sexta-feira, 29 de julho de 2016

ESCUTANDO OS NOSSOS SÁBIOS - PARASHÁ PINCHÁS 5776

"Certa vez soldados do exército russo vieram até a casa do Rav Yitzchak Zev Soloveitchik zt"l (Bielorússia, 1886 - Israel, 1959), mais conhecido como Brisker Rav, intimando-o a acompanhá-los. Um soldado judeu havia sido condenado à morte por dormir durante seu período de sentinela, e que este soldado havia pedido para falar com um rabino antes de morrer. Porém, para espanto dos seus alunos e dos soldados russos, o Brisker Rav se recusou a ir falar com o prisioneiro condenado à morte.

Após algum tempo, uma segunda delegação de soldados chegou à casa do Brisker Rav, exigindo que ele se apresentasse imediatamente na prisão, sob o risco de receber um duro castigo caso se recusasse. Mas o Brisker Rav não se dobrou diante das ameaças e reafirmou que não iria. Os alunos ficaram visivelmente confusos, pois além de colocar a própria vida em risco, por que o rabino não se importava com os sofrimentos daquele pobre judeu condenado à morte? Por que não queria ir confortá-lo na prisão e ajudá-lo naqueles últimos momentos difíceis?

Foi então que uma terceira delegação de soldados bateu na porta. Porém, desta vez eles não vinham para intimar o Brisker Rav a comparecer à prisão, e sim para avisá-lo que sua presença não era mais necessária. A família daquele jovem soldado havia apelado à Suprema Corte de Justiça e a sentença de morte havia sido revogada. Quando os alunos questionaram de onde o Brisker Rav havia conseguido reunir forças para aquela atitude heroica, ele explicou:

- Eu simplesmente cumpri a Halachá (Lei Judaica). De acordo com o Rambam (Maimônides), se um judeu inocente é injustamente condenado à morte por um tribunal não judaico, é proibido a um judeu entregá-lo às autoridades para que ele seja executado, mesmo que para isso seja necessário colocar a própria vida em risco. Se eu tivesse ido à prisão, o rapaz teria sido executado tão logo eu saísse. Ao seguir a Halachá, a vida daquele jovem judeu acabou sendo salva".

Muitos ensinamentos e decretos rabínicos parecem não fazer sentido. Mas eles são os verdadeiros conhecedores da Torá, e em suas atitudes eles levam em consideração muitos detalhes que nós desconhecemos. 
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Nesta semana lemos a Parashá Pinchás, que começa descrevendo um ato heroico de Pinchás, neto de Aharon HaCohen. No final da Parashá da semana passada, os povos de Moav e Midian haviam intencionalmente causado com que o povo judeu transgredisse com imoralidades e idolatria, transgressões que D'us abomina, e uma praga começou a dizimar os judeus. Até mesmo pessoas importantes transgrediram, como o príncipe da tribo de Shimon, Zimri, que cometeu um ato público de imoralidade com uma princesa de Midian chamada Kosbi. Pinchás, tomado por um espírito de "Kanaut" (zelo pela honra de D'us), se levantou e, mesmo arriscando a vida, aplicou aos dois transgressores ilustres a pena de morte, fazendo com que a praga cessasse. O total de mortos na praga foi de vinte e quatro mil judeus, e se não fosse a intervenção de Pinchás, a tragédia teria sido ainda pior.

Este ato de Pinchás é semelhante a outro evento descrito na Torá. Quando Yaacov estava voltando para casa, depois de passar muitos anos trabalhando para seu tio Lavan, sua filha Diná foi sequestrada e violentada pelo príncipe Shechem. Dois filhos de Yaacov, Shimon e Levi, inconformados com aquele ato de desonra, quiseram aplicar a justiça ao príncipe e ao resto da população, pois haviam presenciado aquela violência e não fizeram nada. Eles bolaram um plano para enfraquecer os homens da cidade e em seguida mataram todos. Aparentemente Shimon e Levi agiram corretamente, pois estavam motivados pela mesma "Kanaut" de Pinchás, isto é, o zelo pela honra de D'us e a abominação pelos atos imorais.

Porém, o que nos chama a atenção é a diferença do desfecho nos dois casos. O ato de Pinchás agradou muito a D'us, e ele foi recompensado de uma maneira especial por ter colocado a própria vida em risco pela honra de D'us. Quando Aharon e seus filhos foram apontados como Cohanim (sacerdotes) e ungidos, somente os descendentes que nasceram daquele momento em diante se tornaram Cohanim. Mas Pinchás, neto de Aharon, já havia nascido naquele momento e, portanto, não seria Cohen, apenas Levi. D'us concedeu a Pinchás, como recompensa por seu esforço, que ele e seus descendentes se tornassem Cohanim. Já o desfecho do ato de Shimon e Levi foi que, no momento do falecimento de Yaacov, enquanto alguns dos seus filhos receberam Brachót (bênçãos), Shimon e Levi foram duramente repreendidos. Porém, se Shimon e Levi também estavam movidos pela mesma "Kanaut" de Pinchás, e também colocaram suas vidas em risco para fazer o que era correto, por que o desfecho das duas histórias foi tão diferente?

Explica o Rav Yitzchak Zilberstain shlita que a característica de "Kanaut", de agir motivado pelo zelo com a honra de D'us, exige um equilíbrio perfeito de cálculos e um nível muito grande de precisão. É necessário checar o ato de acordo com diferentes pontos de vista, e deve ser levado em consideração cada detalhe, inclusive o momento e o local em que o ato será realizado. Além disso, para uma pessoa estar apta a fazer um ato de "Kanaut", ela deve ser uma profunda conhecedora das Halachót, em especial daquelas relacionadas com seu ato, pois somente assim é garantido que seu ato está completamente de acordo com a vontade de D'us. E, finalmente, a pessoa deve refletir e checar se seu ato não está sendo influenciado por nenhum desejo ou inclinação pessoal.

Em geral, para ter certeza de que não estamos sendo parciais em nosso julgamento, é necessário o aconselhamento com um grande sábio de Torá, que pode ajudar a decidir se o ato planejado é realmente correto e aplicável. E esta foi uma das diferenças fundamentais entre o ato de Pinchás e o ato de Shimon e Levi. Rashi (França, 1040 - 1105) explica que Pinchás, antes de executar seu ato de "Kanaut", se aconselhou com Moshé Rabeinu, o grande sábio da geração. Ao escutar o caso, Moshé fez todos os cálculos necessários e confirmou a Pinchás que, naquele caso e naquelas circunstâncias, aplicar a pena de morte era realmente o correto. Por isso Pinchás recebeu uma recompensa tão grande.

