunos a expressarem sua individualidade, ao invés de tentar moldá-los de maneira padrão? De todas as Yeshivót da Europa, Slobodka foi a que produziu a maior quantidade de gênios de Torá. Nomes como Rav Aharon Kotler, Rav Yaacov Kamenetzky e Rav Yitzchak Hutner são alguns exemplos de rabino que saíram de Slobodka e iluminaram o mundo com sua Torá. E o mais impressionante é que estes gigantes eram muito diferentes uns dos outros em suas características. Ao reforçar o que havia de único em cada aluno, o Alter MiSlobodka conseguiu tirar de cada um deles o que eles tinham de melhor.

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Nesta semana lemos a Parashá Toldot, que descreve um pouco da vida do nosso patriarca Yitzchak. Mas diferente de Avraham, que se destacou pelo Chessed e pela Emuná (fé) inabalável, e de Yaacov, que se destacou pela incrível honestidade mesmo diante de grandes testes, Yitzchak aparentemente não se destacou em nada. Depois de quase ter sido sacrificado por seu pai, a Torá nos conta muito pouco sobre a vida dele. Qual é o ensinamento que podemos aprender da vida e dos atos de Yitzchak?

Se prestarmos atenção em alguns dos acontecimentos da vida de Yitzchak relatados na Parashá, perceberemos que seus passos sempre foram muito parecidos com os de seu pai, Avraham. Tanto Avraham quanto Yitzchak passaram por um período de fome na terra de Israel, e ambos se dirigiram ao Egito, com a única diferença que D'us não permitiu a Ytzchak sair da terra de Israel. Além disso, os dois viveram com o povo dos Plishtim e passaram pelo perigo de terem suas esposas raptadas por causa da beleza delas. Da mesma forma que Avraham precisou dizer que Sara era sua irmã para não ser assassinado, também Yitzchak teve que dizer que Rivka era sua irmã. E, finalmente, Yitzchak voltou aos poços que Avraham havia cavado, mas como eles haviam sido tapados pelos Plishtim, Yitzchak cavou-os novamente e deu a eles exatamente os mesmos nomes que seu pai originalmente havia dado. É impressionante perceber as semelhanças entre os caminhos de Avraham e de Yitzchak.

Explica o Rabeinu Bechaye (Espanha, 1255 - 1340) que esta semelhança não foi uma mera coincidência. Dos atos de Yitzchak nós aprendemos para as futuras gerações o conceito de "Massoret Avót" (transmissão dos antepassados), isto é, a obrigação de seguirmos nos caminhos e tradições dos nossos antepassados. Ytzchak não quis se desviar nem mesmo um centímetro dos caminhos trilhados por seu pai. Enquanto o papel de Avraham era ser o desbravador, definindo os precedentes e estabelecendo as "placas de orientação" para o povo judeu, o papel de Ytzchak era consolidar tudo aquilo que seu pai havia feito, seguindo de forma precisa seus passos.

Porém, há outro aspecto na vida de Yitzchak que aparentemente contradiz a ideia de seguir seu pai em todos os caminhos. Nossos sábios ensinam que Avraham e Ytzchak tinham personalidades muito diferentes. Enquanto Avraham representou a característica do Chessed (bondade), transbordando bondades para todas as criaturas, Ytzchak é definido pela característica de justiça e bravura. Isto significa que, em relação aos traços de caráter, Ytzchak não seguiu os caminhos de seu pai. Como entender esta contradição?

Este comportamento "contraditório" de Ytzchak é, na realidade, uma das maiores contribuições que ele deu ao povo judeu. Ytzchak estava nos ensinando que, por um lado, temos a obrigação de nos mantermos conectados às instruções que recebemos através da "Massóret Avót". Nenhum judeu pode criar seu próprio conjunto de valores e comportamentos, pois recebemos a transmissão de qual é a forma correta de viver nossa vida. Mas, por outro lado, Ytzchak nos ensinou que isto não significa que todos aqueles que querem estar conectados à linha de transmissão da Torá devem se comportar de maneira idêntica, sem manter sua individualidade, pois há diversas maneiras de desenvolver nossa "Avodat Hashem" (Serviço Divino). O Rav Israel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 - Polônia,1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, questiona o motivo pelo qual a Torá precisou nos relatar que a Árvore da Vida estava posicionada exatamente no centro do Gan Éden. Ele responde que é justamente para nos ensinar que a verdade é representada por um único ponto central, mas que existem numerosos pontos em volta que são equidistantes do centro. Assim também há diversas abordagens do judaísmo, que enfatizam diferentes formas de servir a D'us e diferentes traços de caráter. Apesar de serem diferentes, enquanto elas se encontram dentro dos limites da "Massóret Avót", todas têm a mesma validade aos olhos de D'us. Isto nos ensina a não olharmos com superioridade para outro judeu por ele ser Chassid, Ashkenazi ou Sefaradi, achando que somente nós estamos fazendo o que é correto, pois cada uma destas abordagens ressalta uma maneira diferente de se conectar a D'us, sendo que uma não é melhor do que a outra.

Este conceito pode ser aplicado em outras áreas da nossa vida, como no desenvolvimento da nossa própria personalidade. Há a tendência em muitas sociedades de que certos traços de caráter são mais louváveis do que outros. Por exemplo, ser extrovertido e confiante normalmente é visto como algo positivo, enquanto ser envergonhado e retraído é normalmente visto de maneira negativa. Pais extrovertidos com um filho introvertido têm a tendência de achar que a natureza quieta de seu filho é uma falha de caráter, e por isso o pressionam para que mude. Porém, o mais provável é que a única coisa que estes pais conseguirão será fazê-lo se sentir uma pessoa inadequada. É trabalho dos pais entender que seu filho tem características diferentes das suas, aceitando-o como ele é e aprendendo a desenvolver seus pontos fortes. Da mesma maneira, há crianças que têm muita dificuldade de se sentar horas para estudar e manter o foco. Se os pais não entendem a natureza do filho e tentam pressioná-lo a estudar sem parar, é muito provável que esta criança se rebelará ao crescer.

