sábado, 27 de agosto de 2016

PEQUENOS GRANDES ATOS DE AMOR - PARASHÁ EKEV 5776

Um garoto pobre, com cerca de doze anos de idade, vestido de forma muito humilde, entrou na perfumaria, escolheu um sabonete comum e pediu a Rafael, o proprietário, que embrulhasse para presente. Com orgulho, explicou que era um presente para sua mãe. Rafael ficou comovido diante da simplicidade daquele presente. Olhou com dó para o garoto e teve vontade de ajudá-lo. Pensou em embrulhar, junto com o sabonete comum, algum artigo mais significativo, mas ficou na dúvida. O garoto, notando a indecisão do homem, pensou que ele estava duvidando da sua capacidade de pagar. Colocou a mão no bolso, retirou as moedinhas que tinha juntado com dificuldade e colocou-as sobre o balcão. Rafael ficou ainda mais comovido quando viu as moedas, de valor tão insignificante. Concluiu que se o garoto pudesse, certamente compraria algo bem melhor para a mãe. Lembrou-se de sua própria mãe. Ele também tinha sido muito pobre em sua infância, e muitas vezes quis presentear sua mãe, mas nunca teve condições. Quando finalmente conseguiu seu primeiro emprego, ela já havia partido deste mundo. Impaciente com a demora, o garoto perguntou:

- Moço, falta alguma coisa?

- Não - respondeu Rafael - É que, de repente, eu me lembrei da minha mãe. Ela morreu quando eu ainda era muito jovem. Sempre quis dar um presente para ela, mas nunca consegui comprar nada.

Com a espontaneidade natural das crianças, o garoto perguntou:

- Nem um sabonete?

Rafael ficou em silêncio. Pensou um pouco e desistiu da ideia de melhorar o presente do garoto. Embrulhou o sabonete com o melhor papel que tinha na loja, colocou uma fita e entregou para o garoto sem dizer mais nada. Quando ficou sozinho, as lágrimas começaram a sair. Como é que nunca havia pensado em dar algo pequeno e simples para sua mãe? Sempre havia entendido que presente deveria ser alguma coisa significativa, tanto que, minutos antes, havia sentido dó da simples compra do garoto e chegou a pensar em melhorar o seu presente. Comovido, Rafael aprendeu naquele dia uma grande lição. Junto com o sabonete do menino vinha algo muito mais importante e grandioso, o melhor de todos os presentes: o gesto de amor. 
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A Parashá desta semana, Ekev (literalmente "Se"), começa com uma introdução que condiciona o recebimento de recompensas ao cumprimento das Mitzvót da Torá, como está escrito: "E será, se vocês escutarem estes mandamentos, e os observarem, e os cumprirem, então D'us cuidará de vocês... Ele os amará, e os abençoará, e os multiplicará" (Devarim 7:12,13). O entendimento simples destas palavras é que, se demonstrarmos o nosso amor por D'us, escutando Suas ordens e cumprindo Suas Mitzvót, então Ele se comportará conosco na mesma medida e nos amará.

Porém, algo nos chama a atenção nas palavras de Rashi (França, 1040 - 1105), um dos maiores comentaristas da Torá, conhecido por trazer normalmente a explicação mais simples e direta dos versículos. Porém, neste versículo, percebemos que ele "fugiu" da explicação mais simples, que seria dizer que a Torá condiciona a recompensa recebida ao cumprimento de todas as Mitzvót da Torá. Ao invés disso, Rashi cita um Midrash (parte da Torá Oral) que explica que a palavra "Ekev", que significa a condição "se", também significa "calcanhar". Ele diz que o versículo não se refere a todas as Mitzvót, e sim especificamente às Mitzvót que nós "pisamos sobre elas com o nosso calcanhar", isto é, Mitzvót que desprezamos por considerarmos como sendo menos importantes. De acordo com esta explicação, a Torá está nos advertindo a não desprezarmos estas Mitzvót que consideramos menos importantes.

Esta explicação de Rashi desperta um questionamento. A explicação mais simples do versículo é muito mais abrangente e incluiu todas as Mitzvót da Torá. Então por que Rashi abandonou a explicação mais simples e abrangente, e escolheu trazer uma explicação que se aplica somente a um grupo reduzido de Mitzvót? Por que o amor de D'us estaria condicionado apenas às Mitzvót que têm menos importância aos nossos olhos?

Uma pergunta semelhante surge em relação a outro ensinamento dos nossos sábios: "Seja tão meticulosos no cumprimento das Mitzvót menos importantes como no cumprimento das Mitzvót mais importantes, pois você não sabe como as Mitzvót serão recompensadas" (Pirkei Avót 2:1). Porém, o que esta Mishná (parte da Torá Oral) está nos ensinando? Se a própria Mishná reconhece que existem Mitzvót mais importantes e outras menos importantes, por que a conclusão é que talvez D'us não nos recompensará de maneira proporcional ao valor das Mitzvót? Se há Mitzvót mais importantes, não seria mais lógico dar ênfase ao cumprimento delas?

