sábado, 30 de abril de 2016

VENCENDO AS TENTAÇÕES - PESSACH II 5776

O Conde Valentine Potocki vinha de uma família nobre da Polônia. Ao viajar pelo mundo, encontrou-se com um erudito judeu estudando o Talmud (Torá Oral) e se interessou pela sabedoria milenar da Torá. Em pouco tempo ele se converteu ao judaísmo e ficou conhecido como Avraham ben Avraham, o famoso "Ger Tzedek (convertido) de Vilna". Naquela época, a Inquisição perseguia todos aqueles que abraçavam outra fé. Avraham foi aconselhado pelo Rav Eliahu zt"l (Lituânia, 1720 - 1797), mais conhecido como Gaon MiVilna, a se esconder em uma sinagoga na pequena cidade de Ilya.

Naquela cidade havia alguns jovens garotos judeus sem educação, que ficavam o tempo inteiro zombando de Avraham e insultando-o, chamando-o de "falso" e "farsante". Avraham escutava as ofensas em silêncio e nunca respondia de volta. Porém, um dia ele acabou perdendo a paciência e gritou com um dos garotos, ensinando-lhe a ter bons modos. O garoto ficou assustado e contou o ocorrido ao pai, obviamente sem mencionar o quanto eles haviam humilhado o homem. O pai do garoto, que tinha contato com as autoridades, ficou muito irritado e delatou Avraham aos inquisidores da Igreja, informando seu esconderijo na sinagoga. Infelizmente Avraham ben Avraham foi preso, julgado pela Inquisição e, ao se recusar a abandonar o judaísmo e voltar à sua crença anterior, foi condenado a morrer na fogueira em praça pública. No dia marcado para a execução, pouco antes de acender a fogueira, um dos monges disse para ele de maneira cínica:

- Não se preocupe, neste mundo nós vamos matá-lo, mas no Mundo Vindouro você poderá se vingar de nós.

Avraham ben Avraham tinha muita Emuná (fé) em D'us. Sem perder a tranquilidade, ele deu um sorriso e, olhando diretamente nos olhos do monge, respondeu:

- Você realmente acha que no Mundo Vindouro eu estarei pensando sobre esse ato insignificante de queimar o meu corpo finito? No momento em que minha alma estiver sendo exposta à verdade suprema, certamente a vingança será o pensamento mais distante da minha mente.

O monge ficou surpreso ao escutar aquela declaração de fé de um homem que não se abalava mesmo diante de uma morte dolorosa e terrível. Mas Avraham ben Avraham ainda não havia terminado, e acrescentou:

- E eu garanto que não vou descansar no Mundo Vindouro até conseguir que o homem que me delatou seja salvo do Gehinom (local onde as pessoas passam por sofrimentos espirituais após a morte, para expiar erros cometidos em vida).

Avraham ben Avraham morreu santificando o nome de D'us, de forma corajosa e heroica. Como muitos do povo judeu, ele conseguiu chegar ao nível de colocar a vontade de D'us na frente de suas próprias vontades, chegando a um nível mais alto até mesmo que os anjos (História Real).
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A partir do anoitecer desta quinta-feira (28/04) novamente teremos um Yom Tov, o "Shevii de Pessach" (Sétimo dia de Pessach). O primeiro dia de Pessach é Yom Tov, pois foi o dia em que o povo judeu saiu do Egito. Mas o que houve de especial no sétimo dia para que também fosse Yom Tov? Explicam os nossos sábios que, apesar de já terem saído fisicamente do Egito, os judeus ainda se sentiam escravos, incapazes de lutar contra seus opressores. A prova disso é que os egípcios voltaram a perseguir os judeus no deserto e, apesar dos judeus estarem em esmagadora maioria, eles ainda não conseguiam se levantar contra seus opressores. Vendo-se diante do Mar Vermelho, intransponível, e perseguidos pelos egípcios, os judeus gritaram desesperadamente para D'us. Era o sétimo dia depois da saída do Egito, e neste dia aconteceu o incrível milagre da abertura do Mar Vermelho, permitindo a passagem do povo judeu em terra firme. Mesmo vendo aquele incrível milagre, os egípcios continuaram perseguindo os judeus até dentro do mar, até que as águas fecharam-se sobre os egípcios, matando-os. Os judeus somente se sentiram seguros e livres de verdade quando viram na praia o corpo dos seus opressores. A escravidão havia acabado de vez.

Pessach é a festa do agradecimento e do louvor a D'us por todas as bondades e milagres que Ele fez, nos libertando fisicamente e espiritualmente do Egito. Durante todos os dias de Pessach recitamos o Halel, que é composto por diversos capítulos de Tehilim (Salmos) que trazem louvores a D'us. Em um dos Tehilim está escrito: "Quando o povo judeu saiu do Egito... O mar viu e fugiu" (Salmos 114:1,3). Segundo nossos sábios, este versículo refere-se à abertura do Mar Vermelho. Mas o que fez o mar "fugir", isto é, se abrir? Explica o Midrash (parte da Torá Oral) que o mar se abriu ao ver Moshé carregando o caixão de Yossef. Mas por que Moshé estava carregando o caixão de Yossef?

