sexta-feira, 31 de julho de 2015

ENSINANDO PARA APRENDER - PARASHÁ VAETCHANAN 5775

Certa vez o Rav Avraham Yeshayahu Karelitz zt"l (Bielorrússia, 1878 - Israel, 1953), mais conhecido como Chazon Ish, foi fazer uma visita à Yeshivá de Ponovitz, que ficava na mesma cidade em que ele morava, Bnei Brak. Ele percebeu que havia novos estudantes na Yeshivá que estavam tendo muita dificuldade para acompanhar as aulas e se aprofundar nos estudos. O Chazon Ish sugeriu que os alunos mais velhos da Yeshivá, que já tinham um maior domínio do assunto estudado, dedicassem uma pequena parte do dia para estudar com os alunos mais novos. Os alunos mais velhos responderam que gostariam muito, mas que infelizmente não tinham tempo sobrando para isso, pois estavam extremamente ocupados com seu próprio estudo de Torá. Mas o Chazon Ish não desistiu. Ele pediu para que a seguinte mensagem fosse transmitida aos alunos mais velhos:

- Eu sei que vocês colocam Tefilin todos os dias. Mas como isto é possível, se é um ato que tira o tempo de estudo de Torá de vocês? A resposta é que vocês encontram tempo para colocar Tefilin todos os dias pois sabem que é uma Mitzvá da Torá. Porém, vocês estão desprezando uma Mitzvá que não é menos importante do que a Mitzvá de Tefilin: a Mitzvá de dedicar parte do tempo de vocês para ajudar os alunos mais novos com o estudo de Torá deles.

O Chazon Ish estava transmitindo aos alunos de Ponovitz que ensinar Torá aos outros deve ser visto como uma obrigação, com as mesmas rigorosidades que aplicamos a todas as outras Mitzvót da Torá. Por isso, o argumento de "não tenho tempo" torna-se algo completamente infundado e sem sentido. 

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Na Parashá desta semana, Vaetchanan, Moshé continuou seu discurso de despedida, relembrando muitos erros cometidos pelo povo judeu, inclusive o erro que o levou a ser castigado por D'us e não entrar na Terra de Israel. Depois disso a Parashá fala também sobre as cidades de refúgio, repete os 10 Mandamentos e traz o primeiro parágrafo do Shemá Israel, incluindo o famoso trecho "Escuta, Israel. Hashem é nosso D'us, Hashem é um" (Devarim 6:4).

Há algo interessante na continuação do Shemá Israel: "E que estas palavras que Eu ordeno hoje a vocês estejam sobre seus corações. E você deverá ensiná-las aos seus filhos, e deverá falar delas quando se sentar na sua casa, quando você andar no caminho, quando você se deitar e quando você se levantar" (Devarim 6:6,7). Nossos sábios explicam que esta é a fonte da Mitzvá de "Talmud Torá" (Estudo da Torá), a Mitzvá que é descrita como sendo equivalente a todas as outras Mitzvót juntas. Mas por que, surpreendentemente, a Mitzvá de estudar Torá não diz "você deve estudar", e sim "você deve ensinar"?

O Rav Avraham Shmuel Binyamin Sofer zt"l (Hungria, 1815 - 1871), mais conhecido como Ktav Sofer, explica que o versículo sim nos instrui a estudar a Torá, ao afirmar "vedibarta bam" (e deverá falar delas). Mas mesmo assim a dúvida continua, pois apesar do versículo estar nos instruindo a estudar Torá, isto é falado somente depois da instrução de ensiná-la. Como alguém pode ensinar algo que ainda não estudou? Por que a Torá inverteu a ordem? Ele responde que, ao inverter a ordem, a Torá nos ensina um fundamento muito importante da Mitzvá de "Talmud Torá": mesmo o estudo particular da pessoa deve ser feito com o propósito final de ensinar Torá aos outros. A fonte principal de "Talmud Torá" é "deverá ensiná-las" pois o propósito do nosso estudo de Torá é nos tornarmos pessoas capazes de transmiti-la aos outros.

Obviamente que estudar Torá não é apenas um meio para estarmos apto a ensiná-la aos outros. A pessoa precisa estudar Torá para conseguir construir seu relacionamento com D'us, pois a Torá é o nosso "Manual de instruções" espiritual. Apesar disso, fica claro através dos comentários do Ktav Sofer o quanto estudar Torá sem ensiná-la deixa um grande "vazio" no cumprimento da Mitzvá de "Talmud Torá". Baseado nisto, os nossos sábios ensinam: "Aquele que estuda para ensinar é dado a ele a oportunidade de estudar e ensinar" (Pirkei Avót 4:5). Isto significa que querer ensinar é um requisito essencial para o foco do nosso estudo, e aquele que apenas estuda e não ensina nunca chegará a ser completo em seu "Talmud Torá". É por isso que o versículo ressalta o "ensinar" antes do "estudar".
Há mais um detalhe no versículo que ensina outro aspecto da Mitzvá de "Talmud Torá". Normalmente o verbo utilizado para "ensinar" é "Lelamed", mas neste versículo o verbo utilizado é "Veshinantam". Rashi (França, 1040 - 1105) explica que a linguagem "veshinantam" implica em um maior nível de claridade no entendimento de algo, de maneira que caso alguém faça uma pergunta, a pessoa pode responder sem gaguejar. Daqui aprendemos que, quando uma pessoa estuda como uma preparação para ensinar, ela ganha um nível de entendimento e claridade muito maior. Como a pessoa sabe que será desafiada no seu entendimento e na sua explicação, isto serve como um incentivo para que ela estude com mais interesse e cuidado. É isto o que o Talmud quis transmitir ao afirmar: "Aprendi muita Torá dos meus professores, mais ainda dos meus amigos, e acima de tudo dos meus alunos" (Makót 10a).