Explica o Rav Yohanan Zweig que quanto mais forte é o relacionamento entre duas pessoas, é mais comum elas sentirem liberdade de pedir coisas relativamente simples e triviais uma à outra. Entretanto, se o relacionamento não é tão forte, as duas partes tendem a limitar os pedidos a assuntos de maior importância. Por exemplo, uma pessoa não pensaria duas vezes em acordar algum conhecido às duas da manhã para pedir um auxílio médico urgente, mas a mesma pessoa acharia inconcebível a ideia de acordar um conhecido às duas da manhã para pedir a ele um pote de sorvete. No outro extremo, uma esposa não veria nenhum problema em pedir para que seu marido compre para ela um pote de sorvete às duas da manhã, em especial se ela estiver grávida. Isto quer dizer que sentir liberdade de fazer pedidos simples é uma demonstração de amor e conexão.

Esta ideia se aplica também espiritualmente. Nós somos naturalmente mais cuidadosos com as Mitzvót que consideramos como sendo mais importantes e fundamentais, enquanto naturalmente cumprimos com menos entusiasmo e cuidado as Mitzvót que não consideramos como princípios fundamentais. Entretanto, isto é um grande erro, pois quanto mais forte é um relacionamento, mais apta está a pessoa a concordar com pedidos aparentemente triviais e simples. Portanto, é justamente através das Mitzvót mais simples e básicas que nós demonstramos o nosso compromisso e expressamos o nosso amor por D'us. É por isso que o cumprimento das Mitzvót "leves", que parecem ser menos sérias, é justamente o que mede o nosso relacionamento com D'us.

Com este conceito podemos entender o que a Mishná de Pirkei Avót está nos ensinando. Há duas maneiras através das quais D'us pode definir a recompensa de uma Mitzvá: através da sua importância ou através do comprometimento e amor refletido no cumprimento desta Mitzvá. Como não nos foi revelado qual das duas medidas D'us usará na definição da nossa recompensa, então é importante sermos igualmente cuidadosos com ambos os tipos de Mitzvót, pois um tipo tem uma maior recompensa por sua importância, enquanto outro tipo tem uma maior recompensa pela sua demonstração de amor e comprometimento.

Assim também é possível entender o motivo pelo qual Rashi abandonou a explicação convencional, mais abrangente, e optou por trazer uma explicação baseada no Midrash, mais limitada. O versículo descreve explicitamente o cumprimento de certas Mitzvót cuja recompensa será o amor de D'us. Como D'us se comporta conosco "Midá Kenegued Midá" (medida por medida), então certamente trata-se de Mitzvót que demonstram um nível maior do nosso amor por D'us. É por isso que Rashi entende que as Mitzvót às quais o versículo se refere são aquelas que consideramos menos importantes, pois são justamente elas que, quando cumpridas com cuidado, entusiasmo e alegria, verdadeiramente demonstram o nosso enorme amor por D'us.

Precisamos colocar no coração este ensinamento para conseguirmos cumprir com alegria e entusiasmo mesmo as Mitzvót mais simples do cotidiano. É fácil se sentir inspirado na Tefilá de Yom Kipur, mas o que demonstra de verdade o nosso amor por D'us é tentar se inspirar nas Tefilót do dia-a-dia, mesmo com toda a correria e obstáculos que surgem quando tentamos rezar com concentração. É fácil sentir a santidade da mesa de Shabat, mas o que ressalta o nosso amor pelas Mitzvót é sentir também a santidade da mesa durante a semana. É mais fácil sentir temor no cumprimento das Mitzvót da Torá, mas é uma demonstração muito maior de conexão espiritual e temor a D'us quando também conseguimos cumprir, com o devido respeito, as Mitzvót que foram decretadas pelos nossos sábios. Assim, os pequenos atos do cotidiano se transformam, através do entusiasmo e da alegria, em atos gigantescos.

Este conceito também se aplica ao nosso relacionamento com as outras pessoas. Muitas vezes queremos demonstrar o quanto gostamos ou nos importamos com alguém, e esperamos algum momento especial e grandioso para demonstrar o que sentimos. Mas isto é um grande erro, pois são justamente os pequenos atos do cotidiano que demonstram o quanto nos importamos com as pessoas. Quando damos um presente a alguém, muitas vezes o que mais toca a pessoa não é o conteúdo do embrulho, e sim as palavras que estão escritas no cartão. O nome "presente" já indica que o principal objetivo de darmos uma lembrança a alguém é demonstrar o quanto queremos estar presentes na sua vida. Por isso, a melhor maneira de demonstrar o nosso amor não são com grandes presentes, e sim com pequenas atitudes diárias de carinho, respeito e atenção.
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 7:12-11:25, Is. 49:14-51:3

sábado, 20 de agosto de 2016

APRENDENDO A SER MISERICORDIOSO - PARASHÁ VAETCHANAN 5776

Dois judeus da Lituânia brigaram e um deles, completamente fora de si, começou a difamar o outro. Porém, como ele não era uma má pessoa, quando Rosh Hashaná e Yom Kipur começaram a se aproximar ele ficou extremamente incomodado e arrependido pelo seu mau ato. Juntando todas as suas forças para passar por cima do seu ego e da vergonha, ele dirigiu-se ao seu companheiro e pediu perdão com sinceridade. Porém, para sua surpresa, a vítima se recusou a perdoá-lo, citando uma Halachá (Lei judaica) de que não havia obrigação de perdoar uma difamação. O transgressor ficou desesperado, não sabia mais o que fazer. O Rav Yitzchak de Volozhin (Lituânia, 1780 - 1849), que havia presenciado a conversa, chamou a vítima de canto e disse:

- Sabe, você realmente tem razão, a Halachá não nos obriga a perdoar alguém que nos difamou. Mas não se esqueça que Rosh Hashaná, o Dia do Julgamento, está chegando. Neste dia, todos os nossos atos passam diante de D'us e são detalhadamente analisados. Quando somos misericordiosos com os outros e nos comportamos "Lifnim Mishurat HaDin" (além do que é exigido pela lei judaica), D'us se comporta "Midá Kenegued Midá" (medida por medida) e nos julga com Misericórdia, não sendo tão rigoroso. Mas se formos rigorosos no julgamento dos outros, então D'us também será extremamente rigoroso no nosso julgamento. Você está pronto para um julgamento tão rigoroso de D'us quanto o que você está fazendo com seu companheiro, usando a justiça estrita ao invés da misericórdia?

A vítima da difamação, ao escutar as palavras do Rav Yitzchak, imediatamente aprendeu a lição e perdoou o homem que o havia caluniado. 

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A Parashá desta semana, Vaetchanan (literalmente "E implorei"), enumera novamente os dez mandamentos que o povo judeu recebeu de D'us no Monte Sinai. E o final da Parashá traz um ensinamento muito importante: "E você fará o que é certo e bom aos olhos de D'us, para que Ele faça bem para você" (Devarim 6:18). Nossos sábios explicam que este versículo é a fonte de Torá de que devemos nos comportar "Lifnim Mishurat HaDin", isto é, que devemos evitar sermos muito rigorosos e exigentes com os outros em relação à aplicação da lei, e devemos  saber perdoar em certas situações, mesmo quando temos razão.

O Talmud (Baba Metsia 30b) traz um exemplo na prática: uma pessoa encontra um objeto perdido que, por certas condições específicas, poderia ficar com ele de acordo com a Halachá. Por outro lado, a pessoa sabe quem é o verdadeiro dono do objeto. Neste caso, baseado neste versículo da Parashá, o Talmud diz que o correto seria devolver o objeto ao dono, apesar da permissão técnica de ficar com ele. Outro exemplo trazido pelo Talmud (Baba Metsia 108a) é quando um terreno é colocado à venda e, apesar de haver outras pessoas interessadas, é necessário dar a preferência de compra ao dono do terreno vizinho. E como estes, há inúmeros exemplos de situações do nosso cotidiano nas quais devemos nos comportar "Lifnim Mishurat HaDin".

De acordo com o Ramban zt"l (Nachmânides) (Espanha, 1194 - Israel, 1270), apesar da Torá não escrever explicitamente em todos os casos que devemos nos comportar "Lifnim Mishurat HaDin", aprendemos deste versículo da Parashá a constantemente nos esforçar para tratar as pessoas de uma maneira compreensiva, sempre buscando evitar o uso das leis da Torá de forma muito estrita e rígida. O Talmud (Baba Metsia 30b) nos ensina que o nosso Beit Hamikdash (Templo Sagrado) foi destruído porque naquela geração as pessoas eram muito rigorosas umas com as outras e aplicavam sempre a lei de forma muito estrita.

Porém, é difícil entender este ensinamento do Talmud. A priori, se comportar "Lifnim Mishurat HaDin" é justamente fazer mais do que somos obrigados. Então por que a falha em se comportar desta maneira teve uma consequência tão negativa e uma punição tão rigorosa de D'us? Faz sentido dizer que o Beit Hamikdash foi destruído apenas pelo fato das pessoas terem aplicado a lei de forma estrita e rigorosa?

A pergunta fica ainda mais difícil quando o Talmud (Yoma 9b) afirma que o Primeiro Beit Hamikdash foi destruído por causa das três transgressões mais graves da Torá, que são assassinato, idolatria e imoralidade, e o Segundo Beit Hamikdash foi destruído por causa do ódio gratuito que havia dentro do povo judeu. Afinal, qual foi a verdadeira causa da destruição dos Templos, estas graves transgressões ou a aplicação rígida da lei?