Já no caso de Shimon e Levi, o grande sábio da geração era seu pai, Yaacov. Porém, de acordo com Rashi, ele não foi consultado antes da execução do plano. E se Shimon e Levi tivessem se aconselhado, certamente Yaacov os teria convencido a não colocar o plano em prática, pois havia um erro no cálculo deles. Apesar da indignação de Shimon e Levi ser totalmente válida, pois a falta de justiça diante de uma desonra tão grande era algo realmente vergonhoso e imoral, eles não levaram em consideração todas as condições necessárias para fazer o ato de "Kanaut".

De acordo com o Rav Ovadia Sforno zt"l (Itália, 1475-1550), Yaacov tinha um forte motivo para que aquele ato não fosse feito, como está escrito: "E disse Yaacov para Shimon e Levi: Vocês me causaram problemas, me envergonhando diante dos habitantes da terra" (Bereshit 34:30). O Sforno explica que Yaacov estava preocupado com o "Chilul Hashem" (denegrir o Nome de D'us) que o ato de Shimon e Levi poderia causar, pois para colocar seu plano em prática, eles haviam enganado os habitantes da cidade, podendo fazer com que Yaacov, o símbolo da verdade e da retidão, fosse visto pelos outros povos como um mentiroso e enganador. Mas qual foi a enganação?

Para poder matar todos os habitantes da cidade do príncipe Shechem, Shimon e Levi bolaram um plano. Eles disseram que queriam morar junto com os habitantes, e que também aceitariam se casar entre si. Porém, com astúcia, Shimon e Levi afirmaram que havia um impedimento, pois não poderiam viver com eles como se fossem um único povo enquanto as pessoas não fizessem o Brit Milá (circuncisão). Eles garantiram que, caso todos os homens da cidade aceitassem fazer o Brit Milá, então a família de Yaacov permaneceria vivendo com eles. A verdade é que Shimon e Levi nunca tiveram a intenção de viver com eles como se fossem um povo só. Eles exigiram que os homens fizessem Brit Milá apenas para enfraquecê-los e tornar mais fácil o ato de vingança. De acordo com a Torá, o terceiro dia depois do Brit Milá é o dia em que a pessoa está mais fraca e debilitada, e foi justamente neste dia que Shimon e Levi executaram seu plano e mataram todos os habitantes, inclusive o príncipe Shechem, que havia cometido o ato de desonra com Diná.

Portanto, a grande crítica de Yaacov, e que de acordo com o seu entendimento estava acima da "Kanaut" de Shimon e Levi, é que eles não poderiam ter matado todos os habitantes depois de terem garantido a eles que, caso fizessem o Brit Milá, poderiam se unir e viver em paz com a família de Yaacov. Como eles realmente fizeram o Brit Milá, ter matado os habitantes foi uma atitude de mentira e enganação. O maior erro de Shimon e Levi foi ter garantido que viveriam com o povo do príncipe Shechem e se casariam entre si, pois eles sabiam que esta mistura e assimilação estava proibida. Estes fatores fizeram com que o ato de "Kanaut", ao invés de ter sido uma Mitzvá, acabasse sendo uma transgressão, resultando em uma merecida repreensão a Shimon e Levi. Eles ficaram tão cegos com a desonra de sua irmã que tomaram uma atitude precipitada. Apesar da grandeza deles, faltou o aconselhamento com um sábio de Torá.

Mas não é apenas um "Kanai" que precisa se aconselhar com os sábios de Torá. Cada um de nós também tem a obrigação de estar em contato com os sábios, para nos aconselharmos, escutarmos seus ensinamentos e aprendermos com seus atos. Muitas vezes tomamos decisões importantes utilizando apenas nossa lógica, mas que é muitas vezes limitada e não leva em consideração todos os aspectos necessários para uma decisão completamente equilibrada. Somos pouco conhecedores da Halachá e, portanto, suscetíveis a cometer erros por desconhecimento. Os grandes sábios de cada geração, além dos conhecimentos de Torá, ainda recebem uma "Siata Dishmaia" (ajuda especial dos Céus) para saber lidar com as questões que surgem em cada época e para vencer os desafios que se renovam.

Normalmente nossas decisões são muito influenciadas pelos nossos desejos e inclinações. Somos parciais em nossos julgamentos, e isto nos faz cometer erros em nossos cálculos. Somente nos aconselhando com alguém "de fora", que não está sob os mesmos tipos de influências, é que podemos decidir com ponderação o que é realmente o correto a se fazer em cada situação. Por isso, é muito importante ter contato com algum sábio de Torá, para nos aconselharmos nas mais diversas áreas da vida, em especial nos momentos em que fazemos escolhas que terão impactos de longo prazo.

Como na história do Brisker Rav, muitas vezes não entendemos os ensinamentos e o comportamento dos nossos sábios. Mas precisamos ter a humildade de saber que nossa dificuldade é proveniente do nosso desconhecimento da Halachá. Nossos sábios estão muito mais conectados com a espiritualidade e conhecem de maneira muito mais profunda o que D'us quer de nós. Por isso, nas decisões importantes da vida, é fundamental nos aconselharmos com um sábio de Torá se quisermos fazer o que é correto de verdade. Isto pode evitar que a pessoa cometa, de maneira equivocada, uma transgressão achando que está fazendo uma grande Mitzvá.
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 25:10-29:40, 1 Rs. 18:46-19:21

sábado, 23 de julho de 2016

EQUILÍBRIO ENTRE O MATERIAL E O ESPIRITUAL - PARASHÁ BALAK 5776

"O Sr. Jorge estava reunido com um grupo de amigos da sinagoga, no meio de uma animada conversa. De repente, ele fez um desabafo:

- Eu tenho ido à sinagoga por trinta anos. Durante este tempo, ouvi pelo menos duas mil prédicas do rabino. Porém, não consigo lembrar de quase nenhuma. Penso que estou perdendo meu tempo, e os rabinos estão desperdiçando o tempo deles dando semanalmente estas prédicas!