Yossef, filho do nosso patriarca Yaacov, após ter sido vendido como escravo, acabou tornando-se o vice-rei do Egito e conseguiu salvar toda a sua família da terrível fome que também atingiu a terra de Israel. Yossef já sabia que o povo judeu permaneceria por muitos anos no Egito, mas que um dia voltariam para Israel. Antes de falecer, Yossef pediu para que os judeus prometessem que, quando saíssem do Egito, levassem seu corpo para ser enterrado em Israel. No momento em que finalmente saíram do Egito, enquanto o povo judeu inteiro estava preocupado em pedir aos egípcios ouro e prata, para sair  com riquezas, Moshé estava preocupado em cumprir a promessa e se ocupou pessoalmente em pegar o caixão de Yossef, como disse o mais sábio de todos os homens, Shlomo HaMelech (Rei Salomão): "Aquele que é sábio no coração pega Mitzvót" (Mishlei 10:8).

Porém, se D'us havia ordenado ao mar que abrisse suas águas para permitir a passagem do povo judeu, então por que foi necessário que o mar visse o caixão de Yossef? Não era suficiente a ordem do Criador do Universo? Responde o Rav Yaacov Naiman zt"l (Bielorússia, 1909 - EUA, 2009) que se D'us realmente tivesse ordenado ao mar que se abrisse, certamente o mar teria cumprido imediatamente a vontade de D'us e não haveria necessidade de nenhum outro elemento externo. Mas neste caso D'us não havia ordenado nada diretamente ao mar, e sim havia pedido para Moshé: "Levante seu cajado, estenda sua mão ao mar e abra-o" (Shemot 14:16). Isto quer dizer que não foi D'us que ordenou diretamente ao mar que se abrisse, e sim Moshé que deveria ordenar. Mas com que força Moshé poderia fazer algo tão incrível?

Podemos aprender regras espirituais importantes prestando atenção nos pequenos detalhes do cotidiano. Por exemplo, o que podemos aprender de um simples jogo de damas? Em primeiro lugar, aprendemos que somente podemos ir para frente, nunca para trás. Também aprendemos que não podemos saltar casas, apenas caminhar uma de cada vez. Mas há uma regra ainda mais interessante no jogo de damas: quando você chega ao outro lado do tabuleiro e faz uma dama, as regras anteriores já não se aplicam mais. A peça pode se movimentar em qualquer direção e saltar quantas casas quiser.

Explica o Rav Naiman que o mesmo se aplica em nossas vidas. O mundo material foi criado com certas leis físicas que se aplicam a todos os seres humano. Porém, a pessoa que é um Tzadik (Justo), isto é, que se elevou ao se comportar de uma maneira exemplar, quebrando suas próprias vontades para cumprir a vontade de D'us, torna-se um sócio de D'us na Criação do Universo. O Tzadik tem o poder de ordenar ao mar que ele se abra, não apenas como um intermediário de D'us, mas pelo seu próprio potencial alcançado. Ao se elevar e se conectar de uma maneira especial com D'us, ele adquire o poder de mudar as leis da natureza, como afirma o Talmud (Moed Katan 16b) que quando um Tzadik decreta, D'us cumpre. Foi baseado nisso que D'us pediu a Moshé que ordenasse ao mar que se abrisse para a passagem do povo judeu. Porém, apenas a ordem de Moshé não foi suficiente, pois de acordo com o Midrash o mar argumentou: "É verdade que ele cumpre a vontade de D'us, mas eu também cumpro, então por que eu deveria escutá-lo?". Somente quando o mar viu o caixão de Yossef e percebeu a verdadeira grandeza do ser humano é que ele se rendeu e escutou a ordem de Moshé.

Cada um dos nossos antepassados que se destacaram recebeu um "apelido", que descreve a área em que ele se destacou. Por exemplo, nossos patriarcas são chamados de "Avinu" (nosso pai), pois deles herdamos a nossa "genética espiritual". Moshé é chamado de "Rabeinu" (nosso mestre), pois dele recebemos a Torá. Yossef é chamado de "Tzadik" (Justo). Por que? Pois ele era um homem extremamente rico, poderoso e bonito. Tinha o Egito inteiro aos seus pés, a ponto das mulheres egípcias subirem nos muros da cidade para vê-lo passar, e mesmo assim ele teve autocontrole e nunca se corrompeu. Porém, seu maior teste aconteceu quando ele ainda era um simples escravo do Potifar, um dos ministros do Faraó. A esposa de Potifar, encantada com a beleza de Yossef, por diversas vezes tentou seduzi-lo, mas Yossef conseguiu resistir. O teste foi extremamente difícil, pois ela era uma mulher muito atraente e persistente, e causava tentações diárias a Yossef. Um dia ela perdeu a paciência com as constantes recusas de Yossef e agarrou-o pela roupa. Yossef sabia que era mais forte que ela e que poderia facilmente lutar e se soltar, mas teve medo de ser vencido pelo seu Yetzer Hará (má inclinação) se continuasse perto dela por mais alguns instantes. Ele preferiu deixar seu casaco nas mãos dela e fugir da tentação, apesar de saber das possíveis consequências do seu ato. E como ele temia, aquele casaco foi usado como prova da culpa de Yossef em uma falsa acusação feita pela esposa do Potifar contra ele, o que lhe custou 12 anos na prisão.

É por isso que o Midrash disse que o mar fugiu quando viu o caixão de Yossef. Da mesma forma que Yossef fugiu da transgressão, de forma heroica, vencendo seus próprios desejos para cumprir a vontade de D'us, assim também o mar "fugiu", isto é, se rendeu diante de Yossef HaTzadik e abriu suas águas. Quando uma pessoa passa por testes difíceis e consegue vencer, ela se eleva a um nível acima até mesmo dos anjos. Diante da grandeza de Yossef, o mar entendeu que não podia ir contra a vontade dos Tzadikim, que passam por testes e conseguem vencê-los.