Explica o Rav Yehonasan Gefen que a falha em tratar as pessoas "Lifnim Mishurat HaDin" reflete um profundo equívoco na atitude da pessoa em relação ao seu Serviço Divino. De acordo com o Ramban, o ensinamento "e você fará o que é certo e bom" seria o paralelo da Mitzvá de "Kedoshim Tihiu" (Sejam Sagrados) aplicado à área de "Bein Adam Lehaveiró" (entre a pessoa e seu semelhante). Segundo o Ramban, o "Kedoshim Tihiu" é uma advertência para evitar que a pessoa cumpra todas as Mitzvót e ainda assim seja um "mau-caráter com permissão da Torá". Mas como isto é possível? A pessoa pode ser extremamente rigorosa em não transgredir nenhuma Mitzvá da Torá e, ao mesmo tempo, pode não ter nenhum interesse em se elevar espiritualmente nas áreas de "Reshut" (atos que não são intrinsecamente Mitzvót) como, por exemplo, o que a pessoa faz em seus momentos de lazer, quanto ela dorme ou a quantidade de comida que ela come.

A razão por trás deste tipo de comportamento é que a pessoa acredita na veracidade da Torá e, portanto, que ela deve ser cumprida com todo o cuidado. Porém, a pessoa demonstra que não entendeu a verdadeira perspectiva da Torá, pois não se interessa em se elevar espiritualmente. A consequência é que ela fica presa em metas do mundo material, com objetivos como alcançar os desejos físicos e acumular riquezas. Por reconhecer a veracidade da Torá, ela nunca cometerá de forma intencional uma transgressão, mas ao mesmo tempo é completamente desinteressada de se elevar nas áreas nas quais não é "tecnicamente" obrigada.

Um paralelo deste fenômeno pode ocorrer na área de "Bein Adam LeHaveiró". A pessoa pode reconhecer a necessidade de seguir as leis da Torá, mas não ter nenhum interesse de se conectar com o que está por trás destas leis. A consequência disso é que a pessoa sempre vai aplicar a lei de forma estrita, mesmo quando isso causa sofrimentos para outras pessoas. Por exemplo, caso encontre um objeto perdido que tecnicamente é seu, não levará em consideração o sofrimento do seu companheiro que perdeu o objeto.

É por isto que a Torá nos ensinou o versículo "E você fará o que é certo e bom". Precisamos olhar para a Torá e para as Mitzvót da maneira correta, aprender o respeito que a Torá exige de nós, em relação a D'us e em relação ao nosso semelhante. Através das Mitzvót, a Torá nos ensina a sermos mais misericordiosos e não tão rigoroso com os outros, desenvolvendo um genuíno senso de amor ao próximo. Devemos tratar cada semelhante com o mesmo respeito e compaixão que gostaríamos de ser tratados. Quando alguém encontra um objeto perdido, deve sentir a dor daquele que perdeu o objeto. Quando alguém empresta dinheiro a um pobre que não tem como pagar, deve sentir misericórdia e ser flexível.

Com este ensinamento é possível entender o que o Talmud está nos transmitindo quando afirma que o Beit Hamikdash foi destruído pelo fato das pessoas estarem sendo muito rigorosas e estritas umas com as outras. Isto demonstra que aquela geração havia esquecido o "faça o certo e bom", havia perdido a lição de que não se deve tratar outro ser humano de maneira muito dura e sem misericórdia. Este comportamento rígido não se enquadra com o que a Torá espera de nós em relação aos outros seres humanos.

Podemos entender também a contradição que existe no Talmud em relação ao motivo da destruição do Beit HaMikdash. De acordo com o Rav Yitzchak Vologzin, obviamente que a destruição do Beit HaMikdash foi consequência das terríveis transgressões descritas no Talmud, algumas tão graves que um judeu deveria estar disposto até mesmo a abdicar de sua vida para não transgredi-las. Porém, o Talmud quer nos ensinar que quando tratamos nossos companheiro com misericórdia, "Lifnim Mishurat HaDin", e não somos rigorosos demais em cobrar nossos semelhantes, Hashem também se comporta da mesma maneira, Midá Kenegued Midá, e nos perdoa mesmo das transgressões mais graves. Entretanto, quando D'us viu as pessoas se comportando uns com os outros de uma maneira muito estrita e rigorosa, não se perdoando, então Ele também foi extremamente rígido no julgamento do povo, o que resultou na destruição do nosso Beit Hamikdash.

Quando se trata de aplicar a lei em relação às outras pessoas, devemos ser lenientes e compreensivos. Se queremos ser rigorosos, que sejamos em relação a nós mesmos, para que possamos cumprir cada Mitzvá de maneira detalhada e correta. Cobrando cada vez mais de nós mesmos e cada vez menos dos outros, certamente estaremos dando a nossa maior contribuição para a reconstrução do nosso Beit Hamikdash.


SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 3:23·7:11, Is. 40:1-26

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

O QUE ESTÁ FALTANDO? - PARASHÁ DEVARIM E TISHÁ BE AV 5776

"Em uma época na qual os judeus eram proibidos de exercer trabalhos tradicionais, Moishe, um ator judeu desempregado, estava desesperado à procura de um trabalho. Foi quando ele viu, no cantinho do jornal, um pequeno e muito discreto anúncio. Um macaco, a principal atração do zoológico local, tinha morrido, e o zoológico estava procurando um ator para substituí-lo. Eles não queriam substituí-lo por outro macaco, pois as pessoas pagavam para ver suas palhaçadas originais, o que nenhum outro macaco faria. O zoológico não havia nem anunciado publicamente que o macaco tinha morrido por medo de perder visitantes.