A conversa tomou ares de discussão, todos querendo falar ao mesmo tempo, alguns criticando, outros concordando com o argumento filosófico do Sr. Jorge. O Sr. David, que até aquele momento havia permanecido em silêncio, pediu permissão para falar:

- Eu estou casado há mais de trinta anos. Durante todo este tempo, minha esposa deve ter cozinhado pelo menos vinte mil refeições. Apesar disso, eu não consigo me lembrar do cardápio de quase nenhuma delas. Mas de uma coisa eu sei: todas elas me nutriram e me deram a força que eu precisava para fazer o meu trabalho. Se minha esposa não tivesse me dado estas refeições, hoje eu não estaria mais vivo.

- Da mesma maneira - conclui sabiamente o Sr. David - se eu não tivesse ido à sinagoga para alimentar minha fome espiritual, hoje eu não estaria vivo espiritualmente."

Precisamos nos alimentar para manter o nosso corpo, mas também precisamos nos alimentar de espiritualidade para manter a nossa alma. Somente o material e o espiritual juntos, em equilíbrio, podem nos manter vivos de verdade. 
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A Parashá desta semana, Balak, começa descrevendo o desespero do rei do povo de Moav, chamado Balak, com a aproximação esmagadora do povo judeu, que havia vencido todos os inimigos que haviam aparecido no seu caminho. Sabendo que não tinha chances de lutar contra um povo que tinha uma proteção Divina especial, Balak contratou o profeta Bilaam, que tinha o poder de amaldiçoar até mesmo povos inteiros. Porém, apesar dos esforços de Bilaam, D'us protegeu o povo judeu e as maldições se transformaram em Brachót (bênçãos).

No final da Parashá, a Torá nos descreve que Bilaam finalmente teve uma ideia de como derrotar o povo judeu: fazendo-os cometer transgressões, para que perdessem a proteção Divina e fossem castigados. Com a ajuda do povo de Midian, que nutria um ódio gratuito pelo povo judeu, a ideia de Bilaam funcionou. Seduzidos por jovens mulheres de Midian, os judeus transgrediram e terminaram fazendo idolatria, e foram castigado com uma terrível praga. Esta tragédia foi um evento muito tristes na história do povo judeu.

A tristeza que esta tragédia causou nos recorda do período de três semanas que vamos entrar na próxima semana, chamado de "Bein Hametsarim" (literalmente "entre os apertos"), que vai do dia 17 de Tamuz até o dia 9 de Av. O nome "Bein HaMetsarim" é baseado em um versículo do profeta Yirmiahu: "Todos seus perseguidores alcançaram-na dentro dos apertos" (Eichá 1:3). E este Domingo (24/07) é o dia 17 de Tamuz, um dia de luto e muita tristeza para o povo judeu, no qual jejuamos. A causa de tanta tristeza é que justamente neste dia aconteceram cinco eventos trágicos na nossa história. Neste dia Moshé quebrou as Tábuas que continham os Dez Mandamentos; durante o cerco ao Primeiro Templo, neste dia terminou o estoque de animais utilizados para os Korbanót (sacrifícios); na época do Segundo Templo, foi neste dia que as muralhas de Jerusalém foram rompidas pelos nossos inimigos; neste dia Apostamus, um oficial romano, rasgou e queimou um Sefer Torá; e também neste mesmo dia uma idolatria foi colocada dentro do Templo Sagrado.

Destes incidentes, talvez o que mais nos chama a atenção é a quebra das Tábuas. Moshé havia subido no Monte Sinai para receber a Torá, e avisou ao povo que voltaria quarenta dias depois. Porém, o povo judeu errou nos seus cálculos e ficou desesperado quando o prazo expirou e Moshé não voltou. Quando finalmente Moshé desceu do Monte Sinai, trazendo em suas mãos as Tábuas contendo os Dez Mandamentos, ele se deparou com o povo judeu cantando e dançando alegremente pela construção do bezerro de ouro, o seu novo "líder". Ao ver aquela cena terrível, Moshé quebrou as Tábuas que trazia nas mãos. O que esta quebra significou ao povo judeu?

Há um versículo que descreve um detalhe interessante sobre as Tábuas: "E as Tábuas eram feitas por D'us, e a escrita era a escrita de D'us, gravada nas Tábuas" (Shemot 32:16). A Torá está nos ensinando que as letras das Tábuas eram esculpidas, e não simplesmente escritas com tinta. A Mishná (Pirkei Avót 6:2) se aprofunda ainda mais e nos ensina que a linguagem "Charut", que significa "gravada", vem da mesma raiz de "Cherut", que significa liberdade. Desta semelhança entre as duas linguagens a Mishná aprende que somente é livre de verdade aquele que se dedica ao estudo da Torá.

Porém, este ensinamento do Pirkei Avót é difícil de ser entendido. A Torá é composta por centenas de Mitzvót, que acabam limitando muito nossa vida. Tomando como exemplo a Kashrut (leis alimentares), há muitos tipos de comidas saborosas que a Torá nos proíbe de consumir, como a carne de porco e os frutos do mar. A Torá nos traz regras para todas as áreas da vida, desde o momento em que acordamos até o momento em que vamos dormir. Então como a Mishná pode afirmar que apenas aquele que estuda Torá pode ser livre de verdade? De que liberdade a Mishná está falando? Além disso, qual é a conexão entre o entendimento mais simples das palavras do versículo, de que as palavras dos Mandamentos eram gravadas nas Tábuas, com a interpretação mais profunda dos nossos sábios, de que apenas a Torá nos dá a liberdade verdadeira?

Explica o Rav Yohanan Zweig que a dificuldade para entender a Mishná do Pirkei Avót vem do nosso conceito equivocado sobre liberdade. De acordo com o nosso entendimento, a liberdade é normalmente definida como o direito ou privilégio de agir ou se expressar sem nenhum tipo de coerção, da maneira que desejamos. Já a definição de liberdade da Torá leva em consideração o fato de que normalmente nos comportamos de uma maneira que se esconde sob o disfarce de "liberdade de expressão", mas na realidade estamos submetidos às mais diversas forças. Pensamos que somos livres, mas sem nenhum tipo de limite, na realidade somos completamente controlados pelas pressões sociais ou pelos nossos desejos físicos e emocionais. Estamos conscientes da natureza destrutiva dos nossos atos, mas nos sentimos impotentes para superar a ilusão da aceitação social e da autogratificação.

Utilizando novamente como exemplo o assunto alimentar, as pessoas acham que são livres, pois podem comer o que têm vontade, no momento em que quiserem. Mas será que somos livres de verdade? Alguma vez deixamos de comer algo gostoso por saber que faz mal à saúde? Conseguimos manter nosso autocontrole diante de uma mesa de sobremesas, mesmo sabendo do mal que o açúcar causa em nosso corpo? Quantas pessoas continuam fumando, apesar de todos os estudos que comprovam os terríveis males à saúde deste vício? Quantas vezes vestimos uma roupa apenas porque está na moda, mesmo que não é o que gostamos? Isto é liberdade?