A Festa de Pessach é chamada de "Zman Cheruteinu" (A época da nossa liberdade). Não apenas a liberdade física da saída do Egito, mas também a liberdade espiritual. A palavra "Egito", em hebraico, é "Mitzraim", e vem da mesma raiz de "Metzarim", que significa "limitações". Sair do Egito significou sair de tudo o que nos limita e nos prende às regras do mundo material. Através das Mitzvót, que nos ajudam a desenvolver nosso autocontrole, podemos nos elevar acima dos anjos e controlar até mesmo as forças da natureza.

Passamos na vida por muitos testes difíceis. Há duas maneiras de reagir às dificuldades: podemos reclamar da vida e questionar D'us, ou podemos entender que cada teste é uma oportunidade de crescimento. Com cada teste podemos nos elevar e nos libertar dos desejos e vontades que nos aprisionam. Os anjos e o restante de toda a criação fazem a vontade de D'us, mas eles não têm livre arbítrio e não passam por testes. Quando passamos por testes e vencemos, nos elevamos acima de todas as criaturas, inclusive dos anjos. O mundo é sustentado pelos Tzadikim, que conseguem deixar de lado suas vontades e desejos para cumprir a vontade de D'us, mesmo quando é difícil e os desejos parecem ser tentadores.
SHABAT SHALOM e PESSACH KASHER VÊ SAMEACH

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

sábado, 23 de abril de 2016

Escravos do Mundo Material - Pessach 5776

Eduardo e Fernando eram vizinhos. Eduardo era um fazendeiro muito pobre e simples, enquanto Fernando era um grande latifundiário, com centenas de cabeças de gado e plantações a perder de vista. Apesar das dificuldades, Eduardo costumava estar sempre feliz e de bem com a vida. Ele nunca se preocupava em trancar as portas e janelas de sua casa, e de noite dormia um sono profundo e tranquilo. Por estar sempre de bem com a vida, era uma pessoa pacífica e amigável. Fernando, ao contrário, apesar da tranquilidade financeira, costumava estar sempre muito tenso e irritado. Ele fazia questão de checar sempre se as portas e janelas de sua casa estavam trancadas. De noite ele não conseguia dormir bem, pois estava sempre preocupado que alguém poderia entrar em sua casa e roubar seu dinheiro.

Apesar de serem tão diferentes, Eduardo e Fernando eram muito amigos e gostavam de ficar conversando nos finais de tarde. Certo dia, após escutar de Eduardo as dificuldades que ele tinha para pagar suas contas, Fernando teve uma ideia. Na manhã seguinte, bateu na porta da casa simples de Eduardo e entregou a ele um baú. Eduardo abriu e viu que estava cheio de moedas de ouro, uma verdadeira fortuna. Fernando percebeu a confusão no olhar de Eduardo e explicou:

- Querido amigo, graças a D'us eu fui abençoado com muitas riquezas. Dói ver um amigo tão próximo viver nesta pobreza. Por favor, aceite este presente, para que você possa viver com mais tranquilidade.

Eduardo ficou incrivelmente feliz. Durante o dia inteiro ele ficou alegre, o sorriso não saía de seu rosto, às vezes ele até dava risada sozinho. Mas quando a noite chegou e Eduardo foi para a cama, como de costume, ele não conseguiu dormir. Lembrou-se que as portas e janelas estavam abertas, alguém poderia entrar para roubar seu baú de moedas de ouro. Levantou-se rapidamente, trancou as portas e janelas, verificou se o baú estava bem fechado e foi deitar-se novamente. Mas mesmo assim ele ainda não conseguia dormir. Decidiu trazer o baú para perto da sua cama e ficou deitado, de olhos abertos, vigiando o dinheiro, até que foi vencido pelo cansaço. Já era de madrugada quando adormeceu, e mesmo assim teve um sono leve e perturbado, acordando assustado ao menor ruído. Assim que amanheceu, Eduardo pegou o baú de dinheiro e levou-o de volta para a casa de Fernando. Bateu na porta, entregou a ele o baú e disse:

- Querido amigo, eu serei eternamente grato pelo seu incrível gesto de bondade, mas pegue de volta seu dinheiro. De que me adianta este dinheiro se ele não me deixa nem mesmo dormir tranquilamente? Eu sou pobre, tenho minhas preocupações, mas pelo menos eu durmo em paz. Da mesma forma que este dinheiro, em uma única noite, conseguiu tirar minha paz, tenho certeza de que se eu ficar com ele, ao invés de ganhar algo, eu vou apenas perder".

Passamos a vida buscando acumular bens e dinheiro. O problema é que não percebemos o quanto o mundo material nos escraviza e muda a nossa forma de viver. Preocupações, medos, desejos e arrogância são alguns dos efeitos colaterais do mundo material. Não é necessário fazermos voto de pobreza, mas é importante não deixar o mundo material nos escravizar. É o dinheiro que deve nos servir, e não nós que devemos servir o dinheiro.
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Este Shabat coincide com o início da Festa de Pessach, um dos fundamentos de "Emuná" (fé) do povo judeu e um dos pilares da transmissão, de pai para filho, dos ensinamentos da Torá desde os dias de Moshé Rabeinu. Na noite de Pessach nos sentamos com nossas famílias e fazemos o Seder, recontando e revivendo, com detalhes, os milagres da salvação do povo judeu da terrível escravidão egípcia depois de 210 anos de sofrimentos. E certamente um dos elementos mais marcantes da Festa de Pessach é o nosso "pão não fermentado", conhecido como "Matzá". A Matzá tem um papel de destaque na noite do Seder, quando há inclusive uma obrigação da Torá de comermos dela uma quantidade mínima.

