sábado, 26 de março de 2016

UTENSÍLIOS NAS MÃOS DE D'US - PARASHAT TZAV 5776

Carlinhos era um garoto curioso. Certo dia, ao observar seu avô escrevendo em um caderno, perguntou se estava escrevendo algo sobre ele. O avô sorriu e disse ao netinho:

- Sim, estou escrevendo algo sobre você. Entretanto, mais importante do que as palavras que estou escrevendo é este lápis que estou usando. Espero que você seja como ele quando crescer.

O menino olhou para o lápis e, não vendo nada de especial, comentou com o avô que parecia um lápis igual a todos os outros que ele já tinha visto. Questionou qual era a comparação do lápis com ele. O avô deu um sorriso e explicou:

- Tudo depende do modo como você olha as coisas. Há cinco qualidades em um lápis que, se você conseguir tê-las, será uma pessoa de bem e em paz com o mundo - respondeu o avô.

A primeira qualidade: assim como o lápis, de vez em quando você vai ter que parar o que está escrevendo e usar um "apontador". Isso faz com que o lápis sofra um pouco, mas no final ele se torna mais afiado. Portanto, saiba suportar as adversidades da vida, porque elas farão de você uma pessoa mais forte e melhor.

A segunda qualidade: assim como o lápis, permita que seja apagado o que está errado. Entenda que corrigir uma coisa errada que fizemos é muito importante para nos trazer de volta ao caminho certo.

A terceira qualidade: assim como no lápis, o que realmente importa não é a madeira ou sua forma exterior, mas a grafite que está dentro dele. Portanto, sempre cuide daquilo que tem dentro de você. O seu caráter será sempre mais importante do que a sua aparência.

A quarta qualidade do lápis: ele sempre deixa uma marca. Da mesma maneira, saiba que tudo o que você fizer na vida deixará traços e marcas na vida das pessoas. Portanto, procure ser consciente de cada ação, deixe um legado, e marque positivamente a vida das pessoas.

E, finalmente, a última e mais importante qualidade: assim como o lápis, você pode fazer coisas grandiosas. Mas nunca se esqueça de que existe uma mão que guia os passos do lápis, e que sem ela, o lápis não tem qualquer utilidade. Também em nossas vidas podemos fazer coisas grandiosas, mas sem nunca esquecer a "mão" que nos guia: D'us.
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Nesta semana lemos a Parashat Tzav (que literalmente significa "Ordene"). Um dos assuntos da Parashat é a consagração de Aharon e seus filhos como os Cohanim (sacerdotes) que fariam os serviços do Mishkan (Templo Móvel). No processo de consagração, Moshé falou ao povo: "Isto é o que D'us ordenou a ser feito" (Vayikrá 8:5). Depois disso Moshé começou a preparar Aharon e seus filhos, auxiliando no banho deles e ajudando-os a vestir as roupas de sacerdócio.

Porém, tudo o que Moshé fazia era de acordo com a vontade de D'us. Então por que justamente neste momento, antes de ajudar Aharon e seus filhos a se banhar e se vestir para o sacerdócio, ele sentiu a necessidade de anunciar "isto é o que D'us ordenou a ser feito"? Explica Rashi (França, 1040 - 1105) que Moshé teve medo que as pessoas interpretassem erroneamente que ele estava fazendo aqueles atos apenas como uma forma de se autoglorificar. Por isso, para tirar qualquer suspeita, ele sentiu a necessidade de avisar ao povo que aquela não era uma decisão sua, e sim uma ordem de D'us para que ele ajudasse no banho e nas vestimentas dos Cohanim.

Porém, este explicação de Rashi é difícil de ser entendida. Ajudar a dar banho e a vestir alguém não parece ser algo muito honroso, que traz prestígio para quem o faz. Então por que Moshé teve medo que as pessoas pensariam que ele estava se autoglorificando com estes atos? E a pergunta fica ainda mais difícil de acordo com o Rambam zt"l (Maimônides) (Espanha, 1135 - Egito, 1204), pois em sua obra "Mishnê Torá", no capítulo sobre as Halachót (leis) dos reis, ele escreve que é proibido um rei servir como ajudante de uma casa de banho. Moshé, por seu papel de liderança sobre o povo judeu, tinha status de rei. Então por que D'us exigiu que Moshé, apesar de sua posição tão elevada, fizesse atos que aparentemente o degradavam?

O mesmo ocorreu na história de Purim. O rei Achashverosh, sentindo-se endividado com Mordechai por ele ter salvado a sua vida, não sabia como dar-lhe o pagamento devido. Ele se aconselhou com seu ministro Haman, mas sem mencionar que a recompensa era para Mordechai. Haman, que constantemente buscava honra e prestígio, pensou que o rei se referia a ele. Sugeriu então que a pessoa deveria passear pela cidade montada no cavalo do rei, vestindo as roupas do rei e com alguém importante na frente puxando o cavalo e anunciando "Assim é feito com aquele que o rei deseja honrar". O rei, satisfeito com a sugestão, falou para Haman: "Vá imediatamente e faça para Mordechai tudo o que você me sugeriu". O Talmud (Meguila 16a) acrescenta ainda que Haman não apenas teve que puxar o cavalo de Mordechai em público, mas também teve que fazer a barba de Mordechai e ajudá-lo no banho. Porém, como entender este ensinamento do Talmud? Mesmo que o rei Achashverosh queria honrar Mordechai, por que ele precisava rebaixar e humilhar desta maneira Haman, um de seus mais altos oficiais do reinado?