A solução para nos libertarmos destes tipos de influências é a Torá, que nos capacita e nos dá a habilidade de superarmos estas forças coercitivas. A Torá auxilia na remoção do conflito que existe no processo de tomada de decisões, nos possibilitando nos comportar da maneira apropriada em relação aos nossos desejos. Podemos e devemos usar os nossos sentidos físicos, mas de maneira ponderada. Os desejos devem nos trazer energia, não consumi-la. É por isso que estar limitado por restrições não implica em uma perda da liberdade. As restrições da Torá são, em última instância, para o nosso próprio benefício. Elas nos impedem de fazer atos que nós realmente gostaríamos de evitar. A Torá nos dá autocontrole, e as Mitzvót são um treinamento diário para que nosso lado racional tome as decisões, não o nosso lado emocional ou os nossos desejos. A Torá nos ajuda a fazer o que é realmente bom para nós, mesmo que não seja socialmente o mais popular nem traga mais prazeres imediatos.

Este conceito também está implícito nas palavras do versículo mencionado anteriormente. As palavras dos Dez Mandamentos representam a espiritualidade, enquanto as Tábuas representam o mundo material. Se os Dez Mandamentos tivessem sido apenas escritos, como tinta sobre o pergaminho, então isto implicaria em uma imposição e coerção das palavras sobre as Tábuas. Mas o Talmud (Meguilá 2b) nos ensina que D'us fez com que as letras dos Dez Mandamentos estivessem milagrosamente suspensas nas Tábuas. Explica o Rav Yohanan Zweig que parte do milagre foi que as Tábuas se enrolaram em volta das palavras, dando forma para as letras. O que isto nos ensina? Que o material e o espiritual não são concorrentes, e sim complementares, podendo coexistir sem nenhum tipo de conflito. É possível, através do estudo da Torá, utilizar o material e o espiritual de maneira equilibrada.

Todos nós temos uma tendência natural de nos comportarmos da maneira correta. Temos um "alarme interno", chamado consciência, que nos avisa quando estamos fazendo algo errado. Mas este "alarme" pode ser abafado dentro de nós, e até mesmo desligado, por impedimentos sociais ou desejos internos que mascaram nossos verdadeiros sentimentos. A Torá nos ajuda a retirar estes impedimentos, vencendo os conceitos errados e os sistemas de valor equivocados criados pela sociedade.

Agora podemos entender, de maneira mais profunda, que a quebra das Tábuas representou a perda da liberdade verdadeira. Esta é uma das maiores tragédias do ser humano, ser escravo achando que é livre, ser dominado por seus desejos ou pelas imposições sociais e pensar que está livre para decidir. A Torá nos dá a liberdade verdadeira, pois é através dos limites e das restrições que poderemos ser quem nós queremos ser de verdade.
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

sexta-feira, 15 de julho de 2016

REFLETINDO SOBRE A VIDA - PARASHÁ CHUKAT 5776

"Um rabino certa vez perguntou para um de seus mais destacados alunos:

- Você consegue frequentemente pensar sobre D'us durante o dia?

O aluno pensou por alguns instantes e respondeu:

- Rabino, eu acordo todos os dias às 5 da manhã e estudo até o horário da reza de Shacharit. Depois eu tomo um rápido café da manhã e volto para o Beit Midrash (local de estudo de Torá), onde passo toda a manhã estudando sem parar. Faço uma curta pausa para comer algo no almoço e rezar Minchá, e depois já volto correndo para o Beit Midrash para continuar meus estudos. De noite faço mais uma pequena e rápida pausa para o jantar e a reza de Arvit, e continuo estudando até o limite das minhas forças. Quando eu já não aguento mais, eu me arrasto até o meu quarto e desabo de cansaço na cama.

Então, em um tom de desabafo, ele concluiu:

- Rabino, com tantas coisas que eu faço durante o dia, com tanto estudo de Torá e Tefilót (rezas), como você ainda queria que sobrasse tempo para pensar em D'us?"

Parece piada, mas às vezes estamos tão envolvidos com a nossa "Avodat Hashem" (Serviço Divino) que acabamos perdendo de vista o propósito do que estamos fazendo: desenvolver nosso relacionamento com D'us. 
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A Parashá desta semana, Chukat (literalmente "Lei, decreto"), termina descrevendo a história de como o povo judeu conquistou a cidade de Cheshbon das mãos dos Emorim. Na verdade, esta cidade originalmente pertencia ao povo de Moav, até que Sichon, rei dos Emorim, conseguiu derrotar Moav e conquistar a cidade, como diz o versículo: "Por isso dizem os 'Moshlim': venham para Cheshbon, que ela possa ser construída e estabelecida como a cidade de Sichon" (Bamidbar 21:27).

Mas o que significa a linguagem "Moshlim"? A explicação mais simples é que o versículo se refere àqueles que falam "Mashalim" (poemas). De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), refere-se à Bilaam, o grande profeta das nações do mundo, e seu pai Beor. Sichon tentou por diversas vezes conquistar a cidade de Cheshbon, mas falhou. Então ele contratou Bilaam e Beor, que conseguiram ajudá-lo a conquistar a cidade utilizando suas maldições. Para celebrar a vitória, Bilaam e Beor declamaram um poema, anunciando que Cheshbon, que até então era a grande fortaleza de Moav, havia se tornado a capital de Sichon, e que de lá os Emorim avançariam como fogo, devorando as outras cidades de Moav.

Porém, o Talmud (Baba Batra 78b) traz outra mensagem "oculta" nas palavras deste versículo. A linguagem "Moshlim" também significa "aqueles que dominam", e a linguagem "Cheshbon" também significa "fazer as contas". O Talmud ensina que o versículo pode ser lido da seguinte maneira: "Por isso dizem os 'Moshlim', isto é, aqueles que dominam suas más inclinações: venham para 'Cheshbon', isto é, vamos fazer as contas do mundo, considerar as perdas que temos quando fazemos uma Mitzvá comparado com o que ganhamos com ela, e o que ganhamos com uma transgressão comparado com o que perdemos com ela".

