sexta-feira, 28 de novembro de 2014

BONS MODOS VÊM ANTES DA TORÁ – PARASHÁ VAIETZE 5775

"O Rav Isroel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 - Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, aprendeu muitas coisas na vida observando cuidadosamente cada atitude de seu rabino, o Rav Nachum Kaplan (Lituânia, 1812 - 1879), carinhosamente conhecido como Reb Nechumke, pois sabia que todos os atos do seu rabino eram muito ponderados e tinham alguma motivação profunda.

Um dos exemplos ocorreu em um dia de Chánuka, quando a casa do Reb Nechumke estava cheia de parentes e alunos que queriam participar com ele do acendimento das velas. A Chanukiá polida e brilhante já estava no lugar apropriado, os copinhos já estavam cheios de azeite cristalino e puro, e os pavios de algodão já estavam preparados para o acendimento. Quando chegou o horário de acendimento, ao contrário do que todos esperavam, o Rav Nechumke permaneceu sentado ao lado da Chanukiá, estudando tranquilamente. Nas janelas das casas vizinhas já era possível ver várias velas de Chánuka sendo acesas, mas o Rav Nechumke não se movia do lugar para acender sua Chanukiá. Passou uma hora, e depois mais uma hora, mas o Reb Nechumke continuava sentado ao lado da Chanukiá e não se levantava para acendê-la. Lá fora já estava escuro e ninguém entendia o motivo do atraso, estavam todos perplexos. As crianças menores já estavam sem paciência, ansiosas pelo acendimento.

Após mais uma hora ter passado, todos escutaram uma leve batida na porta. A porta se abriu lentamente e a esposa do Rav Nechumke entrou em casa. Quando o Rav Nechumke viu que sua esposa havia chegado, abriu um enorme sorriso e imediatamente foi acender a Chanukiá. Depois do acendimento, os alunos questionaram o motivo daquela demora:

- Rav, de acordo com uma das opiniões dos nossos sábios, somente é possível acender as velas de Chánuka até o por do sol. Sabemos o quanto você é exigente e tenta cumprir as Mitzvót levando em consideração mesmo as opiniões mais rigorosas. Então por que você esperou pela sua esposa, se de acordo com a Halachá (Lei Judaica) ela não tinha obrigação de estar presente no momento do acendimento das velas?

- Vocês fizeram uma boa pergunta - começou a dizer o Rav Nechumke, olhando para os alunos com carinho - mas o que eu fiz está baseado em um ensinamento dos nossos sábios. Explica o Talmud (Torá Oral) que se um homem é tão pobre que não tem condições de comprar as velas de Shabat e as velas de Chánuka, ele deve dar prioridade para as velas de Shabat, pois elas envolvem o conceito de "Shalom Bait" (Harmonia familiar). Eu sabia que se eu não esperasse minha esposa e acendesse a Chanukiá sem ela, certamente eu causaria um sofrimento nela e com isso poderia prejudicar meu Shalom Bait. Se de acordo com o ensinamento dos nossos sábios as velas de Shabat têm prioridade sobre as velas de Chánuka por causa do Shalom Bait, então eu decidi que poderia me apoiar nas opiniões mais lenientes, que permitem o acendimento das velas de Chánuka depois do pôr do sol, para assim garantir que eu não causaria nenhuma mágoa em minha esposa."

Devemos cumprir com alegria e com seriedade todas as Mitzvót, mas sem nunca esquecer a nossa obrigação de "Derech Eretz" (se comportar de maneira decente e respeitosa).
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Na Parashá desta semana, Vaietze, Yaacov foge da fúria de seu irmão Essav, que queria matá-lo, e parte em direção à casa de seu tio Lavan, onde também poderia procurar por uma esposa. Porém, antes disso, Yaacov decidiu passar 14 anos estudando na Yeshivá (Centro de estudos) de Shem e Ever, descendentes de Noach (Noé), para desenvolver sua espiritualidade e se elevar. Quando finalmente ele se dirigiu à casa de seu tio Lavan, no caminho passou por uma incrível experiência transcendental.

Quando Yaacov chegou ao lugar onde futuramente seria construído o Beit Hamikdash, anoiteceu de repente. Sem condições de continuar a viagem, ele colocou algumas pedras para apoiar sua cabeça, deitou e dormiu. Yaacov então teve um sonho profético, no qual ele viu uma escada apoiada na terra e cujo topo chegava até o céu, e nela havia anjos subindo e descendo. Uma incrível visão celestial, que poucas pessoas na história meritaram. Yaacov teve a oportunidade de atingir níveis de sabedoria ilimitados, e muitos segredos da criação foram mostrados para ele. Nesta visão profética houve também uma revelação de D'us, na qual Ele fez uma promessa eterna a Yaacov e seus descendentes.

Além disso, a Torá ressalta que todo o evento foi diretamente direcionado por D'us, e muitas coisas acima das leis da natureza ocorreram para que Yaacov tivesse esta visão profética. Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que há vários milagres indicados no seguinte versículo: "Ele (Yaacov) encontrou o lugar e passou a noite lá, pois o sol se pôs. E ele pegou das pedras do lugar que ele tinha colocado em volta de sua cabeça, e deitou naquele lugar" (Bereshit 28:11). "Pois o sol se pôs" significa que D'us fez com que milagrosamente o pôr do sol acontecesse antes do horário, para forçar Yaacov a dormir lá. "E encontrou o lugar" significa que Yaacov "saltou" de forma milagrosa até aquele lugar sagrado, onde D'us queria se revelar para ele. "E ele pegou as pedras do lugar" significa que as pedras se juntaram e se tornaram uma só pedra grande, para que Yaacov pudesse apoiar sua cabeça e dormir.

Se nós tivéssemos o mérito de receber durante um sonho uma visão profética tão elevada como a de Yaacov, não acordaríamos muito felizes por esta experiência transcendental e esta conexão espiritual tão incrível? Não estaríamos contentes por termos sido escolhidos para tal revelação, com a ocorrência de tantos milagres que a antecederam? Mas a Torá descreve que esta não foi a reação de Yaacov: "E Yaacov acordou do seu sono e disse: 'Então existe D'us neste lugar, e eu não sabia'" (Bereshit 28:16). De acordo com Rashi, é como se Yaacov estivesse dizendo: "Se eu soubesse, não teria dormido neste lugar tão sagrado". Ao invés de acordar alegre, Yaacov acordou arrependido de ter dormido lá.