Responde o Rav Yohanan Zweig que ser barbeiro ou ajudante de banho de alguém que quer apenas se enfeitar e se arrumar realmente pode ser algo degradante para alguém de grande estatura. Por isso, é proibido para um rei, por causa de sua honra perante o povo, fazer este tipo de serviço. Porém, se estes atos não forem apenas por embelezamento, e sim como parte do engrandecimento de outra pessoa, que trará mais honra ao próximo, neste caso este ato não é considerado algo degradante nem mesmo para alguém de elevada estatura. Quando o rei Achashverosh pediu para Haman cuidar pessoalmente da preparação de Mordechai, não o fez com intenção de rebaixá-lo ou humilhá-lo. Ser visto como aquele que deu honra para Mordechai seria considerado para Haman também algo honroso.

O mesmo se aplica em relação à Moshé. Como o ato de banhar e vestir Aharon e seus filhos era algo que traria honra para eles, então Moshé também seria honrado com estes atos. Por isso ele se preocupou que as pessoas poderiam pensar que ele fez esta escolha sozinho, pela sua própria honra. Como neste caso ajudar a dar banho e se vestir era algo em honra dos Cohanim, isto também trazia honra a quem fazia. Portanto, não havia nenhuma contradição com estes atos e o status real de Moshé.

Daqui podemos aprender algo muito importante. Não importa o que nós façamos na vida, se fazemos pela honra de D'us, então isto também traz honra para nós. Uma das doenças que mais aflige a humanidade atualmente é a depressão. As pessoas sentem que não tem nenhum valor, pois não são atores de sucesso, presidentes de multinacionais ou jogadores de futebol famosos. As pessoas se sentem desvalorizadas, sentem que suas atividades cotidianas são medíocres. Isto é um grande erro, pois mesmo as atividades que poderiam ser até vistas como degradantes, quando são feitam em honra de D'us, se transformam em trabalhos honrosos. Aprendemos isto do primeiro serviço matinal que o Cohen Gadol fazia no Mishkan: o "Trumat HaDeshen", que consistia em retirar as cinzas do "Mizbeach" (altar de sacrifícios) que haviam sobrado do dia anterior. Apesar deste serviço de "limpeza" parecer algo baixo para alguém da estatura do Cohen Gadol, na prática não havia nenhuma degradação em fazer este tipo de serviço, pois como era feito em honra de D'us, isto era uma grande fonte de honra para o Cohen Gadol.

O contrário também é válido. Não importa o quanto uma pessoa possa ter um trabalho honroso, se ele faz as coisas pela sua própria honra e não pela honra de D'us, então este trabalho não tem valor verdadeiro. Aprendemos isso ao nos aprofundarmos nos versículos da Parashat que descrevem a preparação dos Cohanim para servirem no Mishkan. A Torá descreve que Moshé primeiro imergiu Aharon e seus filhos na Mikve, depois Moshé vestiu Aharon, o Cohen Gadol, com suas roupas sacerdotais, consagrou o Mishkan e todos os seus utensílios, e somente depois Moshé vestiu os filhos de Aharon. Aparentemente os filhos de Aharon ficaram esperando, sem roupa, até que Moshé completasse a consagração do Mishkan. Por que Moshé não os vestiu antes de consagrar o Mishkan?

A mesma pergunta surge quando observamos, na obra do Rambam, que as leis referentes aos Cohanim aparecem na seção "Klei Mikdash" (Utensílios do Santuário). Por que o Rambam achou apropriado ensinar as leis do sacerdócio junto com as leis dos utensílios do Mishkan, como se os Cohanim estivessem "à sombra" dos utensílios, ao invés de dedicar um capítulo especial somente às leis do sacerdócio? O Mishkan tinha uma importância maior do que os Cohanim?

A genialidade Rambam em seu livro de Halachót não está apenas no conteúdo, mas também na forma de classificação e codificação das leis. Ao incluir as leis de sacerdócio no meio das leis dos utensílios do Mishkan, o Rambam está nos ensinando que os Cohanim existiam em função do Mishkan, e eram, portanto, semelhantes aos utensílios no Mishkan. Foi por isso que, antes de vestir a roupa dos Cohanim, Moshé terminou a consagração do Mishkan, pois sem o Mishkan estar pronto e consagrado, o serviço dos Cohanim também não tinha nenhum sentido e valor. Portanto, a Torá está resaltando que a importância de um Cohen é em função do seu serviço Divino, e não em função de si mesmo, e por isso ele não deve sentir honra e orgulho pelo seu trabalho.