Porém, poderíamos pensar que tudo isto se aplica apenas às situações nas quais nós também temos benefício direto do que estamos ensinando, como quando os alunos já conhecem Torá e nos deixarão mais "afiados" com suas perguntas e comentários. Mas explica o Rav Moshé Schreiber zt"l (Alemanha, 1762 - Eslováquia, 1839), mais conhecido como Chatam Sofer, que isto também é valido para aquele que abre mão do seu próprio crescimento pessoal em prol da espiritualidade dos outros. Aprendemos isto do comportamento de Avraham Avinu, que dedicou seu tempo e seus esforços para ensinar ateus ignorantes sobre a existência de D'us, ao invés de focar em seu próprio crescimento. Neste tipo de situação, apesar de parecer que a pessoa deixará de ganhar ao abrir mão do seu próprio crescimento, a verdade é que ocorre justamente o contrário. É óbvio que devemos nos esforçar, mas todo o conhecimento que adquirimos não é fruto do nosso esforço, e sim consequência da misericórdia de D'us, o Dono de todo o conhecimento. Quando Ele vê alguém se esforçando, tem misericórdia e dá para ele conhecimento e entendimento das coisas. Já aquele que abandona seus próprios interesses em prol dos outros recebe ainda mais misericórdia de D'us. Apesar de ter menos tempo para investir no seu próprio crescimento espiritual, D'us faz com que ele possa conseguir crescer em menos tempo e atingir níveis espirituais que vão além do entendimento lógico do ser humano.

Das palavras do Shemá aprendemos que ensinar Torá aos outros é parte essencial da Mitzvá de "Talmud Torá", e que aquele que ensina pode colher benefícios incalculáveis, diretos e indiretos. Como outras Mitzvót, ensinar Torá aos outros não é apenas um ato de Chessed (bondade), e sim uma obrigação. Muitos sábios de Torá, como o Rav Moshe Feinstein zt"l (Lituânia, 1895 - EUA, 1986), legislaram que, da mesma maneira que uma pessoa deve doar para pessoas necessitadas parte do dinheiro que recebe mensalmente, assim também todo aquele que tem recursos e aptidões está obrigado a doar parte do seu tempo para ajudar na espiritualidade dos outros.

Um último ponto interessante deste versículo do Shemá Israel é a linguagem "deverá ensiná-la aos seus filhos". Rashi explica que não se refere aos filhos biológicos, e sim aos alunos. Então por que a Torá não escreveu "deverá ensiná-la aos seus alunos"? Para ressaltar que há um paralelo muito forte entre ensinar Torá a um aluno e conceber um filho. Quando uma pessoa traz uma criança ao mundo, ela está dando a esta criança o incrível presente da vida. De maneira semelhante, quando uma pessoa ensina Torá para outra pessoa, está dando a ela a oportunidade de alcançar a vida eterna. Portanto, ao ensinar Torá, a pessoa alcança o mesmo potencial que tem os pais: o potencial de dar vida. De acordo com o Talmud (Baba Metsia 33a), ensinar Torá para uma pessoa é considerado um Chessed ainda maior do que concebê-la, pois os pais trazem os filhos para o Olam Hazé (mundo material), enquanto o professor de Torá tem o potencial de, ao ensinar sabedoria e Torá ao próximo, trazê-lo para o Olam Habá (Mundo Vindouro), para a vida eterna.

Para podermos compartilhar da nossa espiritualidade com os outros não é necessário ser rabino. Convidar uma pessoa afastada para experimentar uma refeição de Shabat, compartilhar com os outros alguma ideia bonita que escutamos em uma aula de Torá ou dedicar parte do nosso tempo para ensinar pessoas a cumprir Mitzvót são apenas alguns exemplos de como podemos dedicar parte do nosso tempo para ajudar outras pessoas.

Quando estivermos procurando algum bom ato para fazer, algo que possa ajudar os outros, não devemos esquecer que ensinar Torá para alguém e compartilhar da nossa espiritualidade é uma das maiores e mais completas bondades que um ser humano pode fazer na vida.

SHABAT SHALOM                                         

Rav Efraim Birbojm
Dt. 3:23·7:11, Is. 40:1-26

sábado, 25 de julho de 2015

JULGANDO COM JUSTIÇA - PARASHÁ DEVARIM 5775

 
Avraham, um jovem estudante de Torá, mudou-se para uma Yeshivá de Israel onde iria estudar. Logo no primeiro dia, na reza da manhã, ele percebeu que um dos alunos da Yeshivá começou a tirar seu Tefilin antes do final da reza e depois correu em direção ao refeitório. Avraham ficou irritado com aquela demonstração de descaso com a Tefilá (reza). Ficou imaginando que o rapaz era alguém sem autocontrole, cujo desejo pela comida não o permitia esperar até o final da Tefilá, como os outros alunos.

Avraham terminou sua Tefilá, pensando em como ele era Tzadik (Justo) e como aquele outro aluno era egoísta e descontrolado. Ele tirou seu Tefilin e foi para o refeitório tomar o seu café da manhã. Foi então que Avraham viu o rapaz que havia saído antes do final da Tefilá. Ele estava dentro da cozinha, vestindo um avental e voluntariamente ajudando a preparar o café da manhã dos outros alunos da Yeshivá. Depois Avraham soube que todos os dias aquele rapaz terminava sua Tefilá correndo, justamente para poder fazer Chessed (bondade) com os outros alunos.

Avraham entendeu que havia julgado aquele rapaz de forma precipitada. Pois na verdade, o rapaz era uma pessoa muito altruísta, enquanto na verdade o verdadeiro egoísta era ele mesmo. 
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Na Parashá desta semana, Devarim, Moshé começou a relembrar muitos dos momentos vividos pelo povo judeu durante os 40 anos no deserto, e criticou duramente o povo por muitos dos graves erros cometidos. E logo depois do Shabat começa Tishá Be Av, o dia mais triste do ano, no qual choramos ao relembrar as grandes tragédias que recaíram sobre o povo judeu durante a nossa história, como a destruição dos dois Templos Sagrados e a expulsão dos judeus da Espanha e Portugal em 1492. Em geral, Tishá Be Av cai junto com a Parashá Devarim. Qual é a conexão entre os dois?

Um dos pontos que Moshé relembrou foi como era pesado para ele julgar sozinho todo o povo, e a solução sugerida por seu sogro, Itró, de apontar pessoas retas e íntegras do povo como juízes, que o auxiliariam nos casos mais simples. Moshé também relembrou as instruções que ele passou aos juízes escolhidos: "Escutem entre os seus irmãos, e julguem com justiça" (Devarim 1:16). Mas estas palavras de Moshé precisam de explicação, pois por que dizer aos juízes que eles deviam escutar as partes envolvidas antes de dar o veredicto final, se era algo óbvio? Além disso, por que o versículo diz "escutem entre os seus irmãos" e não simplesmente "escutem seus irmãos"? E finalmente, por que era necessário Moshé ressaltar aos juízes que eles deveriam sempre julgar com justiça e retidão, se o papel de um juiz é justamente ser alguém justo e reto para definir quem tem a razão?