A reação de Yaacov é difícil de ser entendida. Nossos sábios ensinam que não foi nem mesmo um sono pesado, foi apenas uma soneca. E foi justamente por causa desta soneca que a alma de Yaacov se conectou com D'us e alcançou incríveis visões proféticas. Além disso, estava óbvio pelos milagres que aconteceram que foi D'us que "forçou" Yaacov a dormir naquele lugar sagrado. Então por que ele ficou tão temeroso de ter dormido lá? Se não tivesse dormido, ele teria perdido a oportunidade daquela visão profética, então por que se arrependeu?

Explica o Rav Nosson Tzvi Finkel (Lituânia, 1849 - Israel, 1927), mais conhecido como Alter MiSlobodka, que daqui aprendemos o quanto nossos antepassados eram rigorosos com a característica de "Derech Eretz". Derech Eretz é a forma da pessoa se comportar, em todos os seus atos, com educação, respeito, atenção e decência. Yaacov entendeu que, mesmo que foi apenas uma soneca, era um sinal de desrespeito com a santidade do lugar. Isto significa que Yaacov deu mais importância ao Derech Eretz do que à Revelação Divina e todos os segredos ocultos que foram mostrados a ele, e estaria disposto a abrir mão de todo aquele crescimento espiritual apenas para ter se portado com mais Derech Eretz.

Este comportamento de Yaacov ilustra muito bem um importante conceito ensinado pelos nossos sábios: "Derech Eretz Kadmá LaTorá" (o Derech Eretz vem antes da Torá). O que significa esta expressão? Explica o Rabeinu Yona (Espanha, século 12) que a pessoa precisa continuamente melhorar seus traços de caráter, pois somente assim a Torá que ela estudar ficará para sempre com ela. Mas se a pessoa estudar sem ter refinado seu caráter, no final acabará perdendo seu estudo. O Derech Eretz precisa vir antes da Torá pois é parte das fundações do ser humano, que permitirá que tudo construído em sua vida se mantenha em pé.

Se Yaacov estava disposto a abrir mão de uma grande Revelação Divina por causa do Derech Eretz, muito maior é a nossa obrigação de termos cuidado com nosso comportamento nos atos cotidianos, evitando causar qualquer constrangimento ou sofrimento aos outros. Muitas vezes, por nos descuidarmos, acabamos ofendendo e até mesmo humilhando outras pessoas. Por isso, antes de almejar nos tornarmos pessoas espiritualmente elevadas, precisamos almejar no tornarmos pessoas educadas e corretas. Assim, tudo o que construirmos espiritualmente se manterá para sempre.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

sábado, 22 de novembro de 2014

SEJA VOCÊ MESMO - PARASHÁ TOLDOT 5775

"O Rav Yerucham Leibovitz (Bielorússia, 1873 - 1936), o grande Mashguiach (líder espiritual) da Yeshivá de Mir, certa vez foi visitar o Rav Nosson Tzvi Finkel (Lituânia, 1849 - Israel, 1927), mais conhecido como Alter MiSlobodka. No primeiro dia da visita os dois se fecharam em uma sala, e era possível escutar do lado de fora que o Alter estava dando uma enorme bronca no Rav Yerucham. A mesma cena se repetiu nos dias que se seguiram, por quase uma semana.

Mas afinal, por que o Alter estava tão incomodado com o Rav Yerucham, uma pessoa tão reta e pura? Pois Slobodka era uma Yeshivá (Centro de estudos de Torá) que reforçava muito a ideia de que seus alunos não deveriam ser forçados a se "moldarem" de uma maneira específica. O Alter MiSlobodka sempre se esforçou para ressaltar o que cada aluno tinha de único e especial. Ele tinha o cuidado de não trazer para a Yeshivá professores muito carismáticos, pois tinha receio de que alguém carismático acabaria influenciando de maneira muito forte os alunos, fazendo-os seguir exatamente seu estilo, ao invés de investirem em suas próprias qualidades.

Foi por isso que o Alter MiSlobodka estava tão bravo. Ele sabia que o Rav Yerucham era tão carismático que, mesmo sem intenção, estava transformando seus alunos da Yeshivá de Mir em seus "seguidores", ao invés de incentivar que cada um deles desenvolvesse sua expressão única e individual.

Quais foram os benefícios de Slobodka ter encorajado seus alunos a expressarem sua individualidade, ao invés de tentar moldá-los de maneira padrão? De todas as Yeshivót da Europa, Slobodka foi a que produziu a maior quantidade de gênios de Torá. Nomes como Rav Aharon Kotler, Rav Yaacov Kamenetzky e Rav Yitzchak Hutner são alguns exemplos de rabino que saíram de Slobodka e iluminaram o mundo com sua Torá. E o mais impressionante é que estes gigantes eram muito diferentes uns dos outros em suas características. Ao reforçar o que havia de único em cada aluno, o Alter MiSlobodka conseguiu tirar de cada um deles o que eles tinham de melhor.

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Nesta semana lemos a Parashá Toldot, que descreve um pouco da vida do nosso patriarca Yitzchak. Mas diferente de Avraham, que se destacou pelo Chessed e pela Emuná (fé) inabalável, e de Yaacov, que se destacou pela incrível honestidade mesmo diante de grandes testes, Yitzchak aparentemente não se destacou em nada. Depois de quase ter sido sacrificado por seu pai, a Torá nos conta muito pouco sobre a vida dele. Qual é o ensinamento que podemos aprender da vida e dos atos de Yitzchak?

Se prestarmos atenção em alguns dos acontecimentos da vida de Yitzchak relatados na Parashá, perceberemos que seus passos sempre foram muito parecidos com os de seu pai, Avraham. Tanto Avraham quanto Yitzchak passaram por um período de fome na terra de Israel, e ambos se dirigiram ao Egito, com a única diferença que D'us não permitiu a Ytzchak sair da terra de Israel. Além disso, os dois viveram com o povo dos Plishtim e passaram pelo perigo de terem suas esposas raptadas por causa da beleza delas. Da mesma forma que Avraham precisou dizer que Sara era sua irmã para não ser assassinado, também Yitzchak teve que dizer que Rivka era sua irmã. E, finalmente, Yitzchak voltou aos poços que Avraham havia cavado, mas como eles haviam sido tapados pelos Plishtim, Yitzchak cavou-os novamente e deu a eles exatamente os mesmos nomes que seu pai originalmente havia dado. É impressionante perceber as semelhanças entre os caminhos de Avraham e de Yitzchak.