Moishe fez o teste, foi contratado e fez um trabalho fantástico como macaco. Nenhum dos visitantes suspeitou que se tratava de um homem fantasiado. Moishe estava tão à vontade em seu papel que, com o passar do tempo, começou realmente a achar que era um macaco. Porém, certo dia, durante uma apresentação, Moishe se balançou forte demais em uma corda e saiu voando por cima da jaula, em direção à jaula do leão. Ele caiu a meio metro de distância de um leão com dentes muito afiados. Paralisado de medo, o susto fez com que Moishe "acordasse" e lembrasse que ele não era um macaco. Mas a única coisa que conseguiu fazer foi gritar "Shema Israel". O leão olhou para ele e respondeu "Hashem Elokeinu, Hashem Echad". Moishe reconheceu aquela voz. Curioso, ele perguntou:

- Shimi, é você?
- Sim, sou eu. É você, Moishe?
Antes que Moishe pudesse responder, a zebra na jaula ao lado sussurrou:
- Ei, pessoal, falem baixo ou todos nós perderemos nossos empregos..."

Vivemos em uma época de tanta confusão espiritual que não sabemos nem mesmo quem somos de verdade e qual é o nosso papel no mundo. Infelizmente perdemos nossa identidade e nos assimilamos. Então algumas vezes D'us precisa nos chacoalhar, para nos despertar do nosso sono espiritual. 
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Nesta semana começamos o último livro da Torá, Devarim, que consiste basicamente do discurso de despedida de Moshé antes da entrada do povo judeu em Israel. Este discurso é fortemente marcado por duras críticas de Moshé, que fez questão de relembrar muitos dos graves erros que o povo cometeu durante os 40 anos em que permaneceu no deserto. A intenção da bronca de Moshé era fazer o povo refletir sobre os erros passados e aprender com eles, evitando repeti-los no futuro. E este é um dos motivos que a Parashá Devarim sempre coincide com uma das datas mais tristes do judaísmo, Tishá Be Av, que neste ano começa logo após o término do Shabat. Tishá Be Av é um dia de jejum e luto, no qual recordamos, entre outras grandes tragédias, a destruição dos nossos dois Templos Sagrados. Como as broncas de Moshé, a essência de Tishá Be Av também é despertar os judeus, levando-os a refletir sobre as transgressões que nós e nossos antepassados cometemos. Porém, será que entendemos realmente o que significa a perda do nosso Beit Hamikdash (Templo Sagrado)? Conseguimos sentir de verdade sua falta em nossas vidas?

Ao contrário de muitas gerações passadas, vivemos em uma época de muito conforto. Apesar do antissemitismo venenoso da mídia mundial, vivemos em uma época na qual não sofremos perseguições e podemos cumprir nosso judaísmo sem precisar nos esconder. Além disso, temos uma incrível abundância de alimentos e outros tipos de prazer. Vivemos em uma era tecnológica na qual tudo ficou mais fácil: horas de fila nos bancos foram substituídas por aplicativos de celular; viagens cruzando o oceano, que duravam meses, agora duram apenas horas; e o ato de cozinhar, que significava ficar horas diante de um fogão a lenha, agora se resume a apertar um botão do microondas.

Porém, com tudo mais fácil e abundante, sentimos que no fundo ainda falta alguma coisa. Pode ser uma confusão em relação aos nossos objetivos e a direção que nossa vida deve tomar, outras vezes é uma sensação de que ainda não conseguimos realmente atingir o nosso potencial, ou simplesmente um vazio incômodo, uma sensação de que a vida poderia e deveria oferecer mais. Um exemplo disso é a "crise da meia idade", uma época na qual as pessoas começam a procurar respostas e normalmente não as encontram. Porém, muito antes da meia idade, este sentimento de vazio já começa a borbulhar dentro de nós, indicando que há algo errado ou faltando. Mas vamos ignorando este sentimento, deixando para depois. Somente quando a velhice se aproxima e nossa condição mortal é forçadamente recordada, este sentimento aflora com toda a sua força, causando depressão e desânimo. Mas o que está faltando, se temos vidas com tanto conforto e abundância? Por que não nos sentimos completos mesmo tendo tudo?

Há mais de dois mil anos o povo judeu tinha o Beit Hamikdash em Jerusalém, que constantemente nos recordava quem somos, qual é a nossa verdadeira importância e para onde estamos indo. O Beit Hamikdash era nossa verdadeira "bússola espiritual" e, apesar de ser uma construção física, era um conceito e uma realidade espiritual, uma manifestação física da conexão do povo judeu com D'us. Quando os judeus trazem moralidade e verdade ao mundo, que são características Divinas, então D'us traz Sua presença para este mundo. O próprio comando da Torá sobre a construção do Mishkan (Templo Móvel) reforça o conceito da conexão de D'us com cada judeu: "E façam para Mim um Santuário, e Eu morarei dentro deles" (Shemot 25:8). Não está escrito que D'us morará dentro do Santuário, e sim dentro do coração de cada pessoa que quiser estar conectada a Ele.