Rashi (França, 1040 - 1105) explica que Moshé estava exigindo dos juízes que eles fossem extremamente cuidadosos em cada julgamento, e mesmo que vários casos similares já tivessem sido julgados por aquele tribunal, eles não deveriam julgar de forma precipitada. Esta é a fonte da primeira Mishá do Pirkei Avót (Ética dos Patriarcas): "Sejam cautelosos no julgamento" (1:1). Aparentemente esta Mishná nos ensina que cada situação tem nuances que podem afetar e resultado do julgamento, e por isso cada caso deve ser analisado com cuidado.

Apesar deste ensinamento de Moshé também se aplicar para casos criminais, ele está escrito em um contexto de casos civis, pois foi utilizada a linguagem "entre os seus irmãos", isto é, em casos onde há algum tipo de disputa. Porém, o ensinamento de "sejam cautelosos no julgamento" deveria ter sido ensinado em um caso criminal. Um veredicto equivocado em um caso civil, como a disputa por um bem material, pode ser facilmente revertido se o Beit Din (Tribunal Rabínico) identificar o erro. Mas um erro do Beit Din no julgamento de um crime pode ter consequências muito mais graves e, portanto, neste caso o Beit Din deveria ser muito mais cuidadoso. Então por que o ensinamento é em um contexto civil e não criminal? E, além disso, se é tão importante ser uma pessoa ponderada e cautelosa nos nossos atos, por que a Torá não aplica esta exigência também a outros profissionais, como os médicos, cuja falta de cautela pode resultar na perda de uma vida?

Explica o Rav Yohanan Zweig que, no mundo empresarial, a grande maioria das disputas civis não ocorre entre indivíduos que sempre mantiveram um relacionamento conflituoso, pois neste caso as duas partes tentam deixar bem claro quais serão as medidas tomadas caso surjam situações indesejadas e tomam as precauções necessárias para evitar maus entendidos. As disputas costumam ocorrer justamente quando há um elemento de confiança entre as partes, e por causa desta confiança, muitos detalhes técnicos, como recibos e contratos, acabam sendo deixados de lado, abrindo brechas para desentendimentos e dúvidas.
Quando a confiança inicial é quebrada e inicia-se uma disputa, cada uma das partes tem uma percepção subjetiva da realidade, e por isso cada um percebe os fatos de acordo com as suas próprias predisposições e tendências. Nos casos em que esta disputa não pode ser resolvida sem a ajuda do Beit Din, então os juízes devem estar cientes que cada pessoa está aderindo às suas percepções distorcidas e está completamente relutante em enxergar a percepção da outra parte envolvida, fato que dificulta a reconciliação. E pelo fato de nenhuma das duas percepções representarem a realidade objetiva, então é responsabilidade dos juízes verificar e encontrar a verdade objetiva a partir das duas opiniões subjetivas dos litigantes.

Este conceito nos ajuda a entender um intrigante ensinamento dos nossos sábios: "Quando os litigantes estiverem diante de você, considere ambos como culpados, mas quando eles partirem de você, considere ambos como inocentes" (Pirkei Avót 1:8). O Pirkei Avót não está indo contra o conceito de que a pessoa deve ser considerada inocente até que provem a sua culpa. Mas no momento da argumentação, o juiz deve ver os litigantes como se fossem culpados, pois certamente cada um deles está apresentando a sua percepção distorcida dos fatos, e é obrigação do juiz não acreditar cegamente nas palavras de nenhum dos litigantes sem verificá-las bem. É justamente isto o que Moshé estava transmitindo aos juízes. Um juiz tem que tomar muito cuidado para julgar de maneira correta. Nunca dois casos são iguais, pois cada pessoa entende as coisas de acordo com a sua própria perspectiva, e determinar a verdade objetiva a partir das argumentações subjetivas dos litigantes exige muita cautela. Por isso os casos civis, onde há disputas entre dois litigantes, exige mais cuidado até mesmo do que casos criminais.

Por que a Torá se preocupou somente em ensinar este conceito aos juízes e não aos médicos? Pois ao contrário do juiz, o maior colaborador do médico para chegar a um diagnóstico correto e preciso é o próprio paciente. Baseado nas reclamações do paciente, nos sintomas e nas dores que ele relata, o médico consegue chegar ao diagnóstico da enfermidade. Já os litigantes têm um relacionamento conflituoso com o juiz, pois o juiz está buscando a verdade objetiva, enquanto os litigantes estão oferecendo uma percepção subjetiva da realidade. Por isso é um grande feito quando um juiz consegue ter sucesso e se proteger das enganações dos litigantes. É por causa desta grande dificuldade que a Torá sentiu a necessidade de ordenar aos juízes que eles se protejam, na busca pela verdade, contra as enganações e visões subjetivas do caso.

Qual a conexão com Tishá Be Av? Esquecemos que não apenas os juízes fazem julgamentos. Cada um de nós, no nosso dia a dia, também está constantemente julgando as outras pessoas. E da mesma maneira que os juízes devem ser cautelosos e ponderados nos julgamentos de disputas civis ou na elucidação de casos criminais, nós também devemos ser muito cuidadosos com a maneira como julgamos os outros. Normalmente somos muito apressados em julgar e rotular as pessoas de maneira negativa, por pequenas atitudes que elas fizeram que pareciam erradas aos nossos olhos.

Ensinam os nossos sábios que o Primeiro Templo Sagrado foi destruído por que o povo judeu estava praticando as três transgressões mais graves: idolatria, relações ilícitas e assassinato. Mas após a destruição do Templo e o exílio do povo judeu, eles se arrependeram e consertaram seus graves erros, e em 70 anos o Templo foi reconstruído. Porém, o Segundo Templo Sagrado foi destruído pelo ódio gratuito e por causa do Lashon Hará (maledicência) que havia dentro do povo judeu. Infelizmente já se passaram mais de dois mil anos e não tivemos ainda o mérito de reconstruir o Templo Sagrado. Isto significa que, mesmo após tanto tempo, ainda não conseguimos consertar estes erros tão graves.