Explica o Rabeinu Bechaye (Espanha, 1255 - 1340) que esta semelhança não foi uma mera coincidência. Dos atos de Yitzchak nós aprendemos para as futuras gerações o conceito de "Massoret Avót" (transmissão dos antepassados), isto é, a obrigação de seguirmos nos caminhos e tradições dos nossos antepassados. Ytzchak não quis se desviar nem mesmo um centímetro dos caminhos trilhados por seu pai. Enquanto o papel de Avraham era ser o desbravador, definindo os precedentes e estabelecendo as "placas de orientação" para o povo judeu, o papel de Ytzchak era consolidar tudo aquilo que seu pai havia feito, seguindo de forma precisa seus passos.

Porém, há outro aspecto na vida de Yitzchak que aparentemente contradiz a ideia de seguir seu pai em todos os caminhos. Nossos sábios ensinam que Avraham e Ytzchak tinham personalidades muito diferentes. Enquanto Avraham representou a característica do Chessed (bondade), transbordando bondades para todas as criaturas, Ytzchak é definido pela característica de justiça e bravura. Isto significa que, em relação aos traços de caráter, Ytzchak não seguiu os caminhos de seu pai. Como entender esta contradição?

Este comportamento "contraditório" de Ytzchak é, na realidade, uma das maiores contribuições que ele deu ao povo judeu. Ytzchak estava nos ensinando que, por um lado, temos a obrigação de nos mantermos conectados às instruções que recebemos através da "Massóret Avót". Nenhum judeu pode criar seu próprio conjunto de valores e comportamentos, pois recebemos a transmissão de qual é a forma correta de viver nossa vida. Mas, por outro lado, Ytzchak nos ensinou que isto não significa que todos aqueles que querem estar conectados à linha de transmissão da Torá devem se comportar de maneira idêntica, sem manter sua individualidade, pois há diversas maneiras de desenvolver nossa "Avodat Hashem" (Serviço Divino). O Rav Israel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 - Polônia,1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, questiona o motivo pelo qual a Torá precisou nos relatar que a Árvore da Vida estava posicionada exatamente no centro do Gan Éden. Ele responde que é justamente para nos ensinar que a verdade é representada por um único ponto central, mas que existem numerosos pontos em volta que são equidistantes do centro. Assim também há diversas abordagens do judaísmo, que enfatizam diferentes formas de servir a D'us e diferentes traços de caráter. Apesar de serem diferentes, enquanto elas se encontram dentro dos limites da "Massóret Avót", todas têm a mesma validade aos olhos de D'us. Isto nos ensina a não olharmos com superioridade para outro judeu por ele ser Chassid, Ashkenazi ou Sefaradi, achando que somente nós estamos fazendo o que é correto, pois cada uma destas abordagens ressalta uma maneira diferente de se conectar a D'us, sendo que uma não é melhor do que a outra.

Este conceito pode ser aplicado em outras áreas da nossa vida, como no desenvolvimento da nossa própria personalidade. Há a tendência em muitas sociedades de que certos traços de caráter são mais louváveis do que outros. Por exemplo, ser extrovertido e confiante normalmente é visto como algo positivo, enquanto ser envergonhado e retraído é normalmente visto de maneira negativa. Pais extrovertidos com um filho introvertido têm a tendência de achar que a natureza quieta de seu filho é uma falha de caráter, e por isso o pressionam para que mude. Porém, o mais provável é que a única coisa que estes pais conseguirão será fazê-lo se sentir uma pessoa inadequada. É trabalho dos pais entender que seu filho tem características diferentes das suas, aceitando-o como ele é e aprendendo a desenvolver seus pontos fortes. Da mesma maneira, há crianças que têm muita dificuldade de se sentar horas para estudar e manter o foco. Se os pais não entendem a natureza do filho e tentam pressioná-lo a estudar sem parar, é muito provável que esta criança se rebelará ao crescer.

Pode parecer algo hipotético, mas o Rav Shimshon Raphael Hirsh (Alemanha, 1808 - 1888) explica que foi exatamente isto o que aconteceu com Essav. Ytzchak, com a melhor das intenções, quis educar seus dois filhos, Yaacov e Essav, da mesma maneira. Eles foram ensinados desde cedo que deveriam dedicar horas e horas diárias aos estudos. Porém, Yitzchak não levou em consideração que Essav tinha uma natureza completamente diferente de Yaacov. Enquanto Yaacov era uma criança tranquila, Essav era uma criança com muita energia, e toda esta energia foi reprimida durante sua infância. Quando Essav cresceu, ele alegremente abandonou seus estudos e se afundou em uma vida de transgressões. Daqui aprendemos o quanto devemos ser sensíveis às diferenças de natureza dos nossos filhos.

Há algo no começo da Parashá que ressalta a importância da nossa individualidade. Como Rivka não conseguia ter filhos, ela e Ytzchak rezaram, mas a Torá ressalta que a Tefilá de Ytzchak foi escutada. O Talmud (Yebamot 64a) explica que não se compara a força da Tefilá de um Tzadik filho de um Tzadik com a Tefilá de um Tzadik filho de um Rashá (malvado). Ytzchak era filho de Avraham, um Tzadik que mudou a história da humanidade, enquanto Rivka era filha de Betuel, um grande Rashá. Mas não deveria ser justamente o contrário? Ytzchak cresceu na casa de Avraham e desde cedo foi educado por seu pai a andar nos caminhos corretos. Rivka, ao contrário, cresceu no meio de Reshaim, pessoas enganadoras e desonestas, e apesar disso conseguiu superar as dificuldades e se tornar uma grande Tzadiká. Então por que ela não tinha mais méritos do que Ytzchak? Explicam os nossos sábios que Ytzchak tinha um desafio ainda maior do que o de Rivka: o de não se tornar uma mera cópia idêntica de seu pai. Avraham foi um dos maiores modelos que alguém poderia ter na vida, e o natural seria Ytzchak apenas copiar seu pai em todos os seus atos e características. Mas Ytzchak não se contentou com isso, e teve muitos méritos por ter criado seu próprio caminho de Serviço a D'us.