Devemos sentir alegria com o que fazemos na vida. Ao invés de invejar aquele presidente ou aquele ator, devemos saber que cada um tem um papel fundamental para o bom funcionamento do mundo. O que seria do mundo se não houvesse as profissões menos prestigiadas? Por exemplo, como o mundo poderia funcionar sem lixeiros? Portanto, o mais importante é fazermos nossas atividades com a intenção de contribuir para a humanidade, e em honra de D'us. Pois mesmo o mais simples lixeiro, que faz suas atividades de maneira humilde e honesta, é muito mais honroso do que um presidente desonesto, egoísta e orgulhoso.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Lv 6:8 -8:36, Jr. 7:21-8:3; 9:23-24

sábado, 19 de março de 2016

UNIDOS POR UM IDEAL - PARASHAT VAYIKRÁ E PURIM 5776

"Um pai tinha sete filhos. Certo dia ele reuniu todos e pediu para que cada um trouxesse um pequeno bambu seco. Até mesmo o mais novo dos filhos, que ainda era pequeno e fraquinho, saiu para buscar um bambu. Após algum tempo todos voltaram trazendo seus bambus. Então o pai pegou o bambu do filho mais velho, entregou ao filho mais novo e pediu para que ele quebrasse. Apesar de ainda não ter muita força, o menino quebrou o bambu ao meio com facilidade. E assim ele pediu para que cada filho quebrasse o bambu que havia trazido, o que foi facilmente realizado por todos.

O pai então pediu para que cada um trouxesse mais um bambu, mas desta vez o pai amarrou-os com uma corda, formando um feixe. Ele pediu para que o filho mais velho quebrasse os bambus, mas apesar de ser o mais forte dos irmãos, o rapaz não conseguiu nem mesmo dobrar o feixe, muito menos quebrá-lo. O pai pediu para que os outros irmãos o ajudassem, mas mesmo com todos juntos eles não puderam quebrar os bambus. O pai então explicou:

- Meus queridos filhos, prestem atenção no que vocês aprenderam hoje. Quando o bambu estava sozinho, mesmo o mais fraco de vocês conseguiu quebrá-lo com facilidade. Porém, quando os bambus foram reunidos em um feixe, nem todos vocês juntos conseguiram parti-los. Esta é uma das mais preciosas lições que eu ensino para vocês: se vocês ficarem desunidos, cada um preocupado apenas com as suas próprias necessidades, então vocês serão facilmente derrotados pelas dificuldades da vida. Mas se vocês se unirem em torno de um mesmo objetivo, se vocês se respeitarem e se ajudarem como se fossem um só, então nem o mais forte dos problemas poderá derrotá-los".

Toda vez que o povo judeu perde sua união, nossos problemas nos derrubam. Devemos aprender com a nossa história, pois em todas as épocas em que estávamos unidos, podíamos vencer até o mais forte dos nossos inimigos.
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Nesta semana lemos a Parashat Vayikrá (que literalmente significa "E chamou"). A Parashat explica algumas das leis referentes à oferenda de Korbanót (sacrifícios). E na próxima semana comemoraremos a Festa de Purim, que começa na noite de 4ª feira (23/03). A Festa de Purim envolve algumas Mitzvót interessantes, como a obrigação de fazer uma Seudá (Refeição Festiva) durante o dia; Escutar duas vezes (uma vez de noite e outra de dia) a leitura da "Meguilat Esther", que conta a história da salvação milagrosa dos judeus da Pérsia na época de Mordechai e Esther; Presentear um amigo com "Mishloach Manót" (pelo menos duas porções de comidas ou bebidas); e dar "Matanót Laevionim" (doar dinheiro a pelo menos dois pobres, possibilitando que eles também possam fazer uma Seudá honrosa em Purim).

Porém, estas Mitzvót de Purim nos chamam a atenção. As duas primeiras são facilmente entendidas, pois em todas as festas participarmos de refeições festivas e escutarmos a leitura de trechos da Torá que descrevem o que estamos comemorando naquela festa. Porém, as duas últimas são Mitzvót relacionadas com atos de Chessed (bondade), que não se repetem em nenhuma outra festa do ciclo do calendário judaico. Qual é a conexão destas Mitzvót com a festa de Purim?

A resposta pode ser encontrada analisando com atenção alguns dos versículos da Meguilat Esther. Quando Haman, o odiador do povo judeu, apresentou ao rei Achashverosh seu malévolo plano de destruição do povo judeu, ele fez questão de ressaltar qual era o motivo pelo qual os judeus não mereciam ser mantidos vivos: "E Haman disse ao rei Achashverosh: 'Há um povo, espalhado e disperso entre os povos, em todos os países do seu reinado' " (Esther 3:8). Os comentaristas da Meguilá dizem que Haman estava fazendo uma precisa crítica ao povo judeu, que conseguiu convencer o Rei Achashverosh de que não havia nada com o que se preocupar caso quisesse destruir o povo judeu. Quando o rei Achashverosh disse que temia a proteção Divina do povo judeu, algo que já havia se repetido diversas vezes na história, Haman tranquilizou-o, argumentando que o povo judeu, por estar desunido, não teria o mérito da proteção Divina.

Felizmente não foi apenas Haman que percebeu este ponto fraco do povo judeu. Os judeus também entenderam que por trás do decreto de Haman havia um decreto Celestial, que somente poderia ser anulado através da renovação do senso de união do povo. O Rav Yonasan Eibeshitz zt"l (Polônia, 1690 - Alemanha, 1764) ensina que esta foi a intenção de Esther quando ela instruiu Mordechai, o líder do povo, a como proceder para anular o decreto: "Vá, junte todos os judeus de Shushan e jejuem por mim" (Esther 4:16). Esther entendeu que apenas um esforço conjunto poderia cancelar o decreto.