O Rav Yehuda Loew zt"l (Polônia, 1525 - República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, aponta que há uma aparente contradição em relação ao que a Matzá representa. Começamos a Hagadá levantando a Matzá e declarando: "Este é o pão da pobreza, que nossos antepassados comeram na terra do Egito". Esta declaração demonstra um foco na Matzá como um símbolo da pobreza do povo judeu durante a escravidão no Egito. Já quase no fim da Hagadá nós levantamos novamente a Matzá e fazemos outra declaração, mas desta vez relembrando o fato de termos comido a Matzá no momento em que fomos libertados da escravidão do Egito, demonstrando um foco na Matzá como símbolo de liberdade. Como a Matzá pode representar, ao mesmo tempo, dois conceitos tão diferentes, e aparentemente até contraditórios, como pobreza e liberdade?

Para responder esta questão, antes precisamos entender o conceito de escravidão e liberdade, para depois examinarmos qual é a relação destes conceitos com a Matzá. Quando pensamos em escravidão, a primeira ideia que vem à nossa cabeça é uma pessoa acorrentada, obrigada a fazer trabalhos pesados e castigada com duras punições físicas. Porém, o Maharal de Praga define a escravidão de uma maneira muito mais abrangente. Segundo ele, uma pessoa é escrava quando está conectada a coisas que são externas à sua essência, e a pessoa necessita destas coisas externas para darem a ela um senso completo de identidade. A escravidão cria um nível de dependência tão grande que, quando a pessoa não tem as coisas externas que necessita, ela sente-se incompleta, como se faltasse parte de sua própria essência. Além disto, estas coisas externas transformam a pessoa em um escravo por definirem certos aspectos de como a pessoa vive sua vida. Por exemplo, as necessidades de uma pessoa viciada em bebidas ou em drogas são muito influentes em suas escolhas e determinam até o seu estilo de vida.

Mas não é apenas o vício em bebidas ou em drogas que escraviza o ser humano. Também é muito comum as pessoas se tornarem "viciadas" em suas posses materiais. A dependência que as pessoas desenvolvem pelos seus bens influencia de maneira negativa e prejudicial suas decisões de vida. Um triste exemplo, que nos traz dor e sofrimento até hoje, foi o que ocorreu com os judeus da Alemanha. Muitos anos antes do Holocausto acontecer, os judeus alemães já haviam reconhecido as ameaças do regime nazista. Os judeus mais pobres, ao perceberem o perigo iminente, deixaram seus poucos bens para trás e fugiram, conseguindo salvar suas vidas e as vidas de suas famílias. Mas os judeus ricos, que tinham muitas propriedades e bens, sentiram mais dificuldade para deixar tudo aquilo para trás. Infelizmente muitos decidiram ficar na Alemanha e acabaram tendo finais trágicos. A riqueza e as posses daquelas pessoas as levaram a tomar uma decisão completamente equivocada.

A liberdade verdadeira, por outro lado, é reconhecer que nossa essência verdadeira é a nossa alma, e não as nossas posses nem o nosso sucesso no mundo material. Por isso, a pessoa livre não corre o risco de ficar "presa" por causa de seus bens. A pessoa livre vê seus bens apenas como um meio para chegar a um final maior, mas nunca os vê como parte de sua própria essência.

O Maharal de Praga explica como a Matzá está relacionada a estes dois conceitos. A Matzá é uma combinação de farinha e água em suas formas mais básicas. Se a massa é deixada em repouso por algum tempo, ela fermenta e se torna "Chametz", que representa um acréscimo à essência pura da Matzá. Neste sentido, a Matzá representa o conceito de liberdade, isto é, estar livre de qualquer coisa externa à sua essência. O Chametz, ao contrário, é criado apenas quando a levedura cresce e acrescenta algo à combinação bruta de farinha e água. Neste sentido, o Chametz representa um acréscimo à essência pura da Matzá.

Com este entendimento é possível explicar como a Matzá pode representar dois conceitos aparentemente tão diferentes: a pobreza e a liberdade. Uma pessoa que é criada com um padrão de vida alto certamente ficará tão acostumada com este padrão de vida que dificilmente conseguirá, por vontade, se desconectar dele. De certa maneira, podemos dizer inclusive que a pessoa está escravizada, presa a este padrão de vida. Por exemplo, uma mulher que foi criada em uma casa grande, dormindo sozinha em um quarto com suíte particular, encontrará muita dificuldade para dividir o uso do banheiro com outra pessoa, mesmo quando esta outra pessoa for o seu próprio marido. Ao contrário, uma pessoa que começou a vida com pouca bagagem externa, isto é, com poucas posses materiais, considera muito mais fácil evitar tornar-se um escravo das coisas que são externas a ele.