Nossos sábios explicam que "Cheshbon Hanefesh" é o ato de refletir sobre as nossas atitudes, e envolve a revisão de quais são os nossos objetivos na vida e a avaliação se estamos ou não vivendo de acordo com estes objetivos. As Mitzvót têm seus preços, que são os investimentos financeiros, o nosso tempo e a nossa dedicação, mas trazem recompensas eternas no Olam Habá (Mundo Vindouro). Já as transgressões têm seus benefícios momentâneos, que pode ser algum tipo de prazer material, mas o preço a ser pago é uma perda por toda a eternidade. Aquele que faz Cheshbon HaNefesh reflete sobre as perdas e ganhos, e certamente se esforçará para cumprir mais Mitzvót e evitar a todo custo as transgressões.

Mas este ensinamento do Talmud desperta um grande questionamento, pois aparentemente apenas aqueles que dominam suas más inclinações nos incentivam a fazer "Cheshbon Hanefesh", implicando que aqueles que não dominam suas más inclinações não acreditam que a pessoa deva fazer "Cheshbon Hanefesh". Mas será que há alguém que acha que não devemos refletir sobre os nossos atos? Que mensagem o Talmud quer nos transmitir?

Explica o Rav Moshe Chaim Luzzato zt"l (Itália, 1707 - Israel, 1746), mais conhecido como Ramchal, em sua obra "Messilat Yesharim", que "aqueles que dominam suas más inclinações" são as pessoas que conseguiram desenvolver um entendimento mais profundo sobre as artimanhas do Yetser Hará (má inclinação), e por isso estão conscientes da necessidade de estarem sempre vigilantes contra as táticas que ele utiliza para nos fazer transgredir. Estas pessoas sabem que a ferramenta mais importante para vencer o Yetser Hará é o Cheshbon Hanefesh constante, e por isso sempre incentivam as outras pessoas a também fazerem Cheshbon HaNefesh.

Já "aqueles que não dominam suas más inclinações" são aqueles que não estão conscientes de como o Yetser Hará está constantemente nos enganando e nos encaminhando para os maus atos e para um estilo de vida indesejável. Esta pessoa vive de forma tão despreparada em relação às forças do Yetser Hará que passa a vida inteira tropeçando, como um cego que caminha na escuridão, inconsciente dos numerosos obstáculos que a aguardam pela frente. O Talmud não quer ensinar que este tipo de pessoa não concordaria sobre a importância do Cheshbon Hanefesh. Porém, por não entender como funcionam os ataques do seu Yetser Hará, ela não reconhece sozinha a necessidade de fazer Cheshbon Hanefesh, e acredita que está sempre tudo bem.

Qual é o principal fator que causa com que uma pessoa perca o entendimento de qual é o propósito verdadeiro da vida? Explica o Ramchal que as pessoas ficam tão absorvidas em suas atividades diárias que acabam não tendo a oportunidade de parar e verificar a direção que suas vidas estão tomando. Na realidade, esta é uma das principais táticas do Yetser Hará, de nos trazer cada vez mais ocupações e atividades, pois o Yetser Hará sabe que se a pessoa parasse para refletir e analisasse suas ações, então ela reconheceria as drásticas mudanças necessárias e consertaria seus atos. Então o Yetser Hará nos deixa tão ocupados que não sobra tempo livre nem mesmo para pensarmos sobre a direção das nossas vidas.

De acordo com o Rav Yehonasan Gefen, este conceito pode ser resumido em uma simples frase: "Há uma grande diferença entre uma atividade e uma realização". Uma pessoa pode ser extremamente ocupada, mas se ela parar e examinar o que está realmente realizando de maneira significativa na vida, pode ficar decepcionada. Muitas vezes estamos ocupados, realmente ocupados. Mas o que estamos fazendo hoje em dia fará alguma diferença em longo prazo? Estamos investindo nosso tempo e nossas energias nas coisas certas?

Se o Rav Moshe Chaim Luzzato já apontava como grande problema, há mais de 300 anos, as avalanches de atividades que surgem no nosso cotidiano, o que dizer do nosso desafio atual, em um mundo moderno e digital? Estamos saturados com aparelhos e tecnologias que conseguem nos manter ocupados e distraídos 24 horas por dia. Praticamente não conseguimos manter mais nenhuma conversa sem sermos interrompidos por uma chamada de celular, por um e-mail ou por uma mensagem no whatsapp. A consequência é que não estamos nenhum instante "a sós" para avaliar a direção das nossas vidas. O Cheshbon Hanefesh regular e constante nos ajuda a lembrar do nosso objetivo verdadeiro e verificar se estamos indo no caminho correto. Com o nosso novo desafio digital, um momento ideal para o Cheshbon Hanefesh é o Shabat, um dia no qual nos desconectamos dos nossos aparatos tecnológicos e podemos nos conectar com as nossas almas.

Porém, diferente do que poderíamos pensar, esta dificuldade não é encontrada apenas entre os que estão afastados da espiritualidade. Mesmo aqueles que vivem de acordo com a Torá e cumprem Mitzvót também podem ser atacados pelo mesmo tipo de Yetser Hará, que nos impede de viver a vida de uma maneira efetiva. Como na história do estudante ocupado com seus estudos, é mais difícil encontrarmos 5 minutos para fazermos Cheshbon Hanefesh do que encontrarmos 10 horas para estudar Torá. Podemos estudar Torá e cumprir Mitzvót o dia inteiro, mas fazer isso de uma maneira completamente mecânica e sem nenhuma Kavaná (intenção). Sem reflexão, sem a conscientização do nosso objetivo de se conectar constantemente com D'us, podemos estar o dia inteiro ocupados e, ao mesmo tempo, completamente desconectados.

Tudo o que é espiritualmente difícil de ser realizado é um sinal de que neste ato há muita santidade e o Yetser Hará quer fazer de tudo para nos impedir. O Cheshbon HaNefesh constante é difícil, sempre surgirão motivos e desculpas para não fazê-lo. Porém, se nos esforçarmos e vencermos nossa má inclinação, poderemos usar esta ferramenta especial, que pode mudar nossa vida e nos ajudar a não estar apenas ocupados, mas realmente viver a vida de uma maneira plena e significativa.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

sexta-feira, 8 de julho de 2016

DISCUSSÕES CONSTRUTIVAS - PARASHÁ KORACH 5776

"O Rav Yehuda Zev Segal zt"l (Inglaterra, 1910 - 1993), Rosh Yeshivá (Diretor espiritual) de Manchester, certa vez criticou publicamente certa organização. Sua opinião encontrou uma enorme resistência das pessoas, e muitos se declararam abertamente contra ele. Apesar de toda a repercussão negativa, o Rav Segal estava convicto de suas palavras e se manteve firme em seu posicionamento.