Esta foi a grande contribuição de Ytzchak: nos ensinar que, apesar de ser necessário estarmos conectados à "Massóret Avót", sendo uma grande proibição mudar qualquer aspecto da Torá, temos a liberdade de sermos nós mesmos, de utilizarmos nossas aptidões naturais e forças para nos conectarmos ao nosso lado espiritual. Não temos que nos anular e nos forçar a sermos o que não somos. Assim, desenvolvendo nossas habilidades e nossos pontos fortes, certamente teremos uma chance muito maior de vivermos uma vida muito mais feliz e com sucesso.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 25:19-28:9, Ml. 1:1-2:7
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

FALANDO COM CUIDADO - PARASHÁ CHAIEI SARA 5775

"Rodrigo contratou Fernando, um experiente e renomado carpinteiro, para reformar alguns móveis de sua casa. Mas o dia de Fernando não começou nada bem. Ele chegou atrasado, com as mãos sujas de graxa, pois o pneu do seu caminhão havia furado. E o resto do dia também não foi fácil. Sua furadeira queimou, a serra quebrou, ele fez um corte na mão e, na hora de ir embora, seu caminhão não funcionou. Rodrigo, com dó, ofereceu uma carona. Sem alternativa, Fernando aceitou.

Durante o caminho, Fernando estava com o rosto tenso. Ia em silêncio, olhando para baixo, sem querer muita conversa. Rodrigo respeitou e também não tentou puxar papo. Quando chegaram, Fernando convidou-o para conhecer sua casa e sua família. Rodrigo estava com pressa, mas ficou sem jeito de não aceitar. Não deixou de notar que Fernando, antes de entrar em casa, apoiou as duas mãos sobre uma árvore, ficando assim por alguns instantes, e somente depois entrou em casa. E um grande milagre aconteceu, pois Fernando transformou-se em outra pessoa. O rosto tenso foi substituído por um enorme sorriso e o silêncio virou gargalhadas enquanto ele abraçava os filhinhos e a esposa.

No momento de ir embora, Fernando agradeceu muito pela carona e acompanhou Rodrigo até o carro. Ao passarem pela árvore, Rodrigo não aguentou a curiosidade e perguntou sobre a estranha atitude de Fernando e a mudança repentina de comportamento. Fernando explicou:

- Todos nós temos dificuldades no nosso dia, e quando voltamos para casa acabamos descontando em nossas esposas e filhos todas as nossas frustrações. Mas eles não merecem escutar grosserias, pois eles não têm nada a ver com as dificuldades do nosso dia. Então eu decidi que, todas as vezes que eu chegasse em casa, deixaria todos os meus problemas naquela árvore que fica ao lado da entrada, e quando eu saísse de casa de manhã, eu pegaria os problemas de volta.

- Que interessante - falou Rodrigo, surpreso com a atitude positiva do marceneiro - Mas funciona mesmo?

- Melhor do que eu esperava - respondeu Fernando, abrindo um sorriso - Pois eu deixo os problemas na árvore de noite, mas quando eu volto para pegá-los no dia seguinte, eles não são nem metade do que eu me lembrava ter deixado..."

Não é algo fácil, mas precisamos desenvolver a capacidade de, mesmo nas situações mais difíceis do nosso cotidiano, manter o autocontrole e não "descontar" nos outros nossos problemas e dificuldades.  
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Nesta semana lemos a Parashá Chaiei Sara, que descreve a busca de uma esposa para o nosso patriarca Ytzchak. Avraham havia quase sacrificado Ytzchak, chegando a colocá-lo sobre um altar a pedido de D'us, mas foi impedido por um anjo na última hora. Avraham entendeu que se Yitzchak tivesse realmente sido sacrificado, ele teria morrido sem deixar descendentes. Portanto, ele viu que era hora de Ytzchak se casar e ter uma família, e confiou a Eliezer, seu fiel ajudante, a importante missão de voltar para sua terra natal e procurar entre seus parentes uma esposa para Ytzchak.

Eliezer não queria procurar uma esposa qualquer para Ytzchak, e sim uma moça que tivesse bons traços de caráter. Ele fez uma longa viagem até a cidade natal de Avraham e, chegando lá, foi direto para um poço de água, no fim da tarde, justamente na hora em que as mulheres costumavam ir para lá buscar água. Eliezer sabia que lá poderia testar a bondade das moças, pedindo que elas lhe servissem água e também dessem água aos seus camelos. A Providência Divina fez com que a primeira moça que apareceu foi Rivka, que era parente de Avraham. Após ela ter enchido seu jarro, Eliezer se aproximou e pediu água, como está escrito: "Por favor, me deixe beber um pouco da água do seu jarro" (Bereshit 24:17).

Deste versículo surge uma pergunta curiosa: Eliezer tinha acabado de atravessar um enorme deserto para buscar uma esposa para Ytzchak. Certamente ele devia estar com muita sede, e com as altas temperaturas do deserto era até mesmo um risco de vida caso ele não tomasse água. Então por que ele pediu para Rivka apenas um pouco de água, ao invés de pedir muita água?

Explica o Rav Ytzchak Zilberstain que o ser humano não é testado por seus atos grandes, e sim pelos seus pequenos atos cotidianos. A forma como ele fala com as outras pessoas e como ele se comporta nas pequenas atitudes mostram quem é ele de verdade. Para definir o nível espiritual de uma pessoa, é necessário observar como ela se comporta no seu dia-a-dia, nas coisas mais comuns e simples que ela faz.

Há um interessante ensinamento do mais sábio de todos os homens, Shlomo Hamelech (Rei Salomão), que nos ajuda a entender este conceito: "O Tzadik (justo) come para se saciar, mas o estômago do Rashá (malvado) está sempre insatisfeito" (Mishlei 13:25). O entendimento mais simples do versículo é que o Tzadik é aquele que come apenas o que é necessário para se sentir saciado, e fica satisfeito mesmo com pouco, enquanto o Rashá é aquele que come por gula, em excesso, para se empanturrar, e por isso sempre sente que ainda lhe falta algo. Porém, há um Midrash (parte da Torá Oral) que aprofunda o entendimento do versículo e afirma que "Tzadik" se refere a Eliezer, justamente por ter pedido para Rivka apenas um pouquinho de água, não de forma rude e descontrolada. Já "Rashá" se refere a Essav, que pediu para seu irmão Yaacov comida de forma grosseira, como está escrito: "Verta na minha boca desta coisa vermelha vermelha, pois eu estou exausto" (Bereshit 25:30).