Pode parecer algo hipotético, mas o Rav Shimshon Raphael Hirsh (Alemanha, 1808 - 1888) explica que foi exatamente isto o que aconteceu com Essav. Ytzchak, com a melhor das intenções, quis educar seus dois filhos, Yaacov e Essav, da mesma maneira. Eles foram ensinados desde cedo que deveriam dedicar horas e horas diárias aos estudos. Porém, Yitzchak não levou em consideração que Essav tinha uma natureza completamente diferente de Yaacov. Enquanto Yaacov era uma criança tranquila, Essav era uma criança com muita energia, e toda esta energia foi reprimida durante sua infância. Quando Essav cresceu, ele alegremente abandonou seus estudos e se afundou em uma vida de transgressões. Daqui aprendemos o quanto devemos ser sensíveis às diferenças de natureza dos nossos filhos.

Há algo no começo da Parashá que ressalta a importância da nossa individualidade. Como Rivka não conseguia ter filhos, ela e Ytzchak rezaram, mas a Torá ressalta que a Tefilá de Ytzchak foi escutada. O Talmud (Yebamot 64a) explica que não se compara a força da Tefilá de um Tzadik filho de um Tzadik com a Tefilá de um Tzadik filho de um Rashá (malvado). Ytzchak era filho de Avraham, um Tzadik que mudou a história da humanidade, enquanto Rivka era filha de Betuel, um grande Rashá. Mas não deveria ser justamente o contrário? Ytzchak cresceu na casa de Avraham e desde cedo foi educado por seu pai a andar nos caminhos corretos. Rivka, ao contrário, cresceu no meio de Reshaim, pessoas enganadoras e desonestas, e apesar disso conseguiu superar as dificuldades e se tornar uma grande Tzadiká. Então por que ela não tinha mais méritos do que Ytzchak? Explicam os nossos sábios que Ytzchak tinha um desafio ainda maior do que o de Rivka: o de não se tornar uma mera cópia idêntica de seu pai. Avraham foi um dos maiores modelos que alguém poderia ter na vida, e o natural seria Ytzchak apenas copiar seu pai em todos os seus atos e características. Mas Ytzchak não se contentou com isso, e teve muitos méritos por ter criado seu próprio caminho de Serviço a D'us.

Esta foi a grande contribuição de Ytzchak: nos ensinar que, apesar de ser necessário estarmos conectados à "Massóret Avót", sendo uma grande proibição mudar qualquer aspecto da Torá, temos a liberdade de sermos nós mesmos, de utilizarmos nossas aptidões naturais e forças para nos conectarmos ao nosso lado espiritual. Não temos que nos anular e nos forçar a sermos o que não somos. Assim, desenvolvendo nossas habilidades e nossos pontos fortes, certamente teremos uma chance muito maior de vivermos uma vida muito mais feliz e com sucesso.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 25:19-28:9, Ml. 1:1-2:7
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

FALANDO COM CUIDADO - PARASHÁ CHAIEI SARA 5775

"Rodrigo contratou Fernando, um experiente e renomado carpinteiro, para reformar alguns móveis de sua casa. Mas o dia de Fernando não começou nada bem. Ele chegou atrasado, com as mãos sujas de graxa, pois o pneu do seu caminhão havia furado. E o resto do dia também não foi fácil. Sua furadeira queimou, a serra quebrou, ele fez um corte na mão e, na hora de ir embora, seu caminhão não funcionou. Rodrigo, com dó, ofereceu uma carona. Sem alternativa, Fernando aceitou.

Durante o caminho, Fernando estava com o rosto tenso. Ia em silêncio, olhando para baixo, sem querer muita conversa. Rodrigo respeitou e também não tentou puxar papo. Quando chegaram, Fernando convidou-o para conhecer sua casa e sua família. Rodrigo estava com pressa, mas ficou sem jeito de não aceitar. Não deixou de notar que Fernando, antes de entrar em casa, apoiou as duas mãos sobre uma árvore, ficando assim por alguns instantes, e somente depois entrou em casa. E um grande milagre aconteceu, pois Fernando transformou-se em outra pessoa. O rosto tenso foi substituído por um enorme sorriso e o silêncio virou gargalhadas enquanto ele abraçava os filhinhos e a esposa.

No momento de ir embora, Fernando agradeceu muito pela carona e acompanhou Rodrigo até o carro. Ao passarem pela árvore, Rodrigo não aguentou a curiosidade e perguntou sobre a estranha atitude de Fernando e a mudança repentina de comportamento. Fernando explicou:

- Todos nós temos dificuldades no nosso dia, e quando voltamos para casa acabamos descontando em nossas esposas e filhos todas as nossas frustrações. Mas eles não merecem escutar grosserias, pois eles não têm nada a ver com as dificuldades do nosso dia. Então eu decidi que, todas as vezes que eu chegasse em casa, deixaria todos os meus problemas naquela árvore que fica ao lado da entrada, e quando eu saísse de casa de manhã, eu pegaria os problemas de volta.

- Que interessante - falou Rodrigo, surpreso com a atitude positiva do marceneiro - Mas funciona mesmo?

- Melhor do que eu esperava - respondeu Fernando, abrindo um sorriso - Pois eu deixo os problemas na árvore de noite, mas quando eu volto para pegá-los no dia seguinte, eles não são nem metade do que eu me lembrava ter deixado..."

Não é algo fácil, mas precisamos desenvolver a capacidade de, mesmo nas situações mais difíceis do nosso cotidiano, manter o autocontrole e não "descontar" nos outros nossos problemas e dificuldades.  
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Nesta semana lemos a Parashá Chaiei Sara, que descreve a busca de uma esposa para o nosso patriarca Ytzchak. Avraham havia quase sacrificado Ytzchak, chegando a colocá-lo sobre um altar a pedido de D'us, mas foi impedido por um anjo na última hora. Avraham entendeu que se Yitzchak tivesse realmente sido sacrificado, ele teria morrido sem deixar descendentes. Portanto, ele viu que era hora de Ytzchak se casar e ter uma família, e confiou a Eliezer, seu fiel ajudante, a importante missão de voltar para sua terra natal e procurar entre seus parentes uma esposa para Ytzchak.