Algum tempo depois, um dos diretores daquela organização que havia sido criticada resolveu visitar o Rav Segal para discutir com ele o assunto. Quando o homem chegou à Yeshivá, recebeu do Rav Segal um presente. O homem abriu o pacote e viu que era um livro, o "Sefer Chafetz Chaim", e notou que na primeira página estava escrito uma calorosa Brachá (benção) a ele. O homem ficou atônito, sem entender por que seu "adversário", que estava falando de forma tão dura contra sua organização, agora o estava presenteando e lhe dando tantas Brachót. O Rosh Yeshivá, ao perceber o questionamento nos olhos do homem, explicou:

- Aprendi a me comportar desta maneira com o Rav Israel Salanter zt"l (Lituânia, 1810 - Prússia, 1883). Escutei que sempre que ele se envolvia em um debate ideológico com alguém, antes ele presenteava a pessoa, para deixar claro que a discordância era puramente ideológica e não havia nada pessoal envolvido"

Esta é a forma como devemos nos comportar. Mesmo nos casos em que seja realmente justificável se envolver em algum tipo de discussão, temos que deixar claro que não se trata de algo pessoal. 
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Nesta semana lemos a Parashá Korach, cujo tema central é a rebelião de Korach contra seu primo Moshé e as trágicas consequências desta grave transgressão. A rebelião de Korach é citada como o modelo de "Machloket" (discussão, disputa) que não é "Leshem Shamaim" (em nome dos Céus), como está escrito: "Toda Machloket que é Leshem Shamaim está destinada a se manter; mas aquela que não é Leshem Shamaim não está destinada a se manter. Qual é a Machloket que é Leshem Shamaim? A Machloket entre Hilel e Shamai. E qual é a Machloket que não é Leshem Shamaim? A Machloket de Korach e seu grupo" (Pirkei Avót 5:17). Nossos sábios estão ensinando que a Machloket de Korach foi apenas por motivos egoístas e interesses pessoais.

Porém, este ensinamento do Pirkei Avót levanta um grande questionamento. Aparentemente Korach e seu grupo confrontaram Moshé com questões ideológicas genuínas, não simplesmente ataques pessoais. Segundo o que a Parashá escreve explicitamente, Korach argumentou que todo o povo judeu era sagrado, pois todos haviam pessoalmente escutado D'us no momento da entrega da Torá no Monte Sinai. Portanto, de acordo com esta lógica, Moshé e Aharon não tinham o direito de pegar para si as duas maiores posições da nação. Korach e seu grupo alegavam que deveria haver uma divisão igualitária de poder entre todos do povo judeu, e alguns poucos não deveriam ser mais beneficiados do que outros. Apesar de, em última instância, haver uma grave falha na lógica de Korach, pois a escolha de Moshé e Aharon havia sido Divina, sua rebelião estava aparentemente baseada em argumentos racionais e na luta por igualdade. Então por que o Pirkei Avót afirma, com tanta convicção, que a Machloket de Korach não era Leshem Shamaim?

A resposta está em um Midrash (parte da Torá Oral), que afirma que a verdadeira motivação de Korach era atacar pessoalmente Moshé e Aharon. Korach esperava ser o próximo na linha de liderança da família "Kehati", uma das famílias da tribo de Levi, e ficou extremamente irritado e decepcionado quando seu primo, Elizafan, que era mais novo do que ele, foi o indicado para a posição. Este foi o verdadeiro motivo que desencadeou em Korach a vontade de se rebelar contra a liderança de Moshé e Aharon, um motivo egoísta e baseado nos seus próprios interesses.

Portanto, de acordo com as palavras do Midrash, fica claro que a luta ideológica de Korach e sua força de argumentação eram, na realidade, apenas um pretexto para encobrir seu desejo por honra. Korach se apresentou como sendo um "defensor do povo", alguém que buscava a igualdade entre todos, mas na verdade ele estava apenas buscando seus próprios interesses egoístas. Infelizmente tudo o que Korach conseguiu foi causar a si mesmo, à sua família e aos seus seguidores terríveis castigos aplicados diretamente por D'us.

Mas por que a Torá nos deixa a impressão de que havia uma lógica na argumentação de Korach, a ponto de ser necessário um Midrash para esclarecer que a sua Machlóket não era Leshem Shamaim? Pois se perguntássemos a Korach se ele considerava seus atos Leshem Shamaim, ele certamente responderia, sem sombra de dúvidas, que sim. Ele se convenceu, e convenceu outras pessoas, de que estava certo em sua Machloket, e racionalizou que seus atos eram justificáveis e corretos. Korach queria a grandeza, mas terminou em total esquecimento.

Há muitas lições que podemos aprender de Korach, mas uma das principais é que uma pessoa pode se convencer de que está agindo Leshem Shamaim quando critica os outros, enquanto está apenas sendo enganada pelo seu Yetzer Hará (má inclinação). Muitas vezes acreditamos que estamos defendendo a verdade, e estamos dispostos a ir até o fim por ela. Porém, este comportamento vem sempre acompanhado de um grande risco, como ocorreu com Korach, de que a motivação verdadeira por trás dos nossos atos é apenas o egoísmo, que pode desencadear uma Machloket que não é Leshem Shamaim e causar danos a todos os envolvidos.

É muito fácil encontrar justificativas para criticar pessoas, ou até mesmo grupos inteiros, utilizando a premissa de que é permitido por ser "Leshem Shamaim". Entretanto, é necessário um grande esforço de autoavaliação para termos a certeza de que estamos realmente agindo com as motivações corretas. De acordo com o Rav Isroel Meir HaCohen zt"l (Bieloríssia, 1838 – Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, para que palavras que denigrem outro ser humano não sejam consideradas Lashon Hará (maledicência), não é suficiente que apenas traga benefício para quem está escutando. Ele enumera sete condições que devem ser preenchidas para nos permitir expressar qualquer tipo de crítica sobre outra pessoa. Uma destas condições, talvez uma das mais difíceis de serem cumpridas, é que aquele que faz a crítica não pode sentir absolutamente nenhuma satisfação por estar criticando o próximo. E para entender o quanto esta condição é difícil, basta refletirmos sobre quantas vezes na vida conseguimos fazer alguma crítica sem nenhum sentimento interno de satisfação com a vergonha causada àquele sobre quem estamos falando.