O ensinamento deste Midrash é incrível. Eliezer fazia muitos atos positivos e construtivos, enquanto Essav fazia muitos atos negativos e destrutivos. Apesar disso, quando o Midrash quis dizer que "Tzadik" e "Rashá" se referem a Eliezer e Essav, traz como prova os versículos que apenas mencionam a forma como cada um deles pediu comida ou bebida em momentos de dificuldade. Isto demonstra que a forma como nos comportamos nos pequenos desafios do cotidiano é o que define nosso status espiritual.

Mas surge um grande questionamento quando refletimos sobre a definição de Essav como um "Rashá" por ter pedido para que seu irmão vertesse comida em sua boca. Antes de tudo, precisamos entender melhor em que contexto isto aconteceu. O versículo ressalta que Essav estava exausto, e nossos sábios explicam que naquele dia Essav havia saído para caçar algum animal para servir ao seu pai. Porém, no meio do caminho, ele se deparou com Nimrod, o governante da época, e os dois tiveram um desentendimento. Apesar de Nimrod ser considerado pela Torá um "Gibor" (valente e destemido), Essav se levantou contra ele e o assassinou. Além disso, nossos sábios dizem que Essav também cometeu naquele dia outras graves transgressões. Por causa de todo o esforço e energia gastos nestas transgressões, Essav estava extremamente cansado, a ponto de quase desmaiar, correndo até mesmo risco de vida caso não comesse algo logo. Foi por isso que ele pediu desesperadamente para que Yaacov despejasse a comida em sua boca. Essav falou de maneira grosseira justamente por seu desespero e pelo cansaço que dominava seu corpo. A prova disso é que ele já nem refletia mais sobre as palavras que saíam de sua boca, repetindo a palavra "vermelha" duas vezes, sem nenhum sentido.

Sabemos que em situações de "Pikuach Nefesh" (quando há algum risco de vida envolvido), a vida está acima das Mitzvót da Torá (com exceção de idolatria, relações ilícitas e assassinato). Isto quer dizer que em qualquer situação onde há perigo de vida, a pessoa deve transgredir as Mitzvót para se salvar ou salvar a vida de outra pessoa. O Talmud (Sanhedrin 74a) aprende isso do versículo que diz "E observem os Meus decretos e as Minhas leis, que o homem deve fazer e viver por elas, Eu sou D'us" (Vayikrá 18:5). O versículo ressalta "viver por elas", e não morrer por elas. Por exemplo, temos a proibição de fazer certas atividades construtivas no Shabat, mas alguém que está com risco de vida deve ir imediatamente ao hospital para receber o tratamento necessário, mesmo que para isso necessite desrespeitar o Shabat. Portanto, se Essav estava em uma situação de Pikuach Nefesh, por que a Torá está cobrando dele um comportamento exemplar? Por que ele é considerado "Rashá" por ter falado com uma linguagem grosseira neste momento?

Explica o Rav Ytzchak Zilberstain que a Torá está nos ensinando algo impressionante. Apesar de o "Pikuach Nefesh" prevalecer até mesmo sobre a grande maioria das Mitzvót da Torá, ele não prevalece sobre a obrigação de falarmos as coisas de forma delicada. Por que o Midrash comparou Essav justamente com Eliezer? E com tantos bons atos que Eliezer fez na vida, por que justamente trazer o versículo do momento em que ele se encontrou com Rivka? Pois quando Eliezer viajou para procurar uma esposa para Ytzchak, ele também estava exausto por causa da viagem. Além disso, ele devia estar sedento e certamente muito pressionado pela responsabilidade de sua importante missão. Mas mesmo assim a Torá fez questão de registrar o quanto ele foi rigoroso consigo mesmo, pedindo água de uma maneira educada e comedida, diferente de Essav, que em um momento de dificuldade pediu comida de forma grosseira.

Fica para nós um ensinamento muito importante. Sempre focamos nos grandes atos, nos grandes testes que podem surgir pelo caminho. Queremos ser espiritualmente grandes, e achamos que isto somente ocorrerá quando vencermos testes difíceis como o sacrifício de Yitzchak. Mas a Torá nos ensinou, através da simples conduta de Eliezer em um pequeno detalhe do seu cotidiano, que não é nos grandes testes que podemos mostrar para D'us quem somos, é justamente nas pequenas atitudes, nos pequenos detalhes, que podemos fazer a diferença. Apesar de não serem tão difíceis quanto o teste do sacrifício de Ytzchak, os pequenos testes do cotidiano podem nos dar o rótulo de "Tzadik".

Isto mostra a importância aos olhos de D'us do nosso "Derech Eretz", isto é, a forma como falamos e nos comportamos com as outras pessoas. Mesmo nos momentos difíceis, temos que trabalhar muito nosso autocontrole. Pois morrer para santificar o nome de D'us, como Ytzchak estava disposto a fazer, é sem dúvida um ato heroico. Mas viver e santificar o nome de D'us através dos pequenos atos do cotidiano é mais heroico ainda.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
 
Gn.23:1-25:18, 1Rs.1:1-31

sábado, 8 de novembro de 2014

ESFRIANDO A ÁGUA QUENTE - PARASHÁ VAIERÁ 5775


"Mesmo durante o rigoroso inverno europeu, o Rav Isroel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 - Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, ia sempre à Mikve da cidade de Radin, onde morava, na véspera do Shabat. Certa vez ele encontrou a pessoa que fazia a manutenção da Mikve e perguntou se a água já havia sido aquecida. O homem respondeu que sim, pois já havia vertido quase metade do conteúdo da caldeira de água quente na Mikve. O Chafetz Chaim então se preparou para mergulhar, mas quando encostou o pé na água, percebeu que estava muito gelada.

O Chafetz Chaim não entendeu o que estava acontecendo, pois certamente o homem não havia mentido para ele, mas a água estava gelada como se nenhuma quantidade de água quente tivesse sido acrescentada. Quando checou a temperatura da água da caldeira, entendeu qual era o problema: a água estava morna, quase fria. O problema não estava na Mikve, estava na caldeira, que não estava funcionando direito e não conseguia esquentar a água. Por isso, mesmo que a água da caldeira havia sido realmente jogada na Mikve, não havia contribuído para esquentá-la.