Neste sentido, a pobreza é altamente favorável para alcançar a forma de liberdade descrita pelo Maharal de Praga. Uma pessoa pobre nunca se acostumou a possuir muitos bens, e por isso não está preso a eles. E isto explica como a Matzá pode representar, ao mesmo tempo, a pobreza e a liberdade. A pobreza é algo que contribui para a liberdade, pois a pessoa pobre não é escrava do mundo material e de suas posses materiais. De acordo com isso, o "pão da pobreza" que os judeus comeram no Egito representa que eles não tinham posses que eram externas à sua essência. E pelo fato de não terem nada, foi muito mais fácil para eles atingirem a liberdade de se identificar apenas com sua essência pura.

Mas por que foi importante aos judeus alcançarem este nível de liberdade justamente neste momento? Pois a saída do Egito foi o "nascimento" do povo judeu, um processo que os conduziria ao recebimento da Torá no Monte Sinai. Era essencial que naquele momento o povo estivesse completamente livre de qualquer "bagagem" externa que poderia contaminar sua essência verdadeira. Portanto, o fato deles serem tão pobres durante sua permanência no Egito facilitou que eles desenvolvessem as habilidades necessárias para começarem seu novo papel no mundo como o "Povo de D'us".

Em Pessach, e em especial na noite do Seder, nós tentamos recapturar e reviver este sentimento de liberdade que nossos antepassados atingiram quando saíram do Egito. Nós comemos a Matzá como um lembrete simbólico da necessidade de nos despojarmos das coisas que são externas a nós e procurarmos nossa verdadeira e pura essência. Por isso não é suficiente apenas fazer os rituais do Seder sem tentar internalizar suas mensagens.

Pessach é o momento de examinarmos nosso nível de liberdade, de avaliar o quão estamos escravizados pelos nossos bens e por tudo o que é externo à nossa essência. E é o momento propício para nos lembrarmos da nossa verdadeira essência, nossas almas, e que as realizações espirituais são as únicas coisas que têm um valor verdadeiro.
SHABAT SHALOM E PESSACH KASHER VE SAMEACH

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 12:21-51

sábado, 9 de abril de 2016

O QUE CADA UM TEM DE BOM - PARASHAT TAZRIA 5776

Roberto finalmente havia realizado seu sonho de entrar na faculdade de engenharia. Mas aquela empolgação inicial logo se transformou em desespero quando começaram as aulas e ele escutou os professores de Cálculo e Álgebra Linear falando em um dialeto que parecia chinês misturado com russo. Roberto via todos aqueles números anotados na lousa e não entendia nada.

A preocupação ficou ainda maior quando, depois de um mês de aulas, chegou o dia da primeira prova da faculdade. O professor entregou a prova aos alunos e orientou que todos lessem com atenção todas as questões. Roberto, apesar dos traumas iniciais, havia se preparado bem para a prova e começou a responder rapidamente todas as questões, até que chegou à última pergunta: "Qual é o nome da mulher que faz a limpeza das salas de aula?". Roberto pensou que tratava-se de algum tipo de piada. Naquele primeiro mês de aulas ele realmente tinha visto a moça da limpeza diversas vezes. Como ele chegava cedo, sempre a via se esforçando para terminar a limpeza da sala e deixar tudo pronto para o início das aulas. Era uma mulher baixa, de cabelos escuros, com cerca de 50 anos, mas como ele poderia saber o nome dela? Na verdade, ele nunca havia sequer se interessado em saber. Quando entregou sua prova, deixou a última questão em branco, imaginando que era apenas uma brincadeira do professor.

Porém, quando a prova terminou e todos os alunos voltaram para a sala de aula, Roberto tomou coragem e questionou se a última pergunta era séria e se seria levada em consideração na nota da prova. O professor olhou fixamente nos olhos dele e respondeu:

- Obviamente que será levada em consideração, pois esta foi a pergunta mais séria de toda a prova. Na vida profissional você encontrará muitas pessoas. Saiba desde agora que todas elas são importantes e significativas. Todas elas merecem ser valorizadas e terem seu trabalho reconhecido, mesmo que seja através de um sorriso e um "Bom dia".

- Quando vocês chegam à sala de aula de manhã, está tudo limpo e arrumado, pronto para a aula começar, graças a esta moça que faz a limpeza - continuou o professor, se dirigindo a todos os alunos da sala - Se não fosse por ela, perderíamos tempo e despenderíamos esforços na arrumação, ao invés de focarmos na aula. Por isso, temos que saber valorizá-la. O mínimo que vocês deveriam saber era o nome dela, para poder agradecer pela ajuda que ela nos dá todos os dias.

Naquela aula, Roberto aprendeu uma das lições mais importantes de sua vida, que ele jamais esqueceu. Ele aprendeu a enxergar o que cada um tem de melhor, aprendeu a dar importância para cada pessoa e parar de julgar os outros de forma superficial. E também aprendeu que o nome da moça da limpeza era Yvone. 
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Nesta semana lemos a Parashat Tazria (que literalmente significa "Conceber"), que descreve algumas formas de impureza espiritual, entre elas uma doença chamada "Tzaráat". Apesar de ter manifestações físicas, na forma de manchas que surgiam na pele da pessoa contaminada, a Tzaráat era uma doença espiritual. A prova disso é que, caso surgissem manchas na pele de uma pessoa, levantando a suspeita de Tzaráat, ela não ia a um médico dermatologista fazer o diagnóstico, e sim a um Cohen (sacerdote), pois somente os Cohanim estavam aptos a definir se era ou não Tzaráat, como está escrito: "... ele deve ser trazido a Aharon, o Cohen, ou a um de seus filhos Cohanim" (Vayikrá 13:2). Caso a Tzaráat fosse confirmada, a pessoa contaminada precisava iniciar uma série de processos de purificação.