De acordo com o Rav Yehonasan Gefen, se não tomarmos muito cuidado, podemos facilmente cair nas armadilhas do Lashon Hará e gerar uma Machloket que não é Leshem Shamaim. Isto já causou, durante a história do povo judeu, com que diferentes grupos judaicos se olhassem entre si com desprezo, um rotulando o outro de maneira negativa. Este tipo de erro pode não parecer tão grave, mas de acordo com o Rav Naftali Tzvi Yehuda Berlin zt"l (
Rússia, 1816 - Polônia, 1893), mais conhecido como Netziv, foi este tipo de atitude que levou à destruição do nosso Segundo Templo. Apesar das pessoas daquela geração serem grandes Tzadikim (Justos), que se dedicavam ao estudo da Torá, eles acabaram desenvolvendo um ódio gratuito em seus corações, e qualquer um que agia de forma diferente do que eles achavam correto era imediatamente rotulado como "Apikoires" (negador de D'us). Se passados mais de dois mil anos ainda não tivemos o mérito de reconstruir nosso Templo, é sinal de que continuamos tropeçando neste mesmo erro, geração após geração. Precisamos dar um basta e terminar este terrível círculo vicioso de ódio gratuito que, apesar de ser muito grave, vem sempre disfarçado de "discussão Leshem Shamaim".

Então qual é a maneira correta de lidar com uma discordância de opinião? A resposta está no Pirkei Avót: "Qual é a Machloket que é Leshem Shamaim? A Machloket entre Hilel e Shamai". As discussões entre Hilel e Shamai, dois dos maiores sábios de sua geração, e posteriormente entre os alunos de Hilel e os alunos de Shamai, apesar de terem sido muito intensas, foram consideradas Leshem Shamaim por não envolverem motivações pessoais, e sim somente o desejo verdadeiro de chegar à "Emet" (verdade). Uma das provas de que as discussões eram Leshem Shamaim é que, conforme o Talmud (Yevamot 13b), apesar de eles discutirem fortemente em várias áreas da Halachá (Lei Judaica), isto não impediu que seus filhos se casassem entre si. Não há nada de errado em discordar, mas somente se a discordância é baseada em um desejo sincero de chegar à Emet. Pois se for assim, as duas partes não vão confundir diferenças ideológicas com hostilidades pessoais.

O principal é sempre fazer uma separação entre o indivíduo e seu comportamento ou conduta. Alguém pode errar, e mesmo assim continuar sendo uma boa pessoa. Fazer esta separação não é uma tarefa fácil, e por isso precisamos melhorar muito na área de "Bein Adam LeHaveiró" (entre o homem e seu semelhante), através de muito estudo de Torá, para aprendermos a olhar as outras pessoas da maneira correta, mesmo quando elas estiverem agindo de uma maneira que julgamos ser errada. O "ódio gratuito", que destrói nossos relacionamentos, destruiu também o nosso Templo Sagrado. Somente com o devido cuidado com o próximo poderemos começar a consertar este erro que causa, há tantos séculos, muita dor e sofrimento.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 16:1-18:32, 1 Sm. 11:14-12:22

sexta-feira, 1 de julho de 2016

OÁSIS DE TRANQUILIDADE - PARASHÁ SHELACH LECHÁ 5776

"Havia uma nação que vivia em paz e harmonia. As pessoas se respeitavam e se amavam, e havia um espírito de tranquilidade pairando no ar. Porém, certo dia, a paz foi quebrada por uma ameaça que se aproximava de longe. Outra nação ameaçava a soberania e a tranquilidade daquele lugar paradisíaco. Milhares de soldados foram enviados com a missão de impedir a aproximação dos inimigos.

Infelizmente a guerra se estendeu por muitos e muitos anos. Neste intervalo, o bondoso rei daquela nação de paz teve um filho. O príncipe herdeiro foi crescendo e, desde pequeno, foi sendo treinado para ser um bom líder e guerreiro. Quando completou 18 anos, foi enviado para a frente de batalha para liderar seus soldados. Por seis dias na semana o príncipe permanecia comandando os soldados naquele ambiente hostil de batalha, mas sempre o rei exigia que o filho voltasse ao palácio no sétimo dia. Certa vez o príncipe questionou a conduta de seu pai. Ele não entendia porque devia voltar e interromper a guerra uma vez por semana. O rei então explicou:

- Filho, você nasceu no meio de uma terrível guerra. Mas eu quero que você saiba que a vida verdadeira não é essa. A vida verdadeira é de paz, tranquilidade e alegria. Por isso eu peço para que você volte uma vez por semana para a tranquilidade do palácio, para que você sinta o que é a vida verdadeira e não se esqueça".

Assim também é o nosso Shabat. Por seis dias nós vamos para a "guerra" do dia-a-dia, a luta pelo sustento, com dificuldades, estresse e muita correria. Porém, esta não é a vida verdadeira. Então o Shabat nos recorda da nossa essência espiritual e da nossa conexão com D'us. Um dia por semana, no Shabat, nós voltamos à tranquilidade do "Palácio do Rei", para não esquecermos como é a vida real.
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A Parashá desta semana, Shelach Lechá (literalmente "Envie para você"), continua descrevendo alguns dos erros trágicos cometidos pelo povo judeu no deserto. A Parashá começa com o erro dos espiões, que falaram mal da Terra de Israel, causando com que o resto do povo perdesse sua Emuná (fé) em D'us e chorasse. Toda aquela geração que chorou recebeu um decreto Divino de não entrar em Israel.

Além desta transgressão coletiva, a Parashá também descreve uma transgressão feita por um indivíduo do povo judeu, como está escrito: "Quando o povo judeu estava no deserto, encontraram um homem recolhendo lenha no dia do Shabat" (Bamidbar 15:32). Este homem, apesar de ter sido advertido sobre a gravidade de seu ato, continuou recolhendo lenha. Recolher lenha espalhada é uma das 39 Melachót (trabalhos construtivos) que D'us nos proibiu fazer no Shabat, e aquele homem ignorou a proibição, sendo condenado à morte. Porém, algo nos chama a atenção no início do versículo que descreve a transgressão. Não era óbvio que o povo judeu estava no deserto quando isto aconteceu?