Realmente esta forma de abordagem demonstrou ser eficiente. De acordo com o Rav Eliahu zt"l (Lituânia, 1720 - 1797), mais conhecido como Gaon MiVilna, há uma série de versículos que demonstram que realmente o povo judeu conseguiu recriar sua união, e que isto os levou a derrotar seus inimigos. Por exemplo, está escrito "E o restante dos judeus através das províncias do rei se uniram e se levantou para defender suas vidas, e descansaram de seus adversários e mataram seus inimigos" (Esther 9:16). A conjugação correta seria "se levantaram", mas o versículo vem ressaltar que o povo judeu estava muito unido, como se fosse uma única pessoa.

Com este entendimento do imenso significado da união do povo judeu na história de Purim, fica mais fácil entender por que os nossos sábios instituíram justamente nesta festa as Mitzvót de "Mishloach Manót" e "Matanót Laevionim", que estão na área de "Bein Adam Lehaveiró" (entre a pessoa e seu companheiro). Purim nos lembra da importância da união do povo judeu, e dar presentes aos amigos é uma excelente ferramenta para nos ajudar a nos importarmos com os outros. Porém, nossos sábios exigiram que nossa preocupação não se limite apenas aos nossos amigos, mas que se estenda também aos menos afortunados, os pobres, que são facilmente esquecidos por nós.

Mas apesar de entendermos que a desunião foi o fator chave que desencadeou o decreto contra o povo judeu, ainda não fica claro qual foi o motivo que levou o povo judeu a estar tão desunido e como eles foram capazes de corrigir esta falha. A resposta é trazida pelo mais sábio de todos os homens, Shlomo Hamelech (Rei Salomão): "Aquele que busca seus desejos, se separará" (Mishlei 18:1). Explica o Rabeinu Yona zt"l (Espanha, século 12) que este versículo nos ensina que a pessoa que segue seus desejos acaba se afastando de seus amigos. Isto ocorre pois os desejos são inerentemente voltados para as próprias vontades da pessoa, e normalmente se chocam com as vontades das outras pessoas. Por isso, a pessoa que apenas se importa em satisfazer seu próprios desejos terá metas divergentes em relação às pessoas à sua volta, e uma sociedade inteira composta por este tipo de pessoa certamente não terá nenhuma união.

Haman entendeu que o povo judeu havia sido influenciado pelas ideologias e desejos das nações com quem moravam e conviviam. Foi por isso que ele ressaltou ao rei Achashverosh que o povo judeu estava "espalhado e disperso entre os povos". Ele intencionalmente enfatizou o fato deles estarem entre os povos, pois esta era a causa de sua desunião. Os objetivos de cada judeu estavam sendo influenciado pelas sociedades vizinhas e, portanto, não havia união dentro do povo judeu como um todo.

O Rabeinu Yona explica que a chave para a união é ter um objetivo em comum: se conectar a D'us. O povo judeu somente consegue realizar sua verdadeira função neste mundo quando todos compartilham este propósito em comum. Quando isto acontece, os problemas, as disputas e os casos de concorrência prejudicial se dissipam, permitindo às pessoas focarem seus esforços em seu crescimento espiritual.

Purim nos conecta ao incrível momento de recebimento da Torá no Monte Sinai. Rashi (França, 1040 - 1105) ensina que sob o Monte Sinai o povo judeu estava unido "como um único homem, com um só coração". Como eles atingiram este nível de harmonia no Monte Sinai, eles puderam focar todas as suas energias em receber a Torá. Sem discórdias, sem disputas, sem discussões. Se eles não estivessem nesta sintonia, teriam sido incapazes de receber a Torá. O mesmo ocorreu em Purim, pois Esther conseguiu perceber que a desunião do povo judeu era consequência de seus objetivos divergentes, e que os desejos individuais eram a principal causa da desunião. Por isso, ela pediu para que todo o povo se unisse no contexto de um jejum. Fora o óbvio motivo que está por trás dos jejuns, que é a reflexão e o arrependimento pelos nossos erros, Esther sabia que, ao se abster dos prazeres físicos, isto enfraqueceria a ligação das pessoas com seus desejos físicos e as ajudaria a retomar o foco em sua espiritualidade. E realmente a história demonstra que o jejum ajudou as pessoas a se reconectarem com seu objetivo verdadeiro, que é cumprir a vontade de D'us.

Não é nenhuma coincidência que a união que os judeus alcançaram quando eles lutaram contra seus inimigos veio junto com outro jejum, feito no dia 13 de Adar. O jejum fortaleceu a habilidade dos judeus de vencer seus desejos egoístas e focar nos seus objetivos espirituais. Além disso, este nível incrível de união do povo possibilitou que eles reaceitassem a Torá da mesma maneira e força que eles haviam aceitado no Monte Sinai, mas desta vez com ainda mais amor.

Com este entendimento da conexão entre enfraquecer os nossos desejos físicos e a união do povo, podemos entender de maneira mais profunda as Mitzvót de "Mishloach Manót" e "Matanót Laevionim". Para atingir o nível de união que os judeus atingiram, eles precisaram se separar de seus desejos naturais. Isto sempre é uma tarefa extremamente difícil, e ainda mais em Purim, quando nós acabamos nos envolvendo de uma maneira mais forte com o mundo físico por causa da comida, da bebida e da alegria do dia. Quando presenteamos nossos amigos e doamos dinheiro aos necessitados, estamos garantindo que não seremos puxados pelo egoísmo, que é resultado de seguirmos os nossos desejos. Ao pensar no próximo, e doar ao próximo, nós garantimos que tudo o que comemos e bebemos em Purim nos aproxima de D'us, e não nos afasta Dele.