Porém, este versículo desperta alguns questionamentos. Em primeiro lugar, por que somente os Cohanim podiam anunciar se aquelas manchas eram uma manifestação de Tzaráat ou não? Se o problema era a dificuldade no diagnóstico por causa dos inúmeros detalhes envolvidos nas leis sobre Tzaráat, então qualquer grande sábio de Torá com conhecimentos específicos nesta área também estaria apto a verificar se as manchas estavam dentro dos padrões estabelecidos pela Torá para a Tzaráat. Porém, por algum motivo, a Torá determinou que apenas os Cohanim estavam aptos a fazer este tipo de verificação. Por que outras pessoas não podiam fazer um "curso prático" de identificação de Tzaráat?

Além disso, é possível perceber que nos diversos serviços feitos no Mishkan (Templo Móvel), a Torá sempre indica quem são os responsáveis pela sua execução de uma maneira mais genérica, isto é, algumas vezes o serviço é atribuído ao "Cohen", enquanto outras ele é atribuído aos "filhos de Aharon, os Cohanim". Por exemplo, está escrito "Os filhos de Aharon, os Cohanim, deverão trazer o sangue e despejar o sangue no altar" (Vayikrá 1:5). Também está escrito: "... e o Cohen queimará tudo no altar" (Vayikrá 1:9). Porém, em relação à Tzaráat, a Torá foi bem específica, determinando que a pessoa contaminada deveria ser trazida diretamente para Aharon ou para um de seus filhos. Por que a Torá se preocupou que Aharon HaCohen estivesse pessoalmente envolvido quando se tratava de um procedimento de diagnóstico de Tzaráat, enquanto nos outros serviços a Torá não foi tão específica?

Responde o Rav Yohanan Zweig que muito frequentemente a maneira como a pessoa valida seu próprio status e aumenta sua autoestima é focando nas falhas e deficiências dos outros. Isto acaba nos transformando em "especialistas" em ver o lado negativo das pessoas, e acabamos sempre procurando as falhas e defeitos dos outros. Mas Aharon HaCohen era diferente, a ponto dos nossos sábios o descreverem da seguinte maneira: "Seja dos discípulos de Aharon: ame a paz e procure a paz; ame as criaturas e as aproxime da Torá" (Pirkei Avót 1:12). Aharon tinha a incrível habilidade de criar harmonia em relacionamentos que anteriormente haviam sido de hostilidade. Qual característica permitia que ele tivesse tanto sucesso nesta área? Ele estava sempre predisposto a focar nos traços positivos dos outros. Ver sempre o lado positivo era o que permitia a Aharon transformar alguém, que anteriormente era um odiado inimigo, em um indivíduo digno de amizade.

Era justamente este traço de caráter que fazia de Aharon a pessoa apta a diagnosticar a Tzaráat em alguém com suspeita de contaminação. Somente uma pessoa que procura o que é positivo no próximo está qualificada para também avaliar as suas falhas. Já a pessoa que tem predisposição de procurar no próximo suas falhas não é capaz de conduzir um julgamento de forma objetiva e imparcial.

É justamente por isso que a Torá atribuiu especificamente a Aharon o diagnóstico de uma pessoa com suspeita de Tzaráat. Em relação aos outros serviços realizados no Mishkan, qualquer Cohen poderia executá-los, pela força do direito adquirido pelos seus ancestrais, e por isso estava escrito "Cohen" de forma genérica. Porém, a habilidade de diagnosticar alguém com Tzaráat emanava da natureza positiva de Aharon, que sabia procurar o que cada um tinha de melhor, ao invés de procurar falhas e defeitos. A perfeição de Aharon nesta característica foi herdada por seus filhos e descendentes, o que deu a eles, e não a nenhum outro grande sábio conhecedor das leis, a objetividade necessária para conseguir enxergar se aquelas manchas eram realmente a manifestação de Tzaráat ou não.

O mais incrível é perceber que a cura da Tzaráat começava justamente com a característica oposta ao que havia causado a doença espiritual. Nossos sábios explicam que a Tzaráat era causada principalmente por causa da transgressão de Lashon Hará, que consiste em denegrir e apontar as falhas dos outros. E esta terrível transgressão é consequência de enxergar sempre o lado negativo das pessoas. Todos têm qualidade e defeitos, pontos fortes e pontos fracos. Portanto, somente fala Lashon Hará aquele que sempre procura nos outros os defeitos. Se procurasse as qualidades, não estaria gastando seu precioso tempo denegrindo o próximo.

Ensinam os nossos sábios: "Todo aquele que possui as três características seguintes é dos discípulos de Avraham... bom olhar, espírito humilde e alma dócil" (Pirkei Avót 5:19). O que significa que Avraham tinha um "bom olhar"? Mesmo em uma cidade repleta de Reshaim (malvados) como Sdom, Avraham sabia procurar o que eles tinham de bom, e rezou para que D'us tivesse misericórdia de toda a cidade. Mesmo sabendo que seu sobrinho Lót era uma pessoa de má-índole, ele não o abandonou, pois sabia enxergar as suas qualidades. Avraham tinha um bom olhar, procurava o melhor em cada um.