Rashi (França, 1040 - 1105) explica que pelo fato da Torá identificar o episódio como tendo ocorrido quando o povo judeu estava no deserto, algo aparentemente desnecessário, nós podemos deduzir que a transgressão ocorreu imediatamente depois deles terem entrado no deserto. E como sabemos que o povo judeu cumpriu o primeiro Shabat no dia da entrega da Torá, então Rashi conclui que esta transgressão ocorreu no segundo Shabat do povo judeu.

Mas por que a Torá escreveu que o povo judeu estava no deserto se o versículo se refere ao erro de um único indivíduo? Explica o Rav Eliahu zt"l (Lituânia, 1720 - 1797), mais conhecido como Gaon MiVilna, que na realidade este incidente não envolveu apenas o erro de um único indivíduo. O povo inteiro havia sido displicente no cumprimento do Shabat, e a transgressão feita em público foi apenas o reflexo desta displicência do povo todo. Apesar de ter sido o erro de um único indivíduo, é como se o povo inteiro tivesse participado. 

Porém, como entender esta explicação do Gaon MiVilna? O Midrash (parte da Torá Oral) nos ensina que guardar o Shabat é equivalente a guardar todas as outras Mitzvót da Torá juntas. Como aquela geração, chamada de "Geração do Conhecimento", pessoas que haviam recém recebido a Torá diretamente de D'us no Monte Sinai, puderam ser negligentes no cumprimento do Shabat? Como pode ser que, ainda no segundo Shabat que eles cumpriram, já houve um descuido tão grande, e envolvendo o povo inteiro?

Poderíamos pensar que o desleixo no cumprimento do Shabat foi consequência desta Mitzvá ter sido imposta sobre os judeus, e que esta nova obrigação havia pesado demais para eles. Porém, de acordo com outro Midrash, é difícil utilizar este argumento, pois o Midrash afirma que enquanto os judeus ainda eram escravos no Egito e Moshé morava no palácio do Faraó, ele conseguiu convencer o Faraó a dar o dia de Shabat como um dia de descanso para o povo judeu. Com grande astúcia, Moshé argumentou ao Faraó que um dia de descanso semanal faria com que houvesse um aumento na produtividade durante o resto da semana. Isto quer dizer que, mesmo enquanto ainda estavam no Egito, os judeus já estavam há anos acostumados com a Mitzvá de Shabat. Então por que neste momento eles mudaram de atitude em relação ao cumprimento do Shabat?

Explica o Rav Yohanan Zweig que podemos encontrar a resposta em um fenômeno que está sendo observado neste século: há um segmento inteiro do povo judeu que, apesar de viver na Terra de Israel, está completamente desconectado do cumprimento da Torá e das Mitzvót. Isto parece estranho, pois a Torá afirma que a Terra de Israel é um lugar de santidade, onde a conexão com D'us é mais direta e onde podemos desenvolver um relacionamento de maior conexão espiritual. Então como é possível um segmento inteiro do nosso povo viver neste lugar tão sagrado e, ainda assim, estar tão afastado de D'us?

A explicação é que, infelizmente, existe o conceito equivocado de que o único propósito para um judeu cumprir as Mitzvót é manter nossa identidade judaica e garantir a nossa continuidade. A consequência deste equívoco é que as pessoas tendem a pensar que viver na Terra de Israel substitui a necessidade de cumprir as Mitzvót, como se viver na nossa pátria fosse suficiente para manter a nossa identidade judaica e a nossa continuidade. A própria bandeira de Israel contém um "Talit", como se estivesse transmitindo a mensagem: "É suficiente que o Talit esteja em nossa bandeira, e não é necessário mais cumprir esta Mitzvá".

A grande falha neste tipo de pensamento é o total desconhecimento das leis espirituais da Torá. As Mitzvót são o veículo através do qual nós estabelecemos e mantemos nosso relacionamento com D'us. O Midrash nos ensina que as Mitzvót foram entregues justamente para "Letzaref" o povo judeu, isto é, para unir aqueles que estão comandados com Aquele que comandou. Se não há Mitzvót, simplesmente não é criado um relacionamento com D'us. O Ramban zt"l  (Espanha, 1194 - Israel, 1270), também conhecido com Nachmânides, ressalta que, pelo fato de conseguirmos estabelecer um relacionamento mais íntimo com D'us na Terra de Israel, temos uma responsabilidade ainda maior de cumprir as Mitzvót estando lá.

Este foi o grande erro do povo judeu no deserto. Como eles estavam vivendo como anjos, sendo alimentados com o Man, uma comida sobrenatural, e isolados das outras nações, eles acreditaram que não precisavam mais do Shabat para se conectarem com D'us e manterem sua identidade. Além disso, como eles já tinham um relacionamento com D'us muito elevado todos os dias da semana, eles acreditaram que o Shabat não era mais necessário. Eles falharam em reconhecer que são as Mitzvót que criam este relacionamento com D'us. Esta percepção equivocada infelizmente levou o povo inteiro a ser displicente no cumprimento do Shabat, afetando o cumprimento desta Mitzvá. A consequência foi o primeiro judeu que desrespeitou o Shabat de forma pública.

Além de ser um Mandamento de D'us, que nos conecta a Ele e energiza nossa alma, o Shabat também ajuda a manter a nossa identidade judaica e permite a cada judeu desfrutar, uma vez por semana, de um dia de relacionamento íntimo com D'us. O Shabat é um oásis no meio das "guerras" que travamos durante a semana inteira, com preocupações, pressa e estresse. Uma vez por semana nos desconectamos do material para nos conectarmos, de forma verdadeira, ao espiritual.

Em hebraico, "vida" é "Chaim". Porém, "Chaim" é uma palavra no plural, não no singular. Não existe apenas uma vida, a vida material, mas sim a combinação desta nossa vida material com a nossa vida espiritual, eterna. Quem nos sustenta no mundo material são os elementos físicos, como a comida, a água e o ar. Mas o que nos sustenta espiritualmente, e nos sustentará por toda a eternidade, são as Mitzvót que cumprimos. Quando a Torá concluiu que aquele que juntou gravetos no Shabat foi punido com pena de morte, estava dando um importante aviso para todo o povo: não existe vida verdadeira sem as Mitzvót. Quando nos desconectamos de D'us, a Fonte de toda a energia vital, nos desconectamos da nossa vida eterna. O Shabat, entre todas as Mitzvót, é um ótimo lembrete de que usufruir do mundo material é apenas algo passageiro, enquanto desenvolver o nosso lado espiritual é a nossa meta verdadeira.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 13:1-15:41, Js 2:1-24