Purim é a época de reviver a união do povo judeu. Deixar de lado nossos próprios desejos e focar as energias no nosso verdadeiro objetivo, que é cumprir a vontade de D'us. Infelizmente acabamos não aprendendo as lições ensinadas pela nossa história, e continuamos rotulando as pessoas de maneira negativa. Isto cria divisões e separações dentro do nosso povo. Nosso problema verdadeiro não são as ameaças do Irã, os ataques palestinos ou os boicotes da BDS (Boicotes, Desinvestimento e Sanções contra Israel). Se cada um deixar de pensar em suas próprias necessidades e, com o coração aberto e caridoso, que é uma das marcas registradas do povo judeu, nos importarmos de verdade com cada pessoa, e em especial com aqueles menos afortunados, certamente veremos em nossos dias a salvação do povo judeu das ameaças de todos os nossos inimigos. Pois o verdadeiro inimigo do povo judeu não vem de fora, vem de dentro. Se a causa dos problemas é a desunião, certamente a solução virá da nossa união sincera e verdadeira.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
LEVÍTICO l:1-6:7, Is. 43:21-44:23        Chag HaPurím - Ler Livro de Ester

sábado, 12 de março de 2016

CORAÇÃO DE OURO - PARASHAT PEKUDEI 5776


"Gabriel gostava de aventuras e queria fazer uma viagem de balão. Enquanto estava esquentando o ar do balão e preparando os últimos detalhes, surgiu Marcos, um homem muito simples e ingênuo. Marcos ficou pasmado olhando para o balão que se inflava aos poucos. Ele morava em uma pequena cidade do interior, nunca tinha visto um balão, e ficou encantado com a ideia de viajar dentro de uma "cesta voadora". Suplicou a Gabriel que o levasse junto para o voo, e estava tão entusiasmado com a possibilidade de ver sua cidade do alto que não parava de insistir. Percebendo que não teria outra opção, Gabriel aceitou levar Marcos, com a condição que ele não tocasse em nada. Quando levantaram voo, Marcos não acreditou no que viu, pois nunca havia imaginado poder voar pelo céu. Mas depois de alguns minutos, ao perceber que o balão perdia altura, se assustou:

- Estamos caindo, estamos caindo, vamos morrer!

Gabriel explicou calmamente que era apenas o ar do balão se esfriando, e que bastava aumentar a chama para o balão subir novamente. Porém, quando Gabriel foi aumentar a chama, viu que ela havia se apagado completamente. O ponteiro do gás mostrava que o reservatório estava vazio, e Gabriel lembrou que, por causa da insistência de Marcos, não havia checado antes da decolagem se havia gás suficiente. Ainda tentando manter a calma, Gabriel explicou a Marcos que a única coisa a fazer naquele momento era diminuir o peso do balão, jogando fora os objetos que eles tinham trazido, inclusive as coisas mais valiosas, para ajudar o balão a subir e chegar em segurança. Imediatamente Gabriel começou a jogar fora todos os seus pertences: sua mochila, sua carteira, e até mesmo os mantimentos que havia trazido. Mas para Marcos era muito difícil jogar seus pertences, e por isso ele olhou ao redor, procurando alguma outra alternativa. De repente, teve uma ideia genial:

- Já sei como podemos nos salvar! Se este enorme balão que está cheio de gás já não serve mais, então vamos cortar as cordas que o conectam à cesta, e assim subiremos de novo…"