Além disso, nossos sábios ensinam que o Beit Hamikdash foi construído em um lugar muito especial, onde a criação do mundo começou. É o mesmo lugar em que Adam e Chavá (Adão e Eva) foram criados. Este também foi o lugar para onde Avraham levou seu filho para ser sacrificado para D'us, e onde Yaacov sonhou com uma escada que chegava até o Céu, na qual subiam e desciam anjos. De acordo com as fontes místicas, este é o lugar onde o Céu e a terra literalmente se tocam. Por isso, era justamente neste lugar que entendíamos quem nós éramos, e podíamos nos conectar ao nosso verdadeiro "eu".

O Midrash (parte da Torá Oral) compara Israel a um olho, Jerusalém à sua pupila, e o Beit Hamikdash a um reflexo na pupila. O Midrash está identificando a Terra de Israel, Jerusalém e o Beit Hamikdash como lugares nos quais podemos alcançar níveis maiores de entendimento e iluminação espiritual. Mas por que a comparação do Beit Hamikdash com um reflexo no olho? Explica o Rav Simcha Barnett que há duas maneiras de ver nosso próprio reflexo em um olho. Uma maneira é através de um espelho, e outra maneira é olhando nos olhos de outra pessoa. Isto representa como o Beit Hamikdash ajudava o povo judeu a viver da maneira correta. O Beit Hamikdash era um espelho para onde podíamos olhar e enxergar a nós mesmos, e nos ajudava a entender quem éramos de verdade. Este espelho nos mostrava que fomos criados à imagem e semelhança de D'us, e nos motivava a viver de acordo com isso. E através desta claridade de quem éramos, estávamos prontos a perceber a Divindade que também havia em cada indivíduo, do mais simples ao mais importante. Podíamos olhar nos olhos dos outros e enxergar neles um pouco nós mesmos, e este reconhecimento permitiu o ponto de início da união verdadeira do povo judeu.

Mas quando nos afastamos das características Divinas, D'us também se afasta de nós. Uma das consequências de D'us se afastar do mundo é a perda do lugar onde Sua presença se manifestava. Quando o Beit Hamikdash foi destruído, o povo judeu ficou literalmente à deriva em um mar escuro e tempestuoso, como pouca orientação e estabilidade. A base de toda a alienação e da baixa autoestima que vemos atualmente no mundo tem sua raiz na destruição do Beit Hamikdash, e mais especificamente por termos "mandado D'us para o exílio" quando fomos exilados por causa das nossas transgressões. Quando uma pessoa verdadeiramente sabe e percebe que foi criado à imagem e semelhança de D'us, ela tem uma autoestima intrínseca. Nossos inimigos nunca conseguiram roubar nossa dignidade e nobreza, pois o judeu sempre soube que sua essência estava conectada a uma verdade que está acima da opressão dos outros povos. Porém, esta claridade já não existe mais.

Talvez seja até mesmo irônico pensar que vivemos em uma geração com poucas dificuldades físicas, e na qual não sofremos perseguições ou proibições de colocar em prática nosso judaísmo, e ao mesmo tempo somos uma geração completamente alienada, na qual perdemos a noção de quem somos de verdade. Esta angústia existencial que sentimos é consequência direta da destruição do Beit Hamikdash. O Beit Hamikdash era um lugar cuja luz deveria brilhar e iluminar o mundo inteiro. Os judeus têm a enorme responsabilidade de se tornar uma luz para as nações. Não podemos evitar nem tentar fugir do nosso destino, pois D'us nos deu uma força que é completamente desproporcional ao nosso número reduzido. É fácil perceber o quanto os judeus se sobressaem em todas as áreas, estão sempre na "linha de frente" da humanidade. Mas é uma pena que, sem nossa "bússola espiritual", sem um direcionamento, este tremendo potencial acaba não sendo utilizado da maneira correta.

Somos os mensageiros de D'us para transmitir ao mundo uma mensagem significativa. Temos a responsabilidade de transmitir ao mundo valores como a dignidade do indivíduo, a justiça, a caridade e a paz, que darão ao mundo uma direção. Porém, o que acontece quando os mensageiros se perdem, deixam de entender a importância de sua mensagem e esquecem até mesmo que estão "sob contrato" com D'us? O que fazer quando a alienação é tanta que invertemos completamente nossa missão, a ponto de, ao invés de ensinar ao mundo nossos valores, nós é que estamos absorvendo e nos comportando com os valores do mundo?