Eliezer não queria procurar uma esposa qualquer para Ytzchak, e sim uma moça que tivesse bons traços de caráter. Ele fez uma longa viagem até a cidade natal de Avraham e, chegando lá, foi direto para um poço de água, no fim da tarde, justamente na hora em que as mulheres costumavam ir para lá buscar água. Eliezer sabia que lá poderia testar a bondade das moças, pedindo que elas lhe servissem água e também dessem água aos seus camelos. A Providência Divina fez com que a primeira moça que apareceu foi Rivka, que era parente de Avraham. Após ela ter enchido seu jarro, Eliezer se aproximou e pediu água, como está escrito: "Por favor, me deixe beber um pouco da água do seu jarro" (Bereshit 24:17).

Deste versículo surge uma pergunta curiosa: Eliezer tinha acabado de atravessar um enorme deserto para buscar uma esposa para Ytzchak. Certamente ele devia estar com muita sede, e com as altas temperaturas do deserto era até mesmo um risco de vida caso ele não tomasse água. Então por que ele pediu para Rivka apenas um pouco de água, ao invés de pedir muita água?

Explica o Rav Ytzchak Zilberstain que o ser humano não é testado por seus atos grandes, e sim pelos seus pequenos atos cotidianos. A forma como ele fala com as outras pessoas e como ele se comporta nas pequenas atitudes mostram quem é ele de verdade. Para definir o nível espiritual de uma pessoa, é necessário observar como ela se comporta no seu dia-a-dia, nas coisas mais comuns e simples que ela faz.

Há um interessante ensinamento do mais sábio de todos os homens, Shlomo Hamelech (Rei Salomão), que nos ajuda a entender este conceito: "O Tzadik (justo) come para se saciar, mas o estômago do Rashá (malvado) está sempre insatisfeito" (Mishlei 13:25). O entendimento mais simples do versículo é que o Tzadik é aquele que come apenas o que é necessário para se sentir saciado, e fica satisfeito mesmo com pouco, enquanto o Rashá é aquele que come por gula, em excesso, para se empanturrar, e por isso sempre sente que ainda lhe falta algo. Porém, há um Midrash (parte da Torá Oral) que aprofunda o entendimento do versículo e afirma que "Tzadik" se refere a Eliezer, justamente por ter pedido para Rivka apenas um pouquinho de água, não de forma rude e descontrolada. Já "Rashá" se refere a Essav, que pediu para seu irmão Yaacov comida de forma grosseira, como está escrito: "Verta na minha boca desta coisa vermelha vermelha, pois eu estou exausto" (Bereshit 25:30).

O ensinamento deste Midrash é incrível. Eliezer fazia muitos atos positivos e construtivos, enquanto Essav fazia muitos atos negativos e destrutivos. Apesar disso, quando o Midrash quis dizer que "Tzadik" e "Rashá" se referem a Eliezer e Essav, traz como prova os versículos que apenas mencionam a forma como cada um deles pediu comida ou bebida em momentos de dificuldade. Isto demonstra que a forma como nos comportamos nos pequenos desafios do cotidiano é o que define nosso status espiritual.

Mas surge um grande questionamento quando refletimos sobre a definição de Essav como um "Rashá" por ter pedido para que seu irmão vertesse comida em sua boca. Antes de tudo, precisamos entender melhor em que contexto isto aconteceu. O versículo ressalta que Essav estava exausto, e nossos sábios explicam que naquele dia Essav havia saído para caçar algum animal para servir ao seu pai. Porém, no meio do caminho, ele se deparou com Nimrod, o governante da época, e os dois tiveram um desentendimento. Apesar de Nimrod ser considerado pela Torá um "Gibor" (valente e destemido), Essav se levantou contra ele e o assassinou. Além disso, nossos sábios dizem que Essav também cometeu naquele dia outras graves transgressões. Por causa de todo o esforço e energia gastos nestas transgressões, Essav estava extremamente cansado, a ponto de quase desmaiar, correndo até mesmo risco de vida caso não comesse algo logo. Foi por isso que ele pediu desesperadamente para que Yaacov despejasse a comida em sua boca. Essav falou de maneira grosseira justamente por seu desespero e pelo cansaço que dominava seu corpo. A prova disso é que ele já nem refletia mais sobre as palavras que saíam de sua boca, repetindo a palavra "vermelha" duas vezes, sem nenhum sentido.

Sabemos que em situações de "Pikuach Nefesh" (quando há algum risco de vida envolvido), a vida está acima das Mitzvót da Torá (com exceção de idolatria, relações ilícitas e assassinato). Isto quer dizer que em qualquer situação onde há perigo de vida, a pessoa deve transgredir as Mitzvót para se salvar ou salvar a vida de outra pessoa. O Talmud (Sanhedrin 74a) aprende isso do versículo que diz "E observem os Meus decretos e as Minhas leis, que o homem deve fazer e viver por elas, Eu sou D'us" (Vayikrá 18:5). O versículo ressalta "viver por elas", e não morrer por elas. Por exemplo, temos a proibição de fazer certas atividades construtivas no Shabat, mas alguém que está com risco de vida deve ir imediatamente ao hospital para receber o tratamento necessário, mesmo que para isso necessite desrespeitar o Shabat. Portanto, se Essav estava em uma situação de Pikuach Nefesh, por que a Torá está cobrando dele um comportamento exemplar? Por que ele é considerado "Rashá" por ter falado com uma linguagem grosseira neste momento?

Explica o Rav Ytzchak Zilberstain que a Torá está nos ensinando algo impressionante. Apesar de o "Pikuach Nefesh" prevalecer até mesmo sobre a grande maioria das Mitzvót da Torá, ele não prevalece sobre a obrigação de falarmos as coisas de forma delicada. Por que o Midrash comparou Essav justamente com Eliezer? E com tantos bons atos que Eliezer fez na vida, por que justamente trazer o versículo do momento em que ele se encontrou com Rivka? Pois quando Eliezer viajou para procurar uma esposa para Ytzchak, ele também estava exausto por causa da viagem. Além disso, ele devia estar sedento e certamente muito pressionado pela responsabilidade de sua importante missão. Mas mesmo assim a Torá fez questão de registrar o quanto ele foi rigoroso consigo mesmo, pedindo água de uma maneira educada e comedida, diferente de Essav, que em um momento de dificuldade pediu comida de forma grosseira.