Apesar de ser uma piada, esta história tem uma forte relação com os momentos de dificuldade que passamos na vida. Por exemplo, em épocas de dificuldade financeira, temos duas escolhas: podemos "apertar o cinto" diminuindo nossos luxos e comodidades, ou podemos cortar as doações que fazemos para os necessitados e para as instituições de Torá. Infelizmente a escolha natural é cortar as doações. Porém, deveríamos fazer justamente o contrário, pois é a bondade que fazemos ao próximo e os méritos de mantermos o estudo da Torá que podem nos ajudar a sair da crise. Quando cortamos nossos atos de bondade, nos assemelhamos àquele homem simples que, na sua ingenuidade, sugeriu cortar as cordas que amarravam a cesta ao balão.
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Nesta semana lemos a Parashat Pekudei (que literalmente significa "contas"). O povo havia doado os materiais para a construção do Mishkan (Templo Móvel) e seus utensílios. Eram materiais caros e valiosos, como ouro, prata, cobre e tecidos. A Parashat começa justamente com a prestação de contas feita por Moshé, para justificar o uso de cada doação feita, como está escrito: "Estas são as contas do Mishkan, o Mishkan do Testemunho, que foram contadas sob o comando de Moshé" (Shemot 38:21).  
Porém, esta prestação de contas feita por Moshé apresenta uma aparente dificuldade. De acordo com o Rav Avraham ben Meir zt"l (Espanha, 1092 - 1167), mais conhecido como Ibn Ezra, se prestarmos atenção nos versículos que descrevem a totalização das doações, perceberemos que a prestação de contas ocorreu apenas com a prata e o cobre, porém não há prestação de contas do ouro. A Torá apresenta apenas qual foi o total de ouro doado, mas não explica como ele foi utilizado, como ocorre com a prata e o cobre, cuja utilização é descrita em detalhes. Por que Moshé não se preocupou em prestar contas da utilização do ouro?  
A resposta pode estar em uma interessante explicação do Daat Zkeinim MiBaalei HaTossafot (comentaristas da Torá que viveram na época de Rashi) trazida na Parashat Terumá, em relação às doações feitas para a construção do Mishkan. Na Parashat Terumá, a Torá também lista três metais entre os materiais que deveriam ser doados: o ouro, a prata e o cobre. De acordo com o Daat Zkeinim, cada um destes metais representa um nível de doação. O ouro representa as doações de uma pessoa que está completamente saudável, a prata representa a doação de alguém que está doente e o cobre representa a doação de alguém que já faleceu. Mas o que significa estas representações dos metais doados?
Explica o Rav Yohanan Zweig que, quando uma pessoa faz uma doação, há dois fatores a serem considerados: o impacto sobre a pessoa que abre mão dos seus recursos, e o retorno que a pessoa recebe do seu "investimento", isto é, o que ela espera receber em troca de sua doação.  
Quando falamos sobre alguém que doou depois do falecimento, isto representa a pessoa cuja doação não implica praticamente em nenhum perda financeira, e que é feita com o único intuito de acumular méritos para protegê-la no Olam Habá (Mundo Vindouro). Este é o nível mais baixo de doação, e é representada pela doação do cobre. Já a doação que é motivada por uma doença implica em uma certa perda de recursos, mas a pessoa faz a doação pensando no retorno do seu "investimento", que neste caso é a recuperação da sua saúde. Este é um nível intermediário de doação, e é representada pela doação da prata. Finalmente, a doação de uma pessoa saudável, que também implica em uma perda de recursos, é o modelo da doação sincera e altruísta, pois é feita sem segundas intenções. Pelo fato da pessoa estar viva e saudável, isto demonstra que ela não está querendo nada em troca de sua doação. Este é o maior nível de doação, e é representado pela doação do ouro.  
Mas como estes três níveis de doação explicam a falta de prestação de contas em relação às doações do ouro? Explica o Rav Yohanan Zweig que as pessoas normalmente costumam atribuir aos outros as suas próprias falhas e defeitos. O Talmud (Kidushin 70b) refere-se a este tipo de comportamento como "Kol Hapossel, Bemumó Possel", que significa que todo aquele que enxerga um defeito no seu companheiro está simplesmente projetando no outro as sua própria deficiência. Quando nos incomoda ver em outra pessoa algum traço de caráter negativo, significa que em algum nível nós também possuímos este mesmo traço de caráter negativo. D'us criou este incrível sistema para nos ajudar, pois normalmente é mais fácil enxergar os defeitos nos outros do que em nós mesmos. Então, quando enxergamos algo negativo em outra pessoa, é um reflexo de um erro que nós mesmos também estamos cometendo e que precisamos consertar.  
Com este conceito do Talmud podemos então entender a diferença que ocorreu na prestação de contas. Quando uma pessoa doa sem sinceridade, com segundas intenções em sua doação, então ela exigirá uma prestação de contas de como sua doação foi utilizada, pois pelo fato dela não ter doado de uma forma genuinamente altruísta, generosa e desinteressada, ela "projeta" no outro seu próprio defeito e assume que aquele que está recolhendo sua doação também está fazendo por motivos pessoais e interesseiros. Por isso, suspeitando de alguma irregularidade, ela exige uma prestação de contas completa de como sua doação foi utilizada.  
Quando a Torá apresenta a prestação de contas das doações de prata e cobre, é porque aqueles que doaram a prata e cobre assim exigiram. Porém, pelo fato daqueles que trouxeram o ouro terem feito uma doação completamente altruísta e desinteressada, eles também não despertaram nenhuma dúvida sobre a seriedade e a motivação pura daqueles que recolheram as doações. Não foi necessário fazer nenhum tipo de prestação de contas do ouro utilizado no Mishkan e em seus utensílios, pois os doadores não exigiram.  
Desta Parashat aprendemos duas importantes lições. A primeira é a incrível regra espiritual de "Kol HaPossel, Bemumó Possel", isto é, toda vez que nos irritamos com os defeitos dos outros, é um sinal que nós também temos, em algum nível, exatamente os mesmos defeitos. Portanto, ao invés de tentar corrigir os outros, em primeiro lugar devemos olhar para nós mesmos e corrigir o que estamos fazendo de errado.  
A segunda importante lição desta Parashat é em relação à pureza dos nossos atos de bondade. Muitos pensam que o importante é apenas o ato de doar, mas que as intenções pouco importam. Do Mishkan aprendemos que as intenções puras e altruístas são tão importantes quanto o ato de doação em si. A doação do ouro representa aqueles que doam com intenções puras e altruístas, e não com o desejo de receber algo em troca. Talvez é por isso que utilizamos a expressão "a pessoa tem um coração de ouro" quando nos referimos a alguém cujos atos de bondade são puros e altruístas.
  