Durante o Shabat, o Chafetz Chaim refletiu sobre o ocorrido e aprendeu uma grande lição. Mesmo a água fervendo de uma caldeira consegue apenas deixar a água da Mikve morna. E se a própria água da caldeira estiver morna, ela não contribui para esquentar a Mikve, ao contrário, esta água que acaba se esfriando".

O Chafetz Chaim utilizava este conceito para ensinar o perigo de entrarmos em contato com pessoas em um nível espiritual mais baixo, pois corremos o grande risco de acabarmos sendo "esfriados".
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Na Parashá desta semana, Vaierá, a Torá continua nos descrevendo os difíceis testes pelos quais Avraham Avinu passou durante sua vida. Um dos grandes testes foi ter que expulsar de casa seu próprio filho. Durante muitos anos Avraham não conseguia ter filhos. Sara, vendo que não conseguia dar filhos para Avraham, sugeriu que ele se casasse com sua escrava, Hagar, e que tivesse filhos com ela, pois assim poderia ao menos participar da educação desta criança. Avraham escutou o pedido de sua esposa e se casou com Hagar, tendo com ela um filho, Ishmael. Somente alguns anos depois D'us teve misericórdia de Sara e também deu a ela um filho, Itzchak.

Porém, certa vez Sara viu algo que não a agradou: "E viu Sara o filho que Hagar, a egípcia, havia dado à luz para Avraham, zombando" (Bereshit 21:9). Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que a linguagem "messachek" (zombando) também é utilizada em outros lugares da Torá para se referir à idolatria, relações ilícitas e assassinato. Isto quer dizer que Sara viu Ishmael fazendo atos graves, que demonstravam que ele havia se corrompido e se desviado completamente. Sara então exigiu que Avraham expulsasse de casa sua esposa Hagar e seu filho Ishmael, para que Ishmael não se tornasse uma má influência para Itzchak. A ideia de expulsar seu filho desagradou a Avraham, mas D'us apareceu para ele e confirmou que isto era o correto a se fazer. Apesar da dificuldade do teste, Avraham conseguiu dominar suas emoções e cumprir a vontade de D'us.

Mas deste acontecimento surge uma grande pergunta: Avraham não percebeu que seu filho Ishmael havia se desviado do caminho? Ele não sabia que a convivência colocava em risco a educação e o futuro de Itzchak, seu herdeiro espiritual? Então por que a ideia de expulsar Ishmael lhe desagradou?

Respondem os nossos sábios que Avraham tinha plena consciência dos maus atos de Ishmael e os riscos que seus comportamentos inadequados causariam na educação de Itzchak. Porém, Avraham acreditava que o contrário poderia acontecer, isto é, que o bom comportamento de Itzchak poderia ajudar a endireitar Ishmael. Sara também conhecia os dois lados, mas ponderou e chegou à conclusão de que era muito mais provável que Itzchak fosse mal influenciado do que Ishmael fosse bem influenciado, e por isso decidiu expulsá-lo. D'us concordou com a ponderação de Sara.

Dizem nossos sábios que "Maassê Avót, Siman Lebanim" (os atos dos nossos antepassados são um sinal para nós). Explica o Chafetz Chaim que deste episódio aprendemos uma importante lição de como nos relacionar com pessoas espiritualmente mais baixas, que se comportam de uma maneira inadequada. A Torá está nos ensinando que devemos nos afastar delas, pois esta convivência certamente nos fará mal. Muitas vezes pensamos que não seremos afetados pelos maus atos dos outros, achamos que somos fortes e não seremos influenciados por comportamentos inadequados. Mas a verdade é que tudo o que vemos à nossa volta nos influencia, para o bem ou para o mal. E a repetição constante de más influências pode nos transformar em pessoas completamente diferentes. O problema é que, quando estamos dentro da influência, acabamos não percebemos a nossa própria transformação.

Este ensinamento é ressaltado em outro episódio da Parashá, quando D'us decidiu destruir as cidades de Sdóm (Sodoma) e Amorá (Gomocha), cidades que atingiram limites absurdos de maldade. E assim está descrita a destruição: "D'us fez chover enxofre e fogo sobre Sdóm e Amorá... Ele virou estas cidades de cabeça para baixo" (Bereshit 19:24,25). O que significa que D'us virou as cidades de cabeça para baixo?

Ensinam nossos sábios: "Raban Shimon bem Gamliel disse: o mundo se sustenta por três coisas: a justiça, a verdade e a paz" (Pirkei Avót 1:18). Apesar de a justiça ser um dos pilares que sustentam o mundo inteiro, Sdóm e Amorá literalmente inverteram a justiça e os caminhos corretos. O Talmud (Sanhedrin 109a) nos ensina que eles legislaram leis injustas, que prejudicavam os bons e protegiam os malvados. Por exemplo, havia Em Sdóm uma grave proibição de receber convidados ou ajudar os pobres, e a violação destas leis era punida de forma severa. Pelo fato de eles terem literalmente invertido a justiça, medida por medida D'us fez com que suas cidades, que se encontravam no topo de uma enorme rocha, virassem de cabeça para baixo e fossem destruídas.

Porém, por que as pessoas de Sdom e Amorá eram tão ruins? De onde vinha tanta maldade? O Talmud (Sanhedrin 109 a) nos dá uma incrível explicação, dizendo que tudo começou com uma grande Brachá (benção) de D'us, quando Ele deu aos habitantes de Sdóm e Amorá uma terra extremamente fértil, cheia de ouro e safiras. Os habitantes não eram pessoas ruins, mas começaram a pensar em maneiras de fazer com que pessoas de fora não viessem para se aproveitar das riquezas de lá. Eles fizeram leis abomináveis e contrataram juízes malvados que julgariam de acordo com estas leis e castigariam de forma dura todo aquele que as transgredissem, somente para afastaram possíveis novos moradores que quisessem vir para extrair o que a terra tinha de bom.