Fica para nós um ensinamento muito importante. Sempre focamos nos grandes atos, nos grandes testes que podem surgir pelo caminho. Queremos ser espiritualmente grandes, e achamos que isto somente ocorrerá quando vencermos testes difíceis como o sacrifício de Yitzchak. Mas a Torá nos ensinou, através da simples conduta de Eliezer em um pequeno detalhe do seu cotidiano, que não é nos grandes testes que podemos mostrar para D'us quem somos, é justamente nas pequenas atitudes, nos pequenos detalhes, que podemos fazer a diferença. Apesar de não serem tão difíceis quanto o teste do sacrifício de Ytzchak, os pequenos testes do cotidiano podem nos dar o rótulo de "Tzadik".

Isto mostra a importância aos olhos de D'us do nosso "Derech Eretz", isto é, a forma como falamos e nos comportamos com as outras pessoas. Mesmo nos momentos difíceis, temos que trabalhar muito nosso autocontrole. Pois morrer para santificar o nome de D'us, como Ytzchak estava disposto a fazer, é sem dúvida um ato heroico. Mas viver e santificar o nome de D'us através dos pequenos atos do cotidiano é mais heroico ainda.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
 
Gn.23:1-25:18, 1Rs.1:1-31

sábado, 8 de novembro de 2014

ESFRIANDO A ÁGUA QUENTE - PARASHÁ VAIERÁ 5775


"Mesmo durante o rigoroso inverno europeu, o Rav Isroel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 - Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, ia sempre à Mikve da cidade de Radin, onde morava, na véspera do Shabat. Certa vez ele encontrou a pessoa que fazia a manutenção da Mikve e perguntou se a água já havia sido aquecida. O homem respondeu que sim, pois já havia vertido quase metade do conteúdo da caldeira de água quente na Mikve. O Chafetz Chaim então se preparou para mergulhar, mas quando encostou o pé na água, percebeu que estava muito gelada.

O Chafetz Chaim não entendeu o que estava acontecendo, pois certamente o homem não havia mentido para ele, mas a água estava gelada como se nenhuma quantidade de água quente tivesse sido acrescentada. Quando checou a temperatura da água da caldeira, entendeu qual era o problema: a água estava morna, quase fria. O problema não estava na Mikve, estava na caldeira, que não estava funcionando direito e não conseguia esquentar a água. Por isso, mesmo que a água da caldeira havia sido realmente jogada na Mikve, não havia contribuído para esquentá-la.

Durante o Shabat, o Chafetz Chaim refletiu sobre o ocorrido e aprendeu uma grande lição. Mesmo a água fervendo de uma caldeira consegue apenas deixar a água da Mikve morna. E se a própria água da caldeira estiver morna, ela não contribui para esquentar a Mikve, ao contrário, esta água que acaba se esfriando".

O Chafetz Chaim utilizava este conceito para ensinar o perigo de entrarmos em contato com pessoas em um nível espiritual mais baixo, pois corremos o grande risco de acabarmos sendo "esfriados".
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Na Parashá desta semana, Vaierá, a Torá continua nos descrevendo os difíceis testes pelos quais Avraham Avinu passou durante sua vida. Um dos grandes testes foi ter que expulsar de casa seu próprio filho. Durante muitos anos Avraham não conseguia ter filhos. Sara, vendo que não conseguia dar filhos para Avraham, sugeriu que ele se casasse com sua escrava, Hagar, e que tivesse filhos com ela, pois assim poderia ao menos participar da educação desta criança. Avraham escutou o pedido de sua esposa e se casou com Hagar, tendo com ela um filho, Ishmael. Somente alguns anos depois D'us teve misericórdia de Sara e também deu a ela um filho, Itzchak.

Porém, certa vez Sara viu algo que não a agradou: "E viu Sara o filho que Hagar, a egípcia, havia dado à luz para Avraham, zombando" (Bereshit 21:9). Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que a linguagem "messachek" (zombando) também é utilizada em outros lugares da Torá para se referir à idolatria, relações ilícitas e assassinato. Isto quer dizer que Sara viu Ishmael fazendo atos graves, que demonstravam que ele havia se corrompido e se desviado completamente. Sara então exigiu que Avraham expulsasse de casa sua esposa Hagar e seu filho Ishmael, para que Ishmael não se tornasse uma má influência para Itzchak. A ideia de expulsar seu filho desagradou a Avraham, mas D'us apareceu para ele e confirmou que isto era o correto a se fazer. Apesar da dificuldade do teste, Avraham conseguiu dominar suas emoções e cumprir a vontade de D'us.

Mas deste acontecimento surge uma grande pergunta: Avraham não percebeu que seu filho Ishmael havia se desviado do caminho? Ele não sabia que a convivência colocava em risco a educação e o futuro de Itzchak, seu herdeiro espiritual? Então por que a ideia de expulsar Ishmael lhe desagradou?

Respondem os nossos sábios que Avraham tinha plena consciência dos maus atos de Ishmael e os riscos que seus comportamentos inadequados causariam na educação de Itzchak. Porém, Avraham acreditava que o contrário poderia acontecer, isto é, que o bom comportamento de Itzchak poderia ajudar a endireitar Ishmael. Sara também conhecia os dois lados, mas ponderou e chegou à conclusão de que era muito mais provável que Itzchak fosse mal influenciado do que Ishmael fosse bem influenciado, e por isso decidiu expulsá-lo. D'us concordou com a ponderação de Sara.