Por que é tão difícil não falar Lashon Hará? Pois o Lashon Hará é uma consequência direta de não julgarmos as pessoas de forma positiva e favorável. Falamos Lashon Hará porque consideramos que nós estamos sempre certos e aqueles que discordam de nós estão sempre errados. Falamos Lashon Hará pois consideramos que a nossa forma de viver é a perfeita e ideal, e portanto todo aquele que é mais rigoroso do que nós é visto como um fanático, enquanto aquele que é menos rigoroso do que nós é desleixado. Falamos Lashon Hará pois não damos aos outros o benefício da dúvida, da mesma maneira que gostaríamos que os outros dessem quando nós cometemos algum erro. Por exemplo, quando alguém chega atrasado a uma reunião, imediatamente é visto como um irresponsável, enquanto quando nós chegamos atrasados, esperamos que as pessoas sejam compreensivas e entendam que o trânsito estava caótico.

Pensamos que tragédias somente podem ocorrer quando juízes erram nos julgamentos de casos criminais. Mas Tishá Be Av é um lembrete constante de que os erros de julgamento no nosso dia a dia podem ser ainda mais trágicos.

SHABAT SHALOM                                          

Rav Efraim Birbojm
DEUTERONÔMIO 1:1-3:22

APRECIE O QUE VOCÊ TEM - PARASHIÓT MATÓT E MASSEI 5775

 
Certa vez Fernando caminhava pela praia, em uma noite de lua cheia. Ele era um homem inconformado com as dificuldades que passava na vida. Não estava feliz no trabalho, não estava satisfeito com seu casamento e não se sentia confortável com sua situação financeira sempre apertada. Ele ia caminhando e pensando: "Se eu tivesse uma casa um pouco maior, um trabalho menos estafante, uma esposa mais compreensiva, aí sim eu seria feliz...".

Perdido em seus pensamentos, Fernando não viu uma sacola cheia de pedrinhas que estava no chão e acabou tropeçando. Imediatamente começou a amaldiçoar aquele que havia deixado a sacola jogada no meio da praia. Ele pegou a sacola na mão e começou a jogar as pedrinhas no mar, uma a uma. Mas ele não as jogava aleatoriamente. Cada vez que ele dizia "Eu seria feliz se tivesse...", ele agarrava uma pedrinha e atirava no mar. Assim ele foi repetindo aquele ato por um bom tempo, até que somente restou uma única pedrinha na sacola.

Ao chegar em casa, Fernando acendeu a luz e olhou aquela pedrinha que havia restado com um pouco mais de atenção. Foi então que ele percebeu que aquelas não eram simples pedrinhas, eram diamantes muito valiosos. Fernando ficou desesperado. Quantos diamantes valiosos ele havia jogado ao mar, sem perceber? Por não ter parado para prestar atenção, todos os sonhos da sua vida haviam passado pelas suas mãos e haviam sido atirados ao mar...

Assim são as pessoas, elas jogam fora seus preciosos tesouros por estarem esperando aquilo que acreditam ser perfeito, ou sonhando e desejando o que não têm, sem dar valor ao que elas têm perto delas. Se olhassem ao redor, parando para observar, perceberiam quão afortunadas são.

Sua felicidade está muito perto de você. Cada pedrinha deve ser observada com cuidado, pois pode ser um diamante valioso. Cada um de nossos dias pode ser considerado um diamante precioso, valioso e insubstituível. Está em nossas mãos aproveitá-lo, ou lançá-lo ao mar do esquecimento para nunca mais recuperá-lo.

E você, o que anda fazendo com suas pedrinhas? 
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Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Matót e Massei, que descrevem eventos ocorridos com o povo judeu durante os preparativos finais para a entrada na Terra de Israel. A Parashá Matót descreve um acontecimento que é um pouco difícil de ser entendido. Como os integrantes das tribos de Reuven e Gad tinham uma grande abundância de rebanhos, muito mais do que as outras tribos, eles imaginaram que não haveria pastos suficientes em Israel para todos os animais. Então eles propuseram a Moshé que, ao invés de receberem uma porção na Terra de  Israel, preferiam ficar fora, na porção oriental do Rio Jordão, um vale muito fértil e com abundantes pastos, um local excelente para criação de animais.

Moshé não viu o pedido com bons olhos e reagiu com uma forte crítica aos membros das tribos de Reuven e Gad. Mas o que causou esta fúria em Moshé não foi o fato de terem escolhido morar fora da Terra de Israel, e sim a forma como eles se expressaram. Ao fazer o pedido, eles simplesmente ignoraram as necessidades dos seus próprios filhos e mencionaram apenas as necessidades dos seus animais, como está escrito "E vieram os descendentes de Gad e os descendentes de Reuven e falaram com Moshe, com Elazar HaCohen e com os príncipes da comunidades, e disseram... esta terra é para gado, e seus servos têm gado" (Bamidbar 32:2,4).

Após a bronca, aparentemente os líderes de Reuven e Gad entenderam o recado de Moshé, mas não completamente. Eles novamente se aproximaram de Moshé e reapresentaram seu pedido. Desta vez eles se lembraram de mencionar seus filhos, mas ainda assim somente depois de terem mencionado seus animais, como está escrito: "Eles se aproximaram dele (Moshé) e disseram: "Vamos construir aqui currais para o nosso gado e cidades para as nossas crianças" (Bamidbar 32:16). Novamente Moshé não gostou da inversão de prioridades, por eles terem colocado seus bens antes de suas famílias, e novamente os criticou. Finalmente eles aprenderam a lição e colocaram as coisas em sua devida ordem, isto é, primeiro a família e somente depois os negócios, como está escrito "Nossos filhos e nossas mulheres, nossos rebanhos e nossos animais permanecerão lá, nas cidades de Guilad" (Bamidbar 32:26).

As tribos de Reuven e Gad, e metade da tribo de Menashé, que posteriormente se juntou a eles na decisão de morar fora da Terra de Israel, parecem dar mais valor para suas posses do que para sua espiritualidade e suas famílias. O que poderia explicar esta visão tão distorcida das coisas?