Se quisermos estar listados entre os discípulos de Avraham e de Aharon, precisamos trabalhar o nosso olho e o nosso coração para sempre focarmos o lado bom das pessoas. Pois as pessoas positivas trazem mais amor e harmonia ao mundo, enquanto as pessoas negativas trazem tristeza, desgosto e sofrimento.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Lv l2:1-13:59, 2 Rs. 4:42·5:19

sábado, 2 de abril de 2016

POTÊNCIA SEM CONTROLE - PARASHAT SHEMINI 5776

"O Dr. Vladimir Yakalevitch era um médico extremamente habilidoso. Era um profissional muito esforçado, quase obstinado em alcançar o sucesso. Especializou-se em cirurgia cardíaca e começou a crescer na carreira, até tornar-se chefe da cardiologia do Hospital Ichilov, em Tel Aviv. Era muito respeitado e admirado pelos seus colegas e pacientes.

Certa vez, o Dr. Yakalevitch estava no meio de uma cirurgia cardíaca quando seu celular tocou. Era um paciente particular que precisava de uma cirurgia de emergência, o que significava muito mais dinheiro do que aquela cirurgia de convênio que ele estava fazendo. O Dr. Yakalevitch voltou à sala de cirurgia e disse aos médicos auxiliares que infelizmente não havia mais o que fazer para salvar o paciente, e ordenou que interrompessem os procedimentos e desligassem os equipamentos. Depois disso, ele abandonou o hospital e foi cuidar de seu paciente particular.

O anestesista e o residente se olharam em estado de choque, pois sabiam que a situação não estava tão ruim assim. Eles continuaram operando sozinhos e a cirurgia foi um sucesso. Em seguida, fizeram um relatório no qual questionaram o procedimento médico do Dr. Yakalevitch. Quando o relatório chegou às mãos do diretor do hospital, ele imediatamente iniciou uma rigorosa investigação. Evidências surgiram de que aquela não havia sido a primeira vez que o Dr. Yakalevitch abandonou cirurgias para atender pacientes mais lucrativos. Também descobriram que ele aceitava subornos, intimidava médicos e praticava outros graves delitos. O caso foi parar na justiça, e o Dr. Yakalevitch foi condenado a sete anos de prisão" (História Real, relatada pelo Rav Dovid Kaplan no livro "Impact!").

Se a pessoa deseja muito crescer na vida, mas não é guiada por valores absolutos de moralidade, pode acabar transformando-se até mesmo em um frio assassino, que troca vidas por dinheiro. Isto pode acontecer com os outros, mas se não tomarmos muito cuidado, também pode acontecer com cada um de nós.
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Nesta semana lemos a Parashat Shemini (que literalmente significa "Oitavo"). Um dos assuntos da Parashat é "Kashrut" (leis alimentares), e são ensinados os sinais para reconhecermos quais são os animais e peixes permitidos ao nosso consumo. E assim a Torá fala sobre os peixes: "Entre todos os que estão na água, estes vocês comerão: todos aqueles que têm barbatanas e escamas... Mas todos aqueles que não têm barbatanas e escamas... são uma abominação para vocês" (Vayikrá 11:9,10). Portanto, para um peixe ser Kasher, ele precisa ter estas duas características: escamas que recobrem seu corpo e barbatanas que auxiliam sua movimentação na água. Em relação a estes sinais, o Talmud (Nidá 51b) traz uma informação muito interessante: "Todo peixe que tem escamas também tem barbatanas (e é Kasher); porém, há peixes que tem barbatanas mas não tem escamas (e são impuros)". Mas o próprio Talmud questiona: se todo peixe que tem escamas também tem barbatanas, por que não está escrito na Torá apenas escamas? O Talmud responde que escrever escamas e barbatanas é uma forma de engrandecer a Torá e glorificá-la.

Este ensinamento do Talmud levanta alguns questionamentos. Por que justamente estas características, escamas e barbatanas, são as que fazem com que um peixe seja Kasher? Além disso, como trazer uma informação completamente irrelevante vem engrandecer e glorificar a Torá?

Explica o Rav Yossef Jacobson que, de acordo com as fontes místicas, os atributos físicos de todos os animais refletem diferentes qualidades espirituais de suas almas. Além disso, o misticismo judaico também nos ensina que a comida consumida pela pessoa tem um profundo efeito em sua alma. Portanto, quando a pessoa come a carne de certo animal, a "personalidade" deste animal afeta a identidade de quem o consumiu. Por isso, os sinais de Kashrut dos animais escondem características sobre seu comportamento, e estas características influenciam aqueles que os consomem.

Por exemplo, as barbatanas e escamas incorporam duas qualidades que estão embutidas nas almas dos peixes que apresentam estes sinais, e que são qualidades necessárias para o desenvolvimento saudável do caráter do ser humano. Quando um judeu consome este tipo de peixe, ele se torna um ser humano mais refinado e mais "Kasher". Já quando ele consome um peixe que não tem estas características, automaticamente ele reduz em sua alma um pouco destas qualidades. Por isso, precisamos entender o que representam os sinais de Kashrut dos peixes.

As escamas, que funcionam como uma "armadura" e protegem o corpo do peixe contra agressões externas, representam a qualidade da integridade, que nos protege de nos tornarmos vítimas dos obstáculos que a vida apresenta. Um homem com integridade não vai enganar seus consumidores, apesar dos aparentes lucros envolvidos; ele não falará mentira para um amigo, apesar do conforto momentâneo que isto traz; ele não trairá sua esposa, apesar da tremenda tentação envolvida. Integridade significa ter padrões absolutos de certo e errado, e estar comprometido com uma moralidade que transcende as nossas tentações e a nossa índole. Como as escamas, a integridade protege nossa vida, tanto neste mundo quanto no Mundo Vindouro.