Dizem nossos sábios que "Maassê Avót, Siman Lebanim" (os atos dos nossos antepassados são um sinal para nós). Explica o Chafetz Chaim que deste episódio aprendemos uma importante lição de como nos relacionar com pessoas espiritualmente mais baixas, que se comportam de uma maneira inadequada. A Torá está nos ensinando que devemos nos afastar delas, pois esta convivência certamente nos fará mal. Muitas vezes pensamos que não seremos afetados pelos maus atos dos outros, achamos que somos fortes e não seremos influenciados por comportamentos inadequados. Mas a verdade é que tudo o que vemos à nossa volta nos influencia, para o bem ou para o mal. E a repetição constante de más influências pode nos transformar em pessoas completamente diferentes. O problema é que, quando estamos dentro da influência, acabamos não percebemos a nossa própria transformação.

Este ensinamento é ressaltado em outro episódio da Parashá, quando D'us decidiu destruir as cidades de Sdóm (Sodoma) e Amorá (Gomocha), cidades que atingiram limites absurdos de maldade. E assim está descrita a destruição: "D'us fez chover enxofre e fogo sobre Sdóm e Amorá... Ele virou estas cidades de cabeça para baixo" (Bereshit 19:24,25). O que significa que D'us virou as cidades de cabeça para baixo?

Ensinam nossos sábios: "Raban Shimon bem Gamliel disse: o mundo se sustenta por três coisas: a justiça, a verdade e a paz" (Pirkei Avót 1:18). Apesar de a justiça ser um dos pilares que sustentam o mundo inteiro, Sdóm e Amorá literalmente inverteram a justiça e os caminhos corretos. O Talmud (Sanhedrin 109a) nos ensina que eles legislaram leis injustas, que prejudicavam os bons e protegiam os malvados. Por exemplo, havia Em Sdóm uma grave proibição de receber convidados ou ajudar os pobres, e a violação destas leis era punida de forma severa. Pelo fato de eles terem literalmente invertido a justiça, medida por medida D'us fez com que suas cidades, que se encontravam no topo de uma enorme rocha, virassem de cabeça para baixo e fossem destruídas.

Porém, por que as pessoas de Sdom e Amorá eram tão ruins? De onde vinha tanta maldade? O Talmud (Sanhedrin 109 a) nos dá uma incrível explicação, dizendo que tudo começou com uma grande Brachá (benção) de D'us, quando Ele deu aos habitantes de Sdóm e Amorá uma terra extremamente fértil, cheia de ouro e safiras. Os habitantes não eram pessoas ruins, mas começaram a pensar em maneiras de fazer com que pessoas de fora não viessem para se aproveitar das riquezas de lá. Eles fizeram leis abomináveis e contrataram juízes malvados que julgariam de acordo com estas leis e castigariam de forma dura todo aquele que as transgredissem, somente para afastaram possíveis novos moradores que quisessem vir para extrair o que a terra tinha de bom.

Portanto, em um primeiro momento estas leis não eram motivadas pela maldade, e sim como uma forma de proteger suas riquezas. Mas o que era apenas algo externo, com o passar do tempo começou a influenciar para o mal toda a população de Sdóm e Amorá. As pessoas acabaram se tornado realmente malvadas e cruéis. Quando Lót, o sobrinho de Avraham, recebeu convidados em sua casa, a cidade inteira veio tirar satisfação, desde os mais jovens até os mais velhos. A população estava inflamada, querendo "justiça". Pessoas que eram corretas e bondosas haviam se tornado agentes do mal, prontas a destruir e cometer as piores crueldades imagináveis. Rashi ressalta que não havia na cidade inteira nem mesmo um único habitante que era justo e correto. Esta é a força das influências internas sobre o nosso comportamento.

De Sdóm e Amorá aprendemos o quanto o costume nos transforma em pessoas diferentes. Não podemos pensar que estamos imunes às influências externas, pois somos criaturas sociais e absorvemos muito do ambiente à nossa volta. Algo abominável, quando repetido muitas vezes, vai sendo internalizado e se transformando em natureza, a ponto de acabarmos intelectualmente defendendo tal ideia após algum tempo. Ninguém está imune de sofrer influências externas, e por isso devemos escolher bem quem são as pessoas à nossa volta e quais são os valores da sociedade na qual escolhemos viver, como ensinam nossos sábios: "Nitai Haarbeli disse: Se afaste de um mau vizinho e não se associe a um homem perverso" (Pirkei Avót 1:7). Foi por isso que D'us concordou com o pedido de Sara. Este era o correto a se fazer, pois certamente Itzchak, que era uma criança pura e correta, aprenderia com os maus atos de Ishmael e se desviaria do caminho. Ninguém está a salvo das más influências.

Precisamos tomar cuidado, pois o "mau vizinho" descrito pelos nossos sábios não são apenas pessoas de carne e osso, mas tudo o que permitimos que entre em nossas casas. Quando abrimos nosso lar às ideias "estranhas" ao judaísmo, acabamos nos acostumando mesmo com coisas que há pouco tempo achávamos abomináveis. Infelizmente vivemos em uma sociedade cujos valores são cada vez mais corrompidos, e se não tivermos uma constante referência do que é o correto, podemos facilmente cair. O perigo não é apenas o quanto as más influências afetam nossos filhos, mas também o quanto elas afetam a cada um de nós. Certamente os habitantes de Sdóm e Amorá achavam que eles estavam corretos. Eles caiam pouco a  pouco, mas não percebiam. Como a água morna jogada na piscina gelada, eles iam perdendo um pouco mais de "calor" a cada dia. Isto pode acontecer a cada um de nós, mas acontece em especial com aqueles que acham que estão acima de qualquer influência.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

sábado, 1 de novembro de 2014

TORCIDA CONTRA - PARASHÁ LECH LECHÁ 5775

"Certa vez organizaram uma corrida de sapinhos, cujo objetivo era atingir o alto de uma grande torre. Havia no local uma multidão assistindo, vibrando e torcendo pelos sapos. Quando começou a competição, todos perceberam que seria muito difícil alcançar o alto da torre, pois era uma enorme subida. Os torcedores, ao invés de incentivar, começaram a dizer em voz alta: "Que pena, acho que eles não vão conseguir". Infelizmente os sapinhos iam vendo o quanto era difícil chegar lá em cima e começavam a desistir, um por um.