Estamos passando no Brasil por uma crise econômica difícil. Porém, não podemos esquecer que tudo o que ocorre tem suas raízes nos mundos espirituais. Infelizmente a primeira atitude que tomamos em momentos de aperto não é cortar os nossos gastos supérfluos, e sim cortar as nossas doações, tanto para os necessitados quanto para as instituições de Torá. Mas isto é um grande erro, pois as doações e os nossos atos de bondade altruístas são justamente as atitudes que trazem méritos e que podem nos ajudar a superar as dificuldades e reverter a situação difícil. Como a pessoa em um balão caindo, para deixar de perder altura devemos jogar fora os bens "pesados", e não cortar o próprio balão, que é a única coisa que pode nos fazer voltar a subir.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 38:21-40:38, I Re. 7:51-8:21, 2

sábado, 5 de março de 2016

ANDANDO NA SOMBRA DE D'US - PARASHAT VAYAKEL 5776

"Joel estava insatisfeito com seu estilo de vida. A pressão do dia a dia estava deixando-o completamente louco. Trabalhava demais, descansava pouco, não fazia exercícios. Decidiu que precisava parar um pouco, precisava de umas boas férias. Como queria se isolar e fugir da civilização, pegou seu jipe, preparou provisões para alguns dias de viagem e foi se aventurar em trilhas e locais pouco habitados.
Em certo momento ele se desconcentrou do caminho e acabou se perdendo. Sem nenhum mapa, foi seguindo durante horas por estradas de terra, até que chegou a uma tribo indígena que praticamente nunca tinha entrado em contato com a civilização. Quando os índios viram Joel chegando com seu jipe, acharam que era um deus montado sobre um monstro. A tribo toda correu para se curvar diante daquele deus poderoso. Joel foi recebido com honras, ganhou casa e comida, e decidiu que não voltaria mais para sua vida na civilização. Deu de presente o "mostro" para os índios mais jovens da tribo, que ficavam se divertindo o dia inteiro, passeando sobre o "monstro" de um lado para o outro. Joel ensinou a eles que, no momento em que o "monstro" morresse, bastava pegar a "poção mágica" que estava no porta-malas e colocar na "boca" do "monstro" para que ele milagrosamente voltasse à vida.
 E assim realmente aconteceu. Após algum tempo, quando o combustível acabou, os índios viram que o "monstro" havia morrido, pois não se movia mais. Eles então se lembraram das instruções de Joel, abriram o porta-malas e pegaram o recipiente com a "poção mágica". Porém, quando abriram a tampa, veio aquele cheiro forte de gasolina. Os índios acharam que o líquido havia apodrecido. Jogaram fora aquele líquido fedido, foram até o rio, encheram o recipiente com água limpa e cristalina e colocaram na "boca" do "monstro". Obviamente o "monstro" nunca mais voltou à vida...

É interessante que damos risada desta história, mas na vida real nos comportamos exatamente como estes índios. Da mesma forma que os índios não conhecem nada sobre mecânica de automóveis, mas mesmo assim acharam que podiam tomar decisões sozinhos, nós também não conhecemos nada sobre o mundo espiritual, porém acabamos tomando decisões espirituais sozinhos, como se fossemos grandes conhecedores, sem consultar e escutar os ensinamentos e conselhos de rabinos com maior conhecimento. 
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Na Parashat desta semana, Vayakel (que literalmente significa "E reuniu"), a Torá novamente fala sobre a construção do Mishkan (Templo Móvel) e seus utensílios. Mas diferente da Parashá Terumá, que trouxe apenas os comandos de D'us a Moshé, esta Parashá descreve a construção na prática. Betzalel foi o escolhido para a construção do Mishkan e coordenou todos os serviços construtivos com perfeição, como está escrito: "E Betzalel ben Uri ben Hur, da Tribo de Yehudá, fez tudo o que D'us comandou a Moshé" (Shemot 38:22).