A resposta está em um famoso questionamento: "Quem é rico?". Que tipo de resposta daríamos para esta pergunta? Na nossa concepção, o mais rico é aquele que tem o maior saldo bancário. Como a pergunta é quantitativa, então esperaríamos uma resposta também quantitativa. Porém, a Mishná (parte da Torá Oral) dá uma resposta diferente: "Quem é rico? Aquele que está contente com sua porção" (Pirkei Avót 4:1), isto é, rico é aquele que está feliz com sua vida.

Apesar das aparências, isto não é um ensinamento "conformista", de que devemos desejar uma vida medíocre e sem crescimento. A Mishná está nos ensinando que devemos nos esforçar para melhorar nossas vidas de todas as maneiras possíveis, mas devemos saber que, em qualquer nível de conquista que tenhamos alcançado, a chave para possuir isto de verdade é apreciá-lo. A pessoa que é rica de verdade é aquela que desenvolve uma atitude que o faz se sentir abençoado, independente das circunstâncias atuais de sua vida, e que tem a certeza de que absolutamente nada lhe falta.

Todos nós lembramos ter desejado "algo" na vida que, caso fosse alcançado, nos levaria a um estado de felicidade permanente. Pode ter sido um novo trabalho, uma nova casa, um novo carro ou qualquer outra coisa que teoricamente mudaria nossa vida para sempre. Mas o que ocorreu quando alcançamos este desejo? Percebemos que, após um rápido momento de "brilho" inicial, nada mudou de verdade em nossas vidas. Porém, ao invés de aprender com esta lição, normalmente passamos para a próxima fantasia, para a próxima ilusão de algo que vai realmente mudar nossas vidas.

Mudar a nossa vida de forma permanente tem muito mais a ver com gostar do que nós temos do que ter o que nós gostamos. Apreciação é como um músculo, precisa ser trabalhado para se desenvolver e se fortalecer. Se uma pessoa tem apenas 10 mil e realmente aprecia e se sente abençoado por ter este valor, enquanto outra pessoa tem 10 milhões mas não aprecia por estar focado nos 100 milhões que seu vizinho tem, então quem é mais rico, aquele que tem 10 mil ou aquele que tem 10 milhões? O ponto em comum entre todas as pessoas que são felizes é que elas desenvolveram uma atitude de apreciar tudo o que têm na vida e se sentem abençoadas. E o contrário também é válido, isto é, o ponto em comum entre as pessoas que estão sempre tristes é que, independente do que elas têm, elas não sabem apreciar as bênçãos que receberam na vida.

Este é um conceito incrível, de que ser verdadeiramente rico não é determinado pelos padrões ditados pela nossa sociedade. Riqueza é algo disponível para todos, tanto para os ricos quanto para os pobres. Ser rico não depende de ninguém, depende apenas de nós mesmos, pois é uma questão de atitude. Se a pessoa desenvolve esta atitude positiva, todos os bens materiais que ela adquire servem para aumentar seu prazer. Mas se a pessoa não desenvolve esta atitude, nenhuma quantidade de bens será suficiente para fazê-la se sentir rica. A falta de apreciação a levará a uma busca incessante de níveis maiores de aquisição material, que nunca terá fim e nunca a deixará satisfeita de verdade.

Este conceito talvez explique a visão distorcida de Reuven, Gad e Menashé. De acordo com o Rav Simcha Barnett, há um ponto em comum entre estas tribos: as três eram descendentes de primogênitos. Reuven era o primogênito dentre todos os filhos de Yaacov; Gad era o primogênito de Zilpá, uma das esposas de Yaacov; e Menashé era o primogênito de Yossef. De acordo com o judaísmo, o primogênito carrega um grau de responsabilidade maior do que seus irmãos. Formalmente, este papel de liderança se materializava nos serviços do Templo Sagrado e no reinado do povo judeu, papéis que deveriam ser exercidos pelos primogênitos.

Porém, há outro ponto em comum entre estas tribos: elas são descendentes de primogênitos que perderam a sua liderança. Por causa da impulsividade de Reuven, que trocou a cama de seu pai de lugar, ele perdeu o reinado, que passou para Yehudá. Já seus descendentes perderam o sacerdócio para a tribo de Levi por terem participado da terrível transgressão do bezerro de ouro. Gad, que também era primogênito, provavelmente foi indiretamente incluído nos infortúnios de Reuven. E Menashé foi "deixado de lado" por seu avô Yaacov, que ao dar suas Brachót, deu preferência ao seu irmão mais novo, Efraim. Portanto, os três esperavam receber privilégios especiais e cargos elevados dentro do povo judeu, mas foram "derrubados" destes papéis de destaque.

É possível que eles esperassem receber algo a mais da vida. Eles contavam com os cargos elevados e com a grandeza que receberiam. Quando a pessoa se sente desta maneira, como se a vida tivesse uma "dívida" com ela, ela se sente amarga caso não receba o que esperava. E mesmo que ela receba, também não sabe valorizar, pois já conta com aquilo. Por exemplo, se uma pessoa empresta a um amigo uma nota de 100 reais, ela não se alegra quando recebe o dinheiro de volta, pois já estava contando com ele. Mas se a mesma pessoa recebesse de presente uma nota de 100 reais, apreciaria seu presente e se alegraria com ele. Da mesma maneira, quando alguém acha que as coisas certamente virão para ele dificilmente se sentirá satisfeito e estará sempre desejando mais e mais. Talvez isto explique o porquê de seus descendentes, as tribos de Reuven, Gad e Menashé, terem sido tão atraídas pelas suas posses materiais, a ponto de dar mais importância aos seus bens do que aos seus familiares e às suas metas espirituais.

Portanto, a chave para saber apreciar a vida é mudar a nossa atitude e passar a olhar tudo como se fosse um presente. Quando achamos que merecemos as coisas, não sabemos apreciar quando elas surgem em nossas vidas. Então o ideal é viver com o conceito de que "não merecemos nada". Se percebêssemos que nossa vida está repleta de bênçãos que nós não fizemos nada para merecer, como o nosso corpo perfeito, nossa inteligência, nossos dons naturais e nossos familiares, então saberíamos reconhecer tudo o que temos de bom. É isto o que o Pirkei Avót está nos ensinando: se queremos ser ricos de verdade e felizes, então a parte mais importante para isso é saber apreciar o que temos. Somente assim as pessoas conseguirão aproveitar as coisas que elas recebem nesta vida maravilhosa. 