Havia um grupo que ainda persistia e continuava subindo, tentando alcançar o topo. Mas a multidão continuava gritando: "Uau, é muito difícil. Que pena que eles não vão conseguir". E mesmo neste grupo de sapinhos mais fortes muitos começaram a desistir.

Porém, havia um sapinho que, apesar da "torcida contra", continuava firme em sua subida. Embora cansado, ele não desistia. Mesmo que todos gritavam "ele não vai conseguir", ele juntava forças e, quando parecia impossível, conseguia vencer mais uma etapa. Assim, aos poucos, com perseverança, ele foi superando as dificuldades até que conseguiu completar a corrida. Ele havia alcançado o topo, havia chegado ao seu objetivo. Todos os outros sapos haviam desistido, menos ele.

Perguntaram aos outros sapos porque eles haviam desistido, e eles responderam que ao escutar a multidão gritando "eles não vão conseguir", acabavam desanimando até desistir. A curiosidade tomou conta de todos. Queriam  saber o que tinha acontecido como aquele sapo que havia vencido. Como ele havia superado as dificuldades? Como havia vencido o "ele não vai conseguir" da multidão? Quando foram perguntar ao sapinho, descobriram que  ele era surdo..."

Muitas vezes na vida decidimos crescer espiritualmente, alcançar níveis mais altos, mas às vezes as pessoas em volta nos desanimam e nos desencorajam. Precisamos ter a força de vencer nossas "dificuldades sociais" e aprender a ignorar aqueles que nos empurram para baixo, não deixando que eles abalem nosso crescimento.

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Nesta semana lemos a Parashá Lech Lechá, que começa a descrever alguns dos 10 grandes testes pelos quais Avraham Avinu passou durante sua vida. O primeiro teste que a Parashá traz é o de "Lech Lechá" (literalmente "vá para você"), quando D'us ordenou a Avraham abandonar sua casa, sua família e seus amigos e ir para uma terra estranha e incerta, sem saber que dificuldades o esperariam.

Porém, de acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, este não foi o primeiro teste de Avraham. Antes de ser comandado a ir embora de casa, Avraham desafiou sua geração de idólatras ao revelar a todos que acreditava em um D'us único. As declarações de Avraham chegaram aos ouvidos de Nimrod, o governante supremo da época, que também era um grande idólatra. Nimrod tentou convencê-lo, primeiro com palavras e depois com ameaças, a abandonar sua crença em um D'us único e a voltar para a idolatria. Apesar da grande dificuldade, Avraham conseguiu vencer seu primeiro teste e continuou firme em suas convicções, mesmo quando Nimrod ameaçou jogá-lo em uma fornalha. Avraham enfrentou Nimrod sem medo, e D'us o salvou do fogo com um grande milagre aberto.

Aparentemente o primeiro teste de Avraham, de estar disposto a ser atirado em uma fornalha para não ceder às pressões de voltar para a idolatria, é um teste muito maior do que o teste de "Lech Lechá". Porém, nossos sábios afirmam que os testes de Avraham foram crescendo em dificuldade. Em que aspecto o teste de ir embora de casa pode ter sido maior do que o teste de ser atirado vivo em uma fornalha?

Em primeiro lugar, quando Avraham foi jogado na fornalha, ele passou por um grande teste de Emuná (fé), pois confiou em D'us mesmo quando tudo parecia perdido, mesmo quando parecia não haver mais salvação. Mas em Lech Lechá Avraham também foi testado em sua Emuná, pois D'us queria que ele saísse de sua casa e fosse para uma terra estranha. De onde viria seu sustento neste novo lugar? Quem seriam seus novos vizinhos? Como ele seria recebido? Estava indo para uma ilha paradisíaca ou para um deserto inóspito? Muitos questionamentos e nenhuma resposta. Mesmo assim Avraham teve a força e a coragem de cumprir a vontade de D'us.

Mas fora a Emuná, o teste de "Lech Lechá" ainda trazia dificuldades sentimentais e psicológicas. Avraham teve que juntar forças para abandonar sua família e seus amigos, as pessoas mais queridas de sua vida. Não era uma despedida de poucos dias ou meses, mas uma despedida que provavelmente seria para toda a vida. Além disso, ir embora de casa significava sair da sua "zona de conforto", trocar um lugar onde as coisas eram mais fáceis e cômodas por uma grande incerteza.

Por último, o teste de "Lech Lechá" também tinha um forte componente social, e aqui talvez estava uma das maiores dificuldades encontradas por Avraham. Quando uma pessoa é ameaçada de morte por causa de suas convicções, ela consegue encontrar forças para colocar sua vida em perigo, pois sabe que as pessoas valorizam aqueles que dão a vida por suas crenças. Estas pessoas são vistas como mártires, e se tornam exemplos e fontes de inspiração para os outros. Foi isso o que aconteceu no teste da fornalha, Avraham estava disposto a dar sua vida pela sua convicção da existência de um único D'us, e isto era um motivo de orgulho. Porém, ao contrário, no teste de "Lech Lechá" Avraham foi submetido a uma grande humilhação pública. Por que?

Todos nós conhecemos pessoas que decidiram mudar de cidade ou até mesmo de país. E há diferentes motivos que podem justificar este tipo de decisão, que envolve muitos esforços, dificuldades e novos desafios. A mudança pode vir por uma vontade de se juntar à família que vive em outro lugar, pode ser por causa de uma boa proposta de emprego ou até mesmo para buscar melhores condições de vida e novas oportunidades. Quando escutamos que algum conhecido está se mudando de cidade ou de país, sempre nos interessamos em saber qual foi o motivo que o levou a tomar esta decisão.

Mas imagine uma pessoa que, de um dia para o outro, começa a dar indícios de que está se preparando para se mudar. Sem dar muitas satisfações, a pessoa começa a empacotar suas coisas e coloca a casa e o carro à venda. Os vizinhos então perguntam para onde ela pretende ir, mas ela não sabe responder. Os parentes questionam se há alguma razão que justifique a mudança, mas não recebem nenhuma resposta convincente. Esta pessoa não seria ridicularizada por todos? Os parentes e vizinhos não passariam a desconfiar que esta pessoa sofre de algum tipo de instabilidade psicológica?