Já as barbatanas, membros no formato de asas que permitem que o peixe mova-se para frente com grande velocidade e habilidade, representam a qualidade da ambição. Ambição saudável significa conhecer suas próprias forças e querer utilizá-las na sua totalidade, dando o impulso necessário para atravessar os turbulentos mares da vida e maximizar o potencial que D'us nos deu. A ambição nos salva do perigo de ficarmos atolados na lama das pressões da vida, e nos leva a buscar preencher nossas aspirações e deixar gravada para sempre nossa contribuição para a humanidade.

Muitas vezes surge um dilema em nossas vidas: qual destas duas qualidades é a mais importante para ser cultivada, "escamas" ou "barbatanas"? Qual é a principal função da educação, nos concentrarmos principalmente em prover aos nossos filhos a confiança e as habilidades necessárias para que eles se tornem produtivos e sejam pessoas realizadas na vida, ou devemos focar mais intensamente em educar nossos filhos com padrões morais mais elevados? Em outras palavras, devemos nos preocupar mais em como eles viverão a vida ou como eles ganharão a vida?

A resposta está no interessante ensinamento do Talmud: "Há peixes que tem barbatanas mas não tem escamas", e estes são impuros. Isto significa que um ser humano que tem ambições mas não tem integridade não é "Kasher". Ele pode nadar e se divertir em grandes mares e oceanos com seu talento e sua genialidade, mas seus conhecimentos podem estar corrompidos e suas conquistas podem estar contaminadas, produzindo efeitos desastrosos. Uma pessoa com "barbatanas" pode estar cheia de confiança e ambição, dirigindo seus atos sempre com a motivação de causar um impacto na sociedade. Porém, educar crianças para que elas sejam ambiciosas e confiantes não garante a integridade moral delas. Atualmente, a política brasileira é um dos melhores exemplos de seres humanos que tem barbatanas mas não tem escamas. Pessoas que, com muita perseverança, com o ideal de mudar o mundo, chegaram à grandeza, mas se corromperam quando alcançaram o poder.

Por outro lado, o Talmud nos ensina que "Todo peixe que tem escamas também tem barbatanas", e é Kasher. Se você ensinar uma criança a se comportar na vida com temor e respeito diante da verdade e da integridade, com um firme compromisso de servir a D'us, o Criador que definiu uma moralidade absoluta, esta criança também terá sucesso em desenvolver suas "barbatanas". Independentemente do seu nível intelectual e de suas proezas, ele encontrará as "barbatanas" com as quais avançará em várias áreas da vida, e suas conquistas certamente contribuirão para transformar o mundo em um lugar melhor.

Quando o Talmud questiona que a Torá deveria ter escrito apenas "escamas", sem a necessidade de escrever "barbatanas", em um nível mais profundo nossos sábios estão questionando qual é a importância de enfatizar a necessidade de "barbatanas" para desenvolver um ser humano "Kasher"? Por que a ênfase em ambição faz parte de uma educação moral e "Kasher"? Por que não focar apenas na integridade e na ética? Então o Talmud responde: "Para engrandecer a Torá e glorificá-la". Isto significa que nossa missão espiritual não consiste apenas em praticar integridade e moralidade, mas também em desenvolver totalmente nosso potencial, materialmente e espiritualmente. Antes de cada alma vir ao mundo, ela já era completamente íntegra. A razão que cada alma desce ao mundo material não é apenas para guardar o que ela já possuía, mas também para fazer a diferença, para dar sua contribuição particular ao mundo. Nosso trabalho neste mundo não é apenas guardar nossas "escamas" espirituais, mas também desenvolver "barbatanas" de alta qualidade. A pessoa que consegue atingir estes dois objetivos certamente chega ao nível de "engrandecer a Torá e glorificá-la".

Estamos vivendo em uma época difícil. Quando pensávamos que a humanidade havia chegado ao fundo do poço quando vimos as cenas de terroristas derrubando as Twin Towers (Torres gêmeas), surge o Estado Islâmico para mostrar que o poço é bem mais fundo do que imaginávamos. Atos bárbaros são comemorados com festas e distribuição de balas para as crianças. Cabeças de inocentes são cortadas e as imagens transmitidas através das redes sociais, mulheres são transformadas em escravas sexuais, homens bomba são vistos como heróis e se explodem no meio de mulheres e crianças, matando e mutilando centenas de inocentes. O Estado Islâmico é a prova do quão gigantesco é o mal que pode emanar de pessoas que possuem o entusiasmo e a ambição, mas cuja moralidade foi corrompida e pervertida.

Este é grande ensinamento para nossas vidas sobre as características dos peixes: potencia sem controle é algo extremamente perigoso. Queremos atingir nosso potencial, queremos ser grandes, mas antes de tudo precisamos construir a nossa base, que é a moralidade. Com moralidade, tudo o que construímos cresce firme e saudável, e se mantém estável para sempre. Porém, sem moralidade, nossas conquistas são como um castelo de cartas, que aparenta ser algo grandioso, mas que ao menor tremor desaba completamente.
"VOCÊ É O QUE VOCÊ COME" (Ditado popular)
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Lv 9:1-11:47, 2 Sm. 6:1-7:17