Em Tishá Be Av devemos nos esforçar para sentir a dor de estarmos alienados, como indivíduos e como um povo. Em Tishá Be Av o remédio para nossa situação é através das lágrimas. O Talmud (Taanit 30b) afirma que aquele que chora lágrimas sinceras em Tishá Be Av terá o mérito de ver a reconstrução do Beit Hamikdash. Devemos chorar pelo povo judeu como um todo, que se desviou do caminho. Por nossos amigos e familiares que nunca puderam experimentar a santidade de um Shabat, a doçura do estudo da Torá ou uma vida de Mitzvót. E, principalmente, devemos chorar por nós mesmos, pois poderíamos e deveríamos esperar muito mais da nossa vida.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
DEUTERONÔMIO 1:1-3:22, Is.1:1-27

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O VALOR DE UMA VIDA - PARASHIÓT MATÓT E MASSEI 5776

Após o término da Segunda Guerra Mundial, uma carta anônima foi encontrada em um Campo de Concentração nazista, contendo a seguinte mensagem:

"Prezados professores, sou sobrevivente de um Campo de Concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver: câmaras de gás construídas por engenheiros formados, crianças envenenadas por médicos diplomados, recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas, mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas dúvidas sobre a educação. Meu pedido é: ajudem seus alunos a se tornarem humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só será importante se nossas crianças forem mais humanas"

De nada adiantam os títulos e as condecorações se a pessoa não sabe o verdadeiro valor de uma vida humana. 
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Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Matót (literalmente "Tribos") e Massei (literalmente "Viagens"). A Parashá Matót fala sobre a importância de manter as promessas e os juramentos, sobre o ataque do povo judeu ao povo de Midian e sobre o desejo das tribos de Reuven e Gad de se estabelecer antes do Rio Jordão, fora da Terra de Israel. Já a Parashá Massei descreve as viagens que o povo judeu fez durante os 40 anos em que permaneceu no deserto, apontando todos os lugares onde o povo acampou. Além disso, a Parashá Massei descreve as "Cidades de Refúgio", locais para onde uma pessoa que havia assassinado de forma não intencional deveria ir e permanecer até a morte do Cohen Gadol (Sumo Sacerdote). O fato de a Torá chamar alguém que matou sem intenção de "assassino" já demonstra o quanto D'us é rigoroso com cada vida humana.

A Torá ressalta que as leis da Cidade de Refúgio somente se aplicavam a um assassinato acidental, como no caso da lâmina do machado de um lenhador que escapou do cabo e atingiu fatalmente outro lenhador. Porém, um assassino intencional não podia se abrigar nas Cidades de Refúgio, pois devia ser punido com a pena de morte. O final da Parashá ressalta que não devemos ser lenientes com um assassino intencional, como está escrito: "Você não deve aceitar um resgate pela vida de um assassino que merece morrer, você deve matá-lo... Você não deve corromper a terra onde você está, pois o sangue corrompe a terra" (Bamidbar 35:31,33). Estes versículos nos ensinam que não podemos ser tolerantes nem racionalizar e buscar permissões para permitir assassinatos, e aquele que intencionalmente tira uma vida não deve receber a possibilidade de "resgatar sua liberdade" através de algum tipo de pagamento. O versículo termina ressaltando que, caso um assassinato seja tolerado ou racionalizado, o sangue derramado será considerado uma abominação e contaminará a Terra de Israel, o local onde a Presença de D'us reside.

Porém, há algo que nos chama a atenção quando prestamos atenção na linguagem do versículo. A palavra "Iachnif", que significa "corromper", vem da mesma raiz de "Chanufá", que significa "bajulação". Qual é a conexão entre corromper e bajular? Como deixar um assassino vivo pode "bajular a terra"?

É interessante perceber que não é apenas a Torá que lida de forma tão rigorosa com o assassinato intencional. De acordo com as leis de todos os povos do mundo, o assassinato intencional é considerado um delito extremamente grave e é normalmente punido com a máxima rigorosidade, com penas que variam de muitos anos de detenção ou prisão perpétua até a morte do assassino. Mas será que a forma como a Torá enxerga a gravidade do assassinato é igual à forma como os povos do mundo enxergam?

Explica o Rav Moshe Feinstein zt"l (Lituânia, 1895 - EUA, 1986) que, apesar das aparentes semelhanças na rigorosidade com o qual os assassinos são tratados, há uma enorme e essencial diferença entre a forma como a Torá e as leis dos outros povos enxergam o assassinato intencional e sua consequente punição. Os outros povos olham o assassinato como algo que estraga e coloca em risco a continuidade do mundo, e por isso o assassino deve ser duramente punido. Os outros povos veem os duros castigos aplicados ao assassino como uma forma de erradicar do mundo aqueles que querem destruir a humanidade.

Porém, qual é o grande perigo de pensar desta maneira? Quando punimos de maneira muito rigorosa uma pessoa pelo fato de considerarmos que ela coloca em risco a humanidade, então corremos o risco dos limites e das definições de quem são os "perigos para a humanidade" mudarem de acordo com as vontades e as necessidades de cada sociedade. Pessoas inocentes podem ser mortas a sangue frio por assassinos que acreditam que estão salvando o mundo. Isto explica por que explodem tantas guerras, e por que surgem grupos como o Estado Islâmico, que em nome de garantir a continuidade de um mundo "correto" matam milhares de pessoas inocentes que nunca fizeram mal a ninguém. E se parece um exagero pensar assim, basta lembrar o assassinato a sangue frio de seis milhões de judeus durante o Holocausto. Quem eram os assassinos? Não eram os bárbaros, cossacos ou vikings. Eram médicos, engenheiros e policiais, pessoas que deveriam zelar pela vida, mas que escolheram assassinar homens, mulheres, crianças e bebês com requintes de crueldade.