Porém, a linguagem utilizada neste versículo chama a atenção por um pequeno detalhe. Por que está escrito que Betzalel fez "o que D'us comandou a Moshé", e não "o que Moshé comandou a ele"? Responde Rashi (França, 1040 - 1105) que mesmo nas coisas que Moshé não falou para Betzalel, o ponto de vista de Betzalel estava de acordo com o que D'us havia revelado para Moshé no Monte Sinai. Rashi explica que Moshé havia entendido que a ordem da construção deveria ser os utensílios em primeiro lugar e somente depois o Mishkan, mas Betzalel falou que deveria ser o contrário, primeiro o Mishkan e somente depois os utensílios. Quando Moshé escutou as palavras de Betzalel, ele exclamou: "Exatamente assim como você disse eu escutei de D'us. Agora eu sei porque seu nome é Betzalel. Você esteve na sombra de D'us!" (O nome Betzalel vem das palavras "Betzel" (na sombra) e "E-l" (o Nome de D'us)). Isto significa que Betzalel havia usado seu intelecto e seus conhecimentos de Torá de uma maneira tão profunda que havia entendido exatamente como D'us havia planejando a construção do Mishkan. Betzalel havia atingido o nível de "Daat Torá", traduzido como "Conhecimento da Torá". Porém, a linguagem "Daat" significa mais do que apenas conhecimento. "Daat" também significa "conexão". Isto significa que alguém que alcança o nível de "Daat Torá" não apenas conhece a Torá, mas se conecta com a Torá de maneira que a Torá vira parte da sua forma de pensar e agir.
    Ensinam os nossos sábios: "Faça para você um rabino e adquira um amigo" (Pirkei Avót 1:6). O Pirkei Avót está nos explicando que, não importa o quão estudado ou quão grande e maduro seja uma pessoa, ela não pode viver uma vida de forma realmente produtiva e efetiva estando sozinha, sem ter alguém com quem se aconselhar. Para um completo e saudável desenvolvimento, a pessoa precisa destes dois tipos de relacionamento: ter um amigo e fazer um rabino.
    Fazer um rabino significa confiar em alguém a ponto de anular sua própria opinião diante da opinião de outra pessoa. E isto é baseado no fato de que fazer uma pergunta a alguém com "Daat Torá" não significa perguntar a opinião pessoal do rabino, e sim qual é a opinião da Torá, para saber qual é a vontade de D'us neste assunto. Nos círculos mais religiosos, é muito comum as pessoas fazerem perguntas a grandes rabinos em uma ampla variedade de assuntos, que nem sempre estão relacionadas ao cumprimento de Mitzvót. Por que as pessoas confiam em rabinos para pedir conselhos em áreas que aparentemente elas sabem mais do que os próprios rabinos?
    Uma das chaves para responder esta pergunta é a própria história de Purim. O Talmud (Meguilá 12b) nos ensina que houve uma disputa entre Mordechai, o líder espiritual do povo judeu no exílio, e o resto do povo. Achashverosh, o malvado rei Persa, convidou o povo judeu, junto com outras nações, para seu grandioso banquete. Os judeus sentiram que deveriam ir por motivos políticos, pois achavam que caso recusassem, estariam insultando Achashverosh e teriam que enfrentar sua fúria. Porém, Mordechai, o velho e antiquado rabino, aparentemente indo contra a lógica, proibiu o povo de ir ao banquete, por toda a falta de recato e imoralidade que certamente haveria naquela festa.
    O povo judeu não escutou as palavras de Mordechai. Argumentando que caso seguissem seus conselhos eles seriam prejudicados, os judeus foram ao banquete. E eis que realmente isto trouxe certa prosperidade ao povo judeu por algum tempo. Eles se viraram para Mordechai e disseram: "Nós estávamos certos e você estava errado. Graças a D'us que não escutamos seus conselhos". Até que Haman surgiu em cena e conseguiu muito poder. E novamente Mordechai se comportou de maneira oposta ao resto do povo. Ele não se curvava diante de Haman, deixando-o furioso. Mais uma vez os judeus se uniram contra Mordechai e disseram: "Você é um assassino! Se curve diante de Haman ou todos nós morreremos!". E eis que novamente eles estavam certos, pois motivado pelo seu ódio contra Mordechai, Haman bolou um plano maquiavélico para exterminar o povo judeu inteiro em um único dia.

No final das contas, quem estava certo? Mordechai, o homem velho e fora de moda, que só sabia ler livros velhos e desatualizados, ou o resto do povo, pessoas que conheciam muito bem os caminhos do mundo? De acordo com a lógica natural, o povo deveria ter se voltado contra Mordechai. Tudo o que eles haviam previsto aconteceu, eles estavam certos e Mordechai estava errado. O esperado seria uma rebelião seguida da expulsão de Mordechai. Mas, por algum motivo, eles voltaram atrás e, ao invés de expulsar Mordechai, eles disseram: "Rabino, nos diga o que fazer agora". E deste ato nasceu a salvação do povo judeu.
    Porém, o que fez o povo voltar atrás e passar a escutar Mordechai? Explica o Rav Boruch Leff que eles se arrependeram do erro que haviam cometido e começaram a entender a importância do "Daat Torá" de Mordechai. Eles perceberam que precisavam de uma salvação milagrosa, e a única maneira para conseguir isso seria se voltar para D'us, principalmente através dos Tzadikim (Justos) que estão mais próximos Dele.
    É somente através da lógica e dos direcionamentos da Torá que podemos trazer a salvação dos nossos problemas. Pensamos que enxergamos a realidade, mas não a vemos de verdade. O povo judeu achou que estava certo e Mordechai estava errado, mas de acordo com o Talmud (Meguilá 12a), o motivo do decreto espiritual de destruição do povo judeu, que se materializou através do plano de Haman, foi consequência do povo ter participado do banquete de Achashverosh, e não por motivos políticos. Se o povo tivesse escutado os conselhos de Mordechai desde o princípio, Haman nunca teria subido ao poder e nunca teria feito um decreto contra o povo judeu. Nossa lógica, que parece ser muito forte e bem fundamentada, é frequentemente influenciada por nossos preconceitos pessoais. Já os rabinos que atingiram um nível espiritual mais elevado, como Mordechai, que chegaram ao nível de "Daat Torá", conseguem se desvincular de seus preconceitos pessoais e podem acessar a verdadeira vontade de D'us.
  
Isto não significa que um rabino é infalível, que nunca erra. O melhor médico também está sujeito a erros, e isto não faz com que deixemos de buscar seus conselhos médicos em suas especialidades, pois seguir as orientações de um bom médico continua sendo a melhor prática na tentativa de curar doenças. D'us também quer que nos esforcemos para sempre tomar nossas decisões baseadas na vontade Dele. Ao nos aconselharmos com um rabino, apesar de serem pessoas de carne e osso, estamos fazendo a nossa parte no processo de decidir de acordo com a vontade de D'us. Não precisamos questionar os rabinos sobre o que fazer de comida no jantar ou qual cor de camiseta vestir, pois D'us nos deu um intelecto para podermos tomar decisões sozinhos. Mas quando se tratam de questões importantes, que afetam nossa vida de forma impactante, devemos pensar em termos do que D'us gostaria que fizéssemos neste momento. Por isso, fazer a pergunta a um rabino bem informado é o mais próximo que podemos chegar de perguntar algo diretamente para D'us.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 35:1-38:20, 1 Re 7:13-26