SHABAT SHALOM                                          

Rav Efraim Birbojm
Nm. 30:1- 32:42,
Nm. 33:1-36:13
 
 

sábado, 11 de julho de 2015

ACIMA DAS MÁS INFLUÊNCIAS - PARASHÁ PINCHÁS 5775

"Reuven estava pacientemente esperando na longa fila do check-in no aeroporto. De repente, um homem simplesmente furou a fila, entrou na sua frente e ficou tranquilamente lendo um livro, como se nada tivesse acontecido. Reuven ficou extremamente irritado com aquele descaramento. Ele já estava há um bom tempo esperando e aquele homem entra no meio da fila!

Reuven teve vontade de gritar com ele, de fazer um enorme escândalo e expulsá-lo da fila. Mas decidiu trabalhar seu autocontrole e, apesar de estar com o sangue fervendo de raiva e indignação, decidiu aguentar e não falar nada. Sabia que ninguém ganha nada sendo malandro.

Porém, o teste mais difícil de Reuven ainda estava por vir. Quando chegou a vez daquele homem descarado se dirigir ao guichê, Reuven escutou o funcionário da companhia aérea falar em alto e bom som: "O senhor pegou o último assento livre do avião". O homem abriu um sorriso, e em sua cabeça certamente estava passando a ideia de o quanto havia valido a pena ter furado a fila. Reuven não estava assim tão contente. Sua irritação era visível, e a vontade que ele tinha era de pular no pescoço daquele sujeito e lhe dar uns bons tapas na cara para ensinar-lhe uma lição. Mas novamente Reuven se controlou e conseguiu manter a calma. Foi então que Reuven escutou o funcionário da companhia aérea chamando-o. Quando aproximou-se do guichê, o funcionário disse:

- Senhor, o seu voo está lotado e os assentos comuns terminaram. Por isso, estamos colocando o senhor na primeira classe, sem nenhum custo extra. Boa viagem". (História Real)

O desafio de ser honesto em um mundo tão desonesto é muito grande. Mas isto faz com que cada bom ato que fazemos se torne ainda mais especial e tenha uma recompensa maior. E acima de tudo precisamos manter a calma nestes momentos, pois existe "Hashgachá Pratid" (Supervisão Divina particular), e nenhuma malandragem terá um benefício real no final. 

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A Parashá desta semana, Pinchás, traz mais uma contagem do povo judeu. Logo depois a Torá descreve o incidente das cinco filhas de Tzlofechad. Eram cinco mulheres Tzadikót (justas), filhas de um homem que havia morrido no deserto sem deixar filhos homens. A Torá descreve que elas se levantaram e foram reclamar com Moshé, e pediram uma porção na Terra de Israel. Mas por que elas estavam reclamando, se todo o povo estava indo para Israel? E qual a conexão entre a contagem do povo e a reclamação das filhas de Tzelofechad?

De acordo com o Rav Avraham ben Meir zt"l (Espanha, 1092 - 1167), mais conhecido como Ibn Ezra, a Terra de Israel seria dividida entre as tribos, e cada família receberia uma terra proporcional ao seu número de integrantes. Esta contagem do povo foi feita no final dos 40 anos de permanência no deserto, quando a entrada na Terra de Israel já estava iminente, pois estava relacionada com a divisão da terra. Como as filhas de Tzelofechad perceberam que apenas os homens haviam sido contados, elas entenderam que ficariam sem nenhuma porção. O amor delas por Israel era tão grande que elas se levantaram para reclamar com Moshé, como está escrito: "E se aproximaram as filhas de Tzlofechad... e pararam diante de Moshé e de Elazar HaCohen, e diante dos líderes e de todo o povo... e disseram: 'Nosso pai morreu no deserto... e ele não tinha filhos homens... nos dê uma parte entre os irmãos do nosso pai' " (Bamidbar 27,1-4).

Apesar de várias reclamações do povo judeu terem terminado de maneira trágica, com a morte dos reclamões, desta vez aconteceu justamente o contrário. Não apenas D'us concordou com a reclamação das filhas de Tzelofechad, dando a elas uma porção na Terra de Israel, mas também pelo mérito delas as leis de herança foram imediatamente ensinadas, e o nome destas cinco Tzadikót ficou gravado para sempre na Torá.

Mas desta explicação fica uma grande dúvida: o que as filhas de Tzelofechad fizeram para meritar algo tão grande? Afinal, o que há de especial em querer um pedaço de terra em Israel? Atualmente há milhares de judeus do mundo inteiro que sonham em voltar para Israel. Alguns vão ainda mais longe e abandonam toda a comodidade de suas vidas para efetivamente viver em Israel. Portanto, por que o ato delas foi considerado por D'us algo tão elevado?

A pergunta fica ainda mais difícil de acordo com um interessante Midrash (parte da Torá Oral), que afirma que toda pessoa correta que se levanta em uma geração que não é correta merita receber a recompensa de toda a geração. O Midrash traz alguns exemplos que já ocorreram durante a história da humanidade, como Noach (Noé), que foi contra sua geração na época do dilúvio e recebeu a recompensa de toda sua geração; Avraham Avinu, que foi contra sua geração na época da Torre de Babel e recebeu a recompensa de toda sua geração; e Lót, que foi contra as pessoas malvadas da cidade de Sdom (Sodoma) e recebeu a recompensa de toda a cidade. O Midrash termina citando as filhas de Tzelofechad, que também se levantaram contra a geração do deserto e meritaram receber a recompensa de toda aquela geração. Mas se o ato ao qual o Midrash se refere é a reclamação por uma porção na Terra de Israel, o que isto tem de tão especial para que elas meritassem receber a recompensa de toda a geração?

Encontramos a resposta ao prestarmos atenção em um pequeno detalhe, mas que faz muita diferença. Em que momento as filhas de Tzelofechad reclamaram com Moshé que queriam uma porção na Terra de Israel? Não foi quando as coisas estavam fáceis ou quando havia incentivos e ajuda financeira para quem quisesse morar em Israel. Ao contrário, o ato delas foi logo depois do povo judeu ter reclamado e dito: "Vamos fazer um líder e voltar para o Egito" (Bamidbar 14:4). O povo estava cansado de tantos anos de viagens no deserto, após muitos castigos por causa de erros cometidos pelo povo. Eles se sentiam fracassados e estavam sem vontade de continuar a jornada. Preferiam voltar ao Egito, mesmo que isto significasse voltar para a escravidão. Era um sentimento negativo contagiante, que contaminou praticamente todo o povo.