Como tantos alemães participaram de assassinatos a sangue frio no Holocausto, ou simplesmente se calaram e foram coniventes com os crimes nazistas? A mídia alemã conseguiu, através de uma propaganda virulenta e mentirosa, convencer a maioria do povo alemão que os judeus eram a causa de todos os problemas do mundo. Ao transformar um judeu na "causa dos problemas", os nazistas conseguiram convencer as pessoas que matar um judeu não era um assassinato, e sim a eliminação de um problema, e que a morte deles seria pelo bem da humanidade.

Outra consequência negativa desta visão equivocada é não sabermos valorizar cada instante da vida de um ser humano. Por exemplo, os momentos finais de um doente terminal, a vida de uma pessoa muito idosa e até mesmo a vida de um feto vão perdendo seu valor em uma sociedade que pensa que, em prol da continuidade da humanidade, podemos decidir quem pode viver e quem deve morrer. A eutanásia vem ganhando cada vez mais adeptos, até mesmo entre os médicos, que acreditam que não há sentido em prolongar a vida de alguém que está em estado vegetativo, inclusive pelo fato desta pessoa não produzir mais nada para a humanidade. Infelizmente a eutanásia é defendida por muitos como um ato de bondade, mas sua raiz verdadeira vem dos nazistas. Os alemães permitiram o assassinato de milhares de doentes mentais e pessoas inválidas a partir de 1939, em um projeto chamado "Aktion T4". Deficientes físicos e mentais eram considerados partes "inúteis" da sociedade e, por isso, eram assassinados a sangue frio. O projeto somente foi possível pois recebeu intensa contribuição dos médicos alemães. Aqueles que haviam jurado, em suas formaturas, dedicar suas vidas para curar os doentes, participaram ativamente em mais de 250 mil assassinatos, apenas por que os mortos eram considerados "inúteis". Os alemães demonstraram claramente que não sabiam dar o devido valor a uma vida humana. Passar do assassinato de inválidos e doentes mentais ao assassinato de seis milhões de judeus foi apenas um passo.

Já a visão da Torá em relação ao assassinato é completamente diferente em sua essência. A gravidade do assassinato não está relacionada com o conceito da continuidade da humanidade como um todo, e sim com o inestimável valor intrínseco de cada vida. A diferença na prática é que, mesmo quando uma pessoa não contribui mais nada para a humanidade, ainda assim é proibido matá-la. Cada minuto da vida de um paciente terminal é visto pela Torá com a mesma santidade que a vida da pessoa mais importante do mundo. Mesmo em relação a um doente mental ou um doente terminal com poucas horas de vida existe a gravíssima proibição de diminuir seu tempo de vida, mesmo que seja em alguns instantes. A Halachá (Lei Judaica) permite inclusive que um judeu desrespeite as leis de Shabat mesmo que seja apenas para prolongar um pouco mais a vida de um paciente terminal. A "bondade" de desligar os aparelhos de um doente é vista pela Torá com um ato bárbaro de assassinato e de desprezo pelo valor da vida humana. É por isso que a Torá trata o assassino intencional de maneira tão rigorosa, pois ele desprezou uma das coisas mais sagradas: uma vida humana.

Esta diferença entre a visão judaica e a visão dos outros povos é justamente o que o versículo está ressaltando. Quando alguém mata baseando-se no fato da outra pessoa estar "estragando a continuidade da humanidade", é como se ela estivesse "bajulando a terra", pois de acordo com seu ponto de vista equivocado, cada indivíduo é apenas secundário em relação à terra, isto é, em relação à humanidade como um todo, e a humanidade não deseja esta pessoa. Este ponto de vista faz com que o valor de uma vida não seja absoluto, e sim relativo. Portanto, matar alguém "em prol da humanidade" é como se fosse um ato de bajulação da humanidade.

O versículo vem nos ensinar que a "bajulação da terra" é um ato de corrupção da verdade, pois de acordo com a Torá a terra é secundária em relação a cada indivíduo. Cada ser humano foi criado à imagem e semelhança de D'us e, portanto, sua vida e sua existência têm valores inestimáveis. Cada ser humano é um mundo por si só, como afirma o Talmud (Sanhedrin 37a): "Quem salva uma vida é como se tivesse salvado o mundo inteiro". Este conceito não se aplica apenas em relação a não assassinar, mas também em relação ao respeito que devemos dar a cada pessoa, pois, apesar dos nossos defeitos, temos um valor inestimável aos olhos de D'us.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Matôt    Nm. 30:1- 32:42, Je 1:1-2:3
Mass’êi  Nm. 33:1-36:13, Je 2:4 – 28, 3:4, 4:1-2