Portanto, em um primeiro momento estas leis não eram motivadas pela maldade, e sim como uma forma de proteger suas riquezas. Mas o que era apenas algo externo, com o passar do tempo começou a influenciar para o mal toda a população de Sdóm e Amorá. As pessoas acabaram se tornado realmente malvadas e cruéis. Quando Lót, o sobrinho de Avraham, recebeu convidados em sua casa, a cidade inteira veio tirar satisfação, desde os mais jovens até os mais velhos. A população estava inflamada, querendo "justiça". Pessoas que eram corretas e bondosas haviam se tornado agentes do mal, prontas a destruir e cometer as piores crueldades imagináveis. Rashi ressalta que não havia na cidade inteira nem mesmo um único habitante que era justo e correto. Esta é a força das influências internas sobre o nosso comportamento.

De Sdóm e Amorá aprendemos o quanto o costume nos transforma em pessoas diferentes. Não podemos pensar que estamos imunes às influências externas, pois somos criaturas sociais e absorvemos muito do ambiente à nossa volta. Algo abominável, quando repetido muitas vezes, vai sendo internalizado e se transformando em natureza, a ponto de acabarmos intelectualmente defendendo tal ideia após algum tempo. Ninguém está imune de sofrer influências externas, e por isso devemos escolher bem quem são as pessoas à nossa volta e quais são os valores da sociedade na qual escolhemos viver, como ensinam nossos sábios: "Nitai Haarbeli disse: Se afaste de um mau vizinho e não se associe a um homem perverso" (Pirkei Avót 1:7). Foi por isso que D'us concordou com o pedido de Sara. Este era o correto a se fazer, pois certamente Itzchak, que era uma criança pura e correta, aprenderia com os maus atos de Ishmael e se desviaria do caminho. Ninguém está a salvo das más influências.

Precisamos tomar cuidado, pois o "mau vizinho" descrito pelos nossos sábios não são apenas pessoas de carne e osso, mas tudo o que permitimos que entre em nossas casas. Quando abrimos nosso lar às ideias "estranhas" ao judaísmo, acabamos nos acostumando mesmo com coisas que há pouco tempo achávamos abomináveis. Infelizmente vivemos em uma sociedade cujos valores são cada vez mais corrompidos, e se não tivermos uma constante referência do que é o correto, podemos facilmente cair. O perigo não é apenas o quanto as más influências afetam nossos filhos, mas também o quanto elas afetam a cada um de nós. Certamente os habitantes de Sdóm e Amorá achavam que eles estavam corretos. Eles caiam pouco a  pouco, mas não percebiam. Como a água morna jogada na piscina gelada, eles iam perdendo um pouco mais de "calor" a cada dia. Isto pode acontecer a cada um de nós, mas acontece em especial com aqueles que acham que estão acima de qualquer influência.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

sábado, 1 de novembro de 2014

TORCIDA CONTRA - PARASHÁ LECH LECHÁ 5775

"Certa vez organizaram uma corrida de sapinhos, cujo objetivo era atingir o alto de uma grande torre. Havia no local uma multidão assistindo, vibrando e torcendo pelos sapos. Quando começou a competição, todos perceberam que seria muito difícil alcançar o alto da torre, pois era uma enorme subida. Os torcedores, ao invés de incentivar, começaram a dizer em voz alta: "Que pena, acho que eles não vão conseguir". Infelizmente os sapinhos iam vendo o quanto era difícil chegar lá em cima e começavam a desistir, um por um.

Havia um grupo que ainda persistia e continuava subindo, tentando alcançar o topo. Mas a multidão continuava gritando: "Uau, é muito difícil. Que pena que eles não vão conseguir". E mesmo neste grupo de sapinhos mais fortes muitos começaram a desistir.

Porém, havia um sapinho que, apesar da "torcida contra", continuava firme em sua subida. Embora cansado, ele não desistia. Mesmo que todos gritavam "ele não vai conseguir", ele juntava forças e, quando parecia impossível, conseguia vencer mais uma etapa. Assim, aos poucos, com perseverança, ele foi superando as dificuldades até que conseguiu completar a corrida. Ele havia alcançado o topo, havia chegado ao seu objetivo. Todos os outros sapos haviam desistido, menos ele.

Perguntaram aos outros sapos porque eles haviam desistido, e eles responderam que ao escutar a multidão gritando "eles não vão conseguir", acabavam desanimando até desistir. A curiosidade tomou conta de todos. Queriam  saber o que tinha acontecido como aquele sapo que havia vencido. Como ele havia superado as dificuldades? Como havia vencido o "ele não vai conseguir" da multidão? Quando foram perguntar ao sapinho, descobriram que  ele era surdo..."

Muitas vezes na vida decidimos crescer espiritualmente, alcançar níveis mais altos, mas às vezes as pessoas em volta nos desanimam e nos desencorajam. Precisamos ter a força de vencer nossas "dificuldades sociais" e aprender a ignorar aqueles que nos empurram para baixo, não deixando que eles abalem nosso crescimento.

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Nesta semana lemos a Parashá Lech Lechá, que começa a descrever alguns dos 10 grandes testes pelos quais Avraham Avinu passou durante sua vida. O primeiro teste que a Parashá traz é o de "Lech Lechá" (literalmente "vá para você"), quando D'us ordenou a Avraham abandonar sua casa, sua família e seus amigos e ir para uma terra estranha e incerta, sem saber que dificuldades o esperariam.

Porém, de acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, este não foi o primeiro teste de Avraham. Antes de ser comandado a ir embora de casa, Avraham desafiou sua geração de idólatras ao revelar a todos que acreditava em um D'us único. As declarações de Avraham chegaram aos ouvidos de Nimrod, o governante supremo da época, que também era um grande idólatra. Nimrod tentou convencê-lo, primeiro com palavras e depois com ameaças, a abandonar sua crença em um D'us único e a voltar para a idolatria. Apesar da grande dificuldade, Avraham conseguiu vencer seu primeiro teste e continuou firme em suas convicções, mesmo quando Nimrod ameaçou jogá-lo em uma fornalha. Avraham enfrentou Nimrod sem medo, e D'us o salvou do fogo com um grande milagre aberto.

Aparentemente o primeiro teste de Avraham, de estar disposto a ser atirado em uma fornalha para não ceder às pressões de voltar para a idolatria, é um teste muito maior do que o teste de "Lech Lechá". Porém, nossos sábios afirmam que os testes de Avraham foram crescendo em dificuldade. Em que aspecto o teste de ir embora de casa pode ter sido maior do que o teste de ser atirado vivo em uma fornalha?