Explica o Rav Itzchak Zilberstein que com este conceito podemos entender um pouco melhor a dificuldade social do teste de "Lech Lechá". Quando D'us comandou Avraham a abandonar sua casa, não disse para onde ele iria, nem qual o motivo da viagem, apenas falou "Vá para você... para a terra que Eu te mostrarei" (Bereshit 12:1). Certamente os vizinhos e parentes devem ter zombado de Avraham. Ele provavelmente virou o grande assunto das fofocas de sua cidade. Quando Avraham passava pelas ruas, as pessoas deviam cochichar e apontar para ele. Ele poderia ter desistido por causa da vergonha, pelas más influências sociais, mas ele teve a coragem de enfrentar seus sentimentos internos contraditórios e cumpriu a vontade de D'us.

Ensinam nossos sábios que, de certa maneira, cada pessoa também passa em sua vida pelos mesmos testes que Avraham Avinu passou. Porém, também recebemos de Avraham a força espiritual para conseguir superá-los. Por isso é importante perceber onde estes testes ocorrem, para buscarmos a força necessária para vencê-los. "Lech Lechá" em geral é um teste pelo qual todos aqueles que fazem Teshuvá (pessoas afastadas do judaísmo que retornam ao cumprimento da Torá e das Mitzvót) passam em algum momento da vida. A Teshuvá começa com o componente da Emuná, pois precisamos confiar em D'us para conseguir mudar hábitos enraizados há tantos anos. Além disso, a Teshuvá também envolve o componente psicológico, pois nos obriga a sair da nossa "zona de conforto", a nem sempre fazer o que é gostoso, e sim o que é correto. E finalmente a Teshuvá é um enorme teste social, pois o Baal Teshuvá nem sempre é compreendido pelos amigos e familiares, e muitas vezes ainda não tem ferramentas para conseguir explicar os motivos de sua mudança. Muitos sofrem com a resistência de parentes e amigos em aceitar suas novas convicções.

Temos que saber que realmente não é um teste fácil. Para cada um a dificuldade social pode surgir em uma área diferente. Para alguns, a dificuldade é começar a aparecer em público usando uma Kipá. Para outros, a dificuldade é começar a usar uma saia ou uma blusa menos decotada, em uma sociedade onde "quanto mais se mostra do corpo, melhor". Alguns sentem dificuldade em assumir aos amigos e parentes que estão cumprindo Shabat ou que estão comendo apenas comida Kasher, com medo de serem tachados de "extremistas". Não é um teste fácil, pois nos importamos muito com o que os outros estão pensando sobre nós. Sempre há aquele parente ou amigo que gosta de fazer uma piada e nos questionar de forma provocadora, com deboches.

Por isso é tão importante entender os testes que Avraham Avinu passou. Nestes momentos, quando percebemos que estamos passando por testes semelhantes, devemos nos lembrar da força que herdamos de Avraham, do nosso potencial espiritual, para não deixar que esta "torcida contra" nos derrube. É importante nos preocuparmos com o que as outras pessoas pensam sobre nós, mas é mais importante ainda nos preocuparmos com o que D'us pensa sobre nós. Assim encontraremos a força necessária para vencer todos os obstáculos e alcançar nosso verdadeiro objetivo: fazer o que é o correto.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Gn.12:1-17:27, Is. 40;27-41:16
 
 

domingo, 26 de outubro de 2014

RECONHECENDO O VERDADEIRO DONO - PARASHÁ NOACH 5775

"Quando o pequeno Moishe foi ao banco pela primeira vez com seu pai, observou que o homem que trabalhava no caixa entregava muito dinheiro a um cliente e recebia uma quantia grande de outro. Ele encantou-se com a quantidade de dinheiro que passava pelo caixa. Ao sair, virou-se para o pai e disse:

- Aquele homem por trás do balcão deve ser um milionário. Viu só quanto dinheiro ele tem?

- Não é bem assim - disse o pai - Você e eu talvez sejamos mais ricos do que ele. O dinheiro que ele recebe e entrega não lhe pertence, é do banco. Se ele abusar deste privilegio e entregar ou guardar um real a mais, pode perder seu emprego e o privilegio de lidar com o dinheiro. Ele deve sempre ter em mente a origem do dinheiro e a quem ele realmente pertence."

Assim também devemos olhar a vida. Nossos talentos e as riquezas que acumulamos são nossos somente porque D'us nos deu, para utilizarmos no nosso trabalho espiritual. Mas se esquecermos de que Ele é o verdadeiro Dono e fizermos mau uso das nossas conquistas, podemos acabar perdendo tudo.

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Nesta semana lemos a Parashá Noach, que descreve dois episódios que mudaram a história da humanidade: o grande dilúvio que ocorreu nos dias de Noach (Noé) e que destruiu o mundo inteiro, e a construção da Torre de Bavel, que marcou o início da mistura das línguas no mundo. E estes dois eventos têm um importante ponto em comum: tanto o dilúvio quanto a mistura das línguas foram castigos aplicados por D'us por causa de erros que a humanidade estava cometendo.

Na geração do dilúvio, a humanidade havia se corrompido e se desviado dos caminhos corretos, e transgressões como o roubo e a promiscuidade se tornaram comuns. Já o erro da Torre de Bavel foi a própria construção da torre, como está escrito: "Venham, vamos construir para nós uma cidade e uma torre cujo topo chegue aos céus" (Bereshit 11:4). Mas o que há de tão mal em construir uma torre que chegue até o céu? Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que eles queriam chegar até o céu para lutar contra D'us. Porém, quem em sã consciência tentaria lutar contra o Criador do Universo? Por que aquela geração cometeu um erro assim tão grave?