Explica o Rav Mordechai Ilan zt"l (Polônia, 1917 - Israel, 1981) que foi neste contexto que se levantaram as filhas de Tzelofechad contra toda a geração. Elas nadaram contra a correnteza turva que arrastava as pessoas para longe da vontade de D'us. A forma firme como elas se levantaram contra a tendência de todo o povo expressa a confiança plena delas de que, apesar das dificuldades, o correto era sempre seguir a vontade de D'us. Indo contra o desânimo generalizado, as filhas de Tzelofechad se levantaram com uma incrível Emuná (fé) de que D'us estava levando o povo para uma terra muito boa.

Esta atitude das filhas de Tzelofechad foi um verdadeiro "tapa na cara" do resto do povo, e elas se tornaram um modelo para a geração inteira. As pessoas pararam para refletir e perceberam como era absurdo que eles, que já tinham uma porção garantida na Terra de Israel, estavam desprezando aquele presente maravilhoso de D'us, enquanto as filhas de Tzelofechad estavam brigando por uma porção em Israel. Isto deu um novo ânimo para o resto do povo, e por isso a recompensa que elas receberam foi tão grande.

Deste evento aprendemos um fundamento espiritual muito importante. Os atos que fazemos na vida não são julgados e valorizados apenas pela sua própria essência, mas também de acordo com o nível da geração, o momento, o local e o ambiente. Nossos atos podem mudar radicalmente de acordo com estes fatores, e mesmo um ato que passaria despercebido espiritualmente em certo momento pode trazer muitos méritos em outro momento. Portanto, uma pessoa que consegue se levantar contra uma geração inteira, alguém capaz de dizer "não" à opinião geral prevalecente, automaticamente eleva muito a qualidade do seu ato. É o que a Torá nos ensina quando ressalta que "Noach era um Tzadik, um homem correto em sua geração" (Bereshit 6:9). Por que "em sua geração"? Pois comparado com Avraham, provavelmente Noach não teria sido nada, mas em sua geração, uma geração muito baixa, seus bons atos brilharam com muito mais intensidade.

Este é certamente o desafio da nossa geração. Normalmente as pessoas justificam seus maus atos com a famosa expressão "mas todo mundo também faz assim". Porém, o fato de muitas pessoas fazerem o que é errado não transforma o ato em algo correto. Ao contrário, o fato de muitas pessoas fazerem o que é errado se torna uma grande oportunidade para nos transformarmos em um modelo de boa conduta. Ser honesto já é uma importante Mitzvá, mas ela fica ainda mais especial quando é feita mesmo em um ambiente onde os governantes são corruptos, e as pessoas que criticam os governantes também não se importam em enganar os outros nos pequenos atos do dia-a-dia. Devolver troco a mais, pagar os funcionários no dia certo, não mentir a idade dos filhos para obter desconto e nunca furar filas nem andar no acostamento da estrada lotada são alguns poucos exemplos das oportunidades que temos de nos tornarmos modelos de honestidade em uma geração tão desonesta.

SHABAT SHALOM                                          

Rav Efraim Birbojm
Nm. 25:10-29:40, 1 Rs. 18:46-19:21

segunda-feira, 6 de julho de 2015

ELEVANDO O MUNDANO - PARASHÁ BALAK 5775

Era uma vez duas vizinhas, dona Miriam e dona Rosa, que viviam em pé de guerra. Não podiam se encontrar na rua que era briga na certa. Depois de um tempo, dona Miriam se arrependeu de tantas brigas e resolveu fazer as pazes com dona Rosa. Ao se encontrarem na rua, muito humildemente, dona Miriam falou:

- Querida dona Rosa, já estamos nessa desavença há anos, e sem nenhum motivo verdadeiro. Estou propondo que façamos as pazes e vivamos como duas boas e velhas amigas.

Na hora, a dona Rosa estranhou a atitude da velha rival e disse que iria pensar no caso. No caminho, pensamentos de desconfiança começaram a vir em sua cabeça. Será que a dona Miriam no fundo estava querendo aprontar alguma coisa? Como a dona Rosa não queria ficar por baixo, decidiu mandar para a dona Miriam um "presente". Chegando em casa, preparou uma bela cesta de presentes, cobriu-a com um lindo papel, e encheu-a de esterco de vaca. Ela ficou a tarde inteira rindo sozinha, imaginando a cara da dona Miriam ao receber aquele maravilhoso "presente". Mandou a empregada levar o presente à casa da rival, com um bilhete: "Aceito sua proposta de paz. Para selarmos nosso compromisso, envio esse lindo presente".

Quando dona Miriam abriu o pacote recebido, seu sorriso se transformou em espanto. Não conseguia entender porque a dona Rosa havia mandado aquele "presente". Ela estava tentando fazer as pazes com tanto esforço, por que sua vizinha continuava se comportado de maneira tão rude?

Alguns dias depois, dona Rosa recebeu uma linda cesta de presentes, coberta com um belo papel. Se preparou, achando que era a vingança daquela vizinha asquerosa. Ficou com medo de abrir o pacote, imaginando o que ela poderia ter aprontado. Mas em certo momento a curiosidade foi mais forte que o medo, e ela abriu. Para sua surpresa, viu um lindo arranjo das mais belas flores, junto com um cartão que trazia a seguinte mensagem: "Estas flores são o que eu te ofereço em prova da minha amizade. Foram cultivadas com o esterco que você me enviou, e que proporcionou excelente adubo para o meu jardim. Afinal, querida vizinha, cada um dá o que tem em abundância em sua vida".