Em primeiro lugar, quando Avraham foi jogado na fornalha, ele passou por um grande teste de Emuná (fé), pois confiou em D'us mesmo quando tudo parecia perdido, mesmo quando parecia não haver mais salvação. Mas em Lech Lechá Avraham também foi testado em sua Emuná, pois D'us queria que ele saísse de sua casa e fosse para uma terra estranha. De onde viria seu sustento neste novo lugar? Quem seriam seus novos vizinhos? Como ele seria recebido? Estava indo para uma ilha paradisíaca ou para um deserto inóspito? Muitos questionamentos e nenhuma resposta. Mesmo assim Avraham teve a força e a coragem de cumprir a vontade de D'us.

Mas fora a Emuná, o teste de "Lech Lechá" ainda trazia dificuldades sentimentais e psicológicas. Avraham teve que juntar forças para abandonar sua família e seus amigos, as pessoas mais queridas de sua vida. Não era uma despedida de poucos dias ou meses, mas uma despedida que provavelmente seria para toda a vida. Além disso, ir embora de casa significava sair da sua "zona de conforto", trocar um lugar onde as coisas eram mais fáceis e cômodas por uma grande incerteza.

Por último, o teste de "Lech Lechá" também tinha um forte componente social, e aqui talvez estava uma das maiores dificuldades encontradas por Avraham. Quando uma pessoa é ameaçada de morte por causa de suas convicções, ela consegue encontrar forças para colocar sua vida em perigo, pois sabe que as pessoas valorizam aqueles que dão a vida por suas crenças. Estas pessoas são vistas como mártires, e se tornam exemplos e fontes de inspiração para os outros. Foi isso o que aconteceu no teste da fornalha, Avraham estava disposto a dar sua vida pela sua convicção da existência de um único D'us, e isto era um motivo de orgulho. Porém, ao contrário, no teste de "Lech Lechá" Avraham foi submetido a uma grande humilhação pública. Por que?

Todos nós conhecemos pessoas que decidiram mudar de cidade ou até mesmo de país. E há diferentes motivos que podem justificar este tipo de decisão, que envolve muitos esforços, dificuldades e novos desafios. A mudança pode vir por uma vontade de se juntar à família que vive em outro lugar, pode ser por causa de uma boa proposta de emprego ou até mesmo para buscar melhores condições de vida e novas oportunidades. Quando escutamos que algum conhecido está se mudando de cidade ou de país, sempre nos interessamos em saber qual foi o motivo que o levou a tomar esta decisão.

Mas imagine uma pessoa que, de um dia para o outro, começa a dar indícios de que está se preparando para se mudar. Sem dar muitas satisfações, a pessoa começa a empacotar suas coisas e coloca a casa e o carro à venda. Os vizinhos então perguntam para onde ela pretende ir, mas ela não sabe responder. Os parentes questionam se há alguma razão que justifique a mudança, mas não recebem nenhuma resposta convincente. Esta pessoa não seria ridicularizada por todos? Os parentes e vizinhos não passariam a desconfiar que esta pessoa sofre de algum tipo de instabilidade psicológica?

Explica o Rav Itzchak Zilberstein que com este conceito podemos entender um pouco melhor a dificuldade social do teste de "Lech Lechá". Quando D'us comandou Avraham a abandonar sua casa, não disse para onde ele iria, nem qual o motivo da viagem, apenas falou "Vá para você... para a terra que Eu te mostrarei" (Bereshit 12:1). Certamente os vizinhos e parentes devem ter zombado de Avraham. Ele provavelmente virou o grande assunto das fofocas de sua cidade. Quando Avraham passava pelas ruas, as pessoas deviam cochichar e apontar para ele. Ele poderia ter desistido por causa da vergonha, pelas más influências sociais, mas ele teve a coragem de enfrentar seus sentimentos internos contraditórios e cumpriu a vontade de D'us.

Ensinam nossos sábios que, de certa maneira, cada pessoa também passa em sua vida pelos mesmos testes que Avraham Avinu passou. Porém, também recebemos de Avraham a força espiritual para conseguir superá-los. Por isso é importante perceber onde estes testes ocorrem, para buscarmos a força necessária para vencê-los. "Lech Lechá" em geral é um teste pelo qual todos aqueles que fazem Teshuvá (pessoas afastadas do judaísmo que retornam ao cumprimento da Torá e das Mitzvót) passam em algum momento da vida. A Teshuvá começa com o componente da Emuná, pois precisamos confiar em D'us para conseguir mudar hábitos enraizados há tantos anos. Além disso, a Teshuvá também envolve o componente psicológico, pois nos obriga a sair da nossa "zona de conforto", a nem sempre fazer o que é gostoso, e sim o que é correto. E finalmente a Teshuvá é um enorme teste social, pois o Baal Teshuvá nem sempre é compreendido pelos amigos e familiares, e muitas vezes ainda não tem ferramentas para conseguir explicar os motivos de sua mudança. Muitos sofrem com a resistência de parentes e amigos em aceitar suas novas convicções.

Temos que saber que realmente não é um teste fácil. Para cada um a dificuldade social pode surgir em uma área diferente. Para alguns, a dificuldade é começar a aparecer em público usando uma Kipá. Para outros, a dificuldade é começar a usar uma saia ou uma blusa menos decotada, em uma sociedade onde "quanto mais se mostra do corpo, melhor". Alguns sentem dificuldade em assumir aos amigos e parentes que estão cumprindo Shabat ou que estão comendo apenas comida Kasher, com medo de serem tachados de "extremistas". Não é um teste fácil, pois nos importamos muito com o que os outros estão pensando sobre nós. Sempre há aquele parente ou amigo que gosta de fazer uma piada e nos questionar de forma provocadora, com deboches.

Por isso é tão importante entender os testes que Avraham Avinu passou. Nestes momentos, quando percebemos que estamos passando por testes semelhantes, devemos nos lembrar da força que herdamos de Avraham, do nosso potencial espiritual, para não deixar que esta "torcida contra" nos derrube. É importante nos preocuparmos com o que as outras pessoas pensam sobre nós, mas é mais importante ainda nos preocuparmos com o que D'us pensa sobre nós. Assim encontraremos a força necessária para vencer todos os obstáculos e alcançar nosso verdadeiro objetivo: fazer o que é o correto.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Gn.12:1-17:27, Is. 40;27-41:16