Há ainda outra pergunta que surge quando prestamos atenção em um dos primeiros versículos que descrevem a construção da Torre de Bavel: "Venham, vamos fazer tijolos e queimá-los no fogo. E o tijolo servirá como pedra, e o betume servirá com argamassa" (Bereshit 11:3). Sabemos que a Torá não gasta nem mesmo uma letra de maneira desnecessária. Se o problema da Torre de Bavel era uma rebeldia contra D'us, então qual a importância de sabermos com que materiais a torre foi construída? E por que ressaltar que foi utilizado o tijolo ao invés da pedra?

Explica o Rav Yohanan Zweig que neste pequeno detalhe está a chave para entender qual foi a fonte do erro que aquela geração cometeu. Apesar de parecer apenas um detalhe construtivo, há uma diferença crucial entre uma casa construída com pedras e uma casa construída com tijolos. As pedras utilizadas nas construções eram retiradas de pedreiras naturais. Quando uma pessoa vive em uma casa de pedras, ela sente que está vivendo no mundo de D'us, pois está cercada por materiais que vêm diretamente da natureza, com pouca intervenção humana. Já quando uma pessoa fabrica tijolos e os utiliza para construir sua casa, ela pode ter a sensação de que sua moradia é desconectada de D'us, pois foi ele próprio o responsável por processar os materiais utilizados na construção.

O propósito da Torre de Bavel era ir contra o Criador do mundo, tentando negar Seu controle sobre todo o universo e atribuindo ao ser humano o poder de controlar o mundo. Isto é ressaltado pelo versículo inicial sobre a construção da Torre de Bavel: "E toda a terra tinha apenas uma linguagem e um propósito comum" (Bereshit 11:1). Rashi explica que a expressão "Dvarim Achadim" (propósito comum) tem um significado mais profundo. A palavra "Achadim" vem da mesma raiz que a palavra "Ichud", que significa "unicidade". Isto quer dizer que os seres humanos estavam querendo anular o "Ichudo Shel Olam", isto é, a noção da Unicidade de D'us, o único e verdadeiro Poder que controla todo o universo. E por que isto aconteceu justamente naquela geração? Pois quando eles começaram a alcançar avanços tecnológicos, acharam que podiam controlar o mundo. Por isso chegaram ao ponto de construir uma torre gigantesca para lutar contra D'us.

Explica o Rav Avraham ben Meir (Espanha, 1092 - 1167), mais conhecido como Ibn Ezra, que o versículo "e o tijolo servirá como pedra" demonstra que as pessoas intencionalmente deram preferência ao uso do tijolo, refletindo a percepção daquela geração de que eles estavam vivendo em um mundo em que eles mesmo haviam criado, na ilusão de que D'us não mais exercia Sua autoridade sobre o mundo.

Infelizmente nós muitas vezes cometemos os mesmos erros das gerações anteriores, e nos deixamos cegar pelos avanços tecnológicos da humanidade. Quanto mais o ser humano progride em suas buscas tecnológicas, mais ele se torna propenso a perder de vista que D'us é a única autoridade no mundo. Ao invés de utilizarmos os avanços tecnológicos para nos conectarmos a D'us, utilizamos para procurar novos fenômenos que possam explicar um mundo sem Ele.

O próprio nome dado a Noach traz este conceito. Noach vem da mesma raiz de "Menuchá", que significa "descanso". Por que o pai de Noach deu a ele este nome? Explicam nossos sábios que desde o erro de Adam Harishon, a terra havia sido amaldiçoada. Quando o trigo era plantado, ao invés de nascerem espigas, praticamente nasciam apenas espinhos. Mas o pai de Noach sabia que a maldição se aplicaria com toda a sua força apenas enquanto Adam estava vivo. Noach foi o primeiro ser humano a nascer depois da morte de Adam e, portanto, seu pai sabia que seu nascimento marcaria uma época de descanso e tranquilidade ao mundo. E Noach realmente fez uma grande diferença, pois inventou equipamentos agrícolas, desenvolveu novas técnicas e facilitou o trabalho no campo.

Porém, a Torá nos ensina que foi justamente a geração de Noach, aquela geração que usufruiu dos benefícios dos primeiros avanços tecnológicos, que foi destruída no terrível dilúvio que quase apagou a humanidade da face da Terra. Por que? Pois eles também não souberam utilizar os avanços tecnológicos para se conectarem com D'us. Com as novas técnicas e equipamentos, as pessoas precisavam trabalhar menos. Mas ao invés de fazer algo construtivo com o tempo livre que surgiu, as pessoas acabaram utilizando-o para pensar em besteiras, se corrompendo e chegando a grandes desvios.

Se o mal uso das tecnologias já foi suficiente para desviar a geração de Noach, muito maior deve ser o nosso cuidado, pois vivemos em um tempo no qual os avanços tecnológicos praticamente nos atropelam. Nos 200 anos após a Revolução Industrial foram feitas mais invenções do que nos 5 mil anos anteriores. Estamos agora em uma nova fase, a Revolução Digital, na qual as mudanças são ainda mais frenéticas. Quando compramos um celular novo, no dia seguinte já há um novo modelo, como uma nova função que até ontem não existia. Em todas as áreas vemos mudanças constantes. Mas será que utilizamos estas melhorias para o bem? As tecnologias cada vez mais nos isolam, criando verdadeiros "casulos" dentro das casas. Atualmente não há mais momentos em família, pois cada um tem a sua televisão, seu computador e seu celular, fazendo que as pessoas vivam na mesma casa mas, ao mesmo tempo, em mundos independentes.

Outro perigo das grandes e frenéticas evoluções tecnológicas é novamente cairmos no erro de pensar que o ser humano está no controle das coisas. Isto é apenas uma grande ilusão, pois a verdade é que D'us está no comando. É Ele quem permite as novas descobertas e é Ele quem faz com que as pessoas tenham novas ideias. Portanto, se soubermos utilizar as novas tecnologias da maneira correta, elas podem nos trazer Brachót (Bençãos). Mas aprendemos de Noach e da Torre de Bavel que utilizar as novas tecnologias da maneira incorreta pode nos trazer muitos sofrimentos e dificuldades.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Gn.6:9-11:32, Is 54:1-55:5, 1 Pe. 3: 18-22