As coisas mais mundanas podem ser utilizadas de uma maneira negativa, ou podem ser canalizadas para trazer coisas boas, para nós e para os outros.
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Nesta semana lemos a Parashá Balak, que nos descreve os maus atos de um dos maiores odiadores do povo judeu: o profeta Bilaam. Ele tinha um enorme poder espiritual e conseguia amaldiçoar as pessoas, de indivíduos a povos inteiros, e utilizava este "dom" para ganhar dinheiro e honra. Balak, o rei do povo de Moav, apavorado com o avanço do povo judeu e suas vitórias esmagadoras, contratou Bilaam para amaldiçoar o povo judeu. Apesar de D'us ter proibido Bilaam de se juntar a Balak com a intenção de prejudicar o povo judeu, Bilaam interpretou as palavras de D'us da maneira como lhe convinha, e por três vezes tentou amaldiçoar os judeus, mas foi impedido por D'us, que os protegeu e transformou as maldições em Brachót (bençãos).

Uma das Brachót que acabaram saindo da boca de Bilaam foi: "Quem contou o pó de Yaacov?" (Bamidbar 23:10). O que significam estas palavras? Que tipo de Brachá Bilaam estava dando ao povo judeu? Explica Rashi (França, 1040 - 1105), citando um Midrash (parte da Torá Oral), que as palavras de Bilaam podem ser entendidas como se ele estivesse dizendo: "Quem pode contar as Mitzvót agrícolas que o povo judeu cumpre, de tão numerosas que elas são". Porém, desta explicação do Rashi ainda não fica claro porque justamente as Mitzvót agrícolas, ligadas à terra, chamaram a atenção de Bilaam.

A resposta está um importante ensinamento em relação à Criação do mundo. No terceiro dia da criação, D'us instruiu que houvesse vegetação, como está escrito: "E disse D'us: que a terra produza vegetação: grama produzindo semente, árvores de frutas produzindo frutas de sua espécie" (Bereshit 1:11). Porém, no momento em que as árvores realmente foram criadas, o versículo utiliza uma linguagem diferente: "e árvores produzindo frutos" (Bereshit 1:12). Ao invés de "árvores de frutas produzindo frutas", o versículo disse apenas "árvores produzindo frutas". Rashi explica que esta diferença é porque D'us comandou que a terra produzisse árvores que também fossem comestíveis e que tivessem o mesmo gosto das frutas que produzissem. Isto significa que, de acordo com a ideia original de D'us, se alguém quisesse comer partes do tronco de uma macieira, sentiriam o mesmo gosto que sentem ao comer uma deliciosa maça. Porém, a terra não obedeceu ao comando de D'us e produziu árvores que, apesar de darem frutos, elas mesmas não eram comestíveis. Esta "indisciplina" da terra não passou despercebida aos olhos de D'us, e quando Adam Harishon transgrediu e foi amaldiçoado por ter comido o fruto do conhecimento do bem e do mal, D'us amaldiçoou também a terra, como está escrito: "Maldita é a terra por sua causa" (Bereshit 3:17).

Porém, como entender este ensinamento da Torá de que a terra desobedeceu a vontade de D'us? Qual é o conceito espiritual que está sendo transmitido? Além disso, se a terra transgrediu a vontade de D'us, por que sua punição foi postergada até o momento em que Adam foi castigado, ao invés de ser aplicada imediatamente?

Responde o Rav Yohanan Zweig shlita que obviamente a terra não pode se rebelar contra a vontade de D'us. Portanto, a explicação é que quando D'us criou a terra, Ele mesmo já "programou-a" de maneira que, ao invés de produzir árvores em seu estado perfeito, que tinham o mesmo gosto de suas frutas, a terra produziria algo imperfeito. Mas por que D'us criou uma ilusão de que uma de suas criaturas estava se rebelando contra Ele?

O nome "Adam" vem da mesma raiz da palavra "Adamá", que significa "terra", pois o homem foi criado da terra, como está escrito "E D'us formou o homem do pó da terra" (Bereshit 2:7). E como o homem foi criado da terra, e a terra "escolheu" não seguir a vontade de D'us, é isto o que dá ao ser humano a possibilidade do livre arbítrio, isto é, da escolha entre obedecer a vontade de D'us ou se rebelar contra ela. E como a possibilidade do homem transgredir é consequência dele ter sido criado da terra, foi somente no momento em que ele realmente transgrediu que a terra também foi castigada. A punição da terra representa um aprofundamento da ilusão de que a terra tem a sua independência e a possibilidade de escolher não obedecer a vontade de D'us. Da punição da terra aprendemos as consequências negativas de quando utilizamos nossa livre escolha de maneira equivocada.

Portanto, o propósito final das Mitzvót agrícolas, que envolvem o uso da terra, é pegar o elemento da criação que parece estar mais distante e desconectado de D'us, e que carrega a maior expressão do distanciamento de D'us do mundo, que é a terra, e reconectá-la a D'us. E justamente por ser o elemento que aparenta estar mais desconectado, ao ser reconectado ele revela o poder de D'us de uma maneira mais forte.

Foi justamente este potencial do povo judeu, o potencial de pegar algo que foi amaldiçoado e transformar em uma Brachá, de reconectar a D'us algo que havia se desconectado, que teve um impacto tão grande sobre Bilaam. Ele reconheceu que o povo judeu tem a incrível habilidade de ver algo amaldiçoado como uma oportunidade de revelar o poder de D'us, e não como um obstáculo. O povo judeu tinha a força de transformar a maldição da terra em Mitzvót agrícolas. Por isso Bilaam entendeu que o povo judeu estava imune às suas terríveis maldições, que ao saírem de sua boca se transformavam em Brachót.

Este é o potencial do povo judeu: transformar as coisas mais mundanas em espirituais. Através do estudo da Torá aprendemos a utilizar o mundo material de forma a elevá-lo. Mesmo os atos mais básicos do ser humano podem ser transformados em formas de nos aproximar de D'us. Por exemplo, apesar de comer ser um ato que até mesmo os animais fazem, podemos transformar nossa mesa em um "Mizbeach" (altar de oferendas) para D'us. Limitar nossa alimentação apenas às coisas que D'us nos permitiu, dizer Brachót antes e depois de comer e os bons modos na mesa transformam o alimento físico em algo espiritual. Assim, podemos nos conectar a D'us através das coisas mais elevadas, como a Tefilá (reza), e também podemos estabelecer e manter esta conexão através das coisas mais mundanas do nosso dia a dia. Esta foi a Brachá que saiu da boca de Bilaam, e que nos acompanha até os nossos dias.

SHABAT SHALOM                                          

Rav Efraim Birbojm