sexta-feira, 30 de novembro de 2012

BONDADE ATÉ NOS PENSAMENTOS - PARASHÁ VAISHLACH 5773


Daniel era um homem de negócios muito rico e bem sucedido. Certa vez ele estava atrasado para uma importante reunião do outro lado da cidade e percebeu que, com o terrível trânsito de Nova York no fim da tarde, não chegaria a tempo se fosse de carro. Daniel decidiu então ir de trem e correu para a estação central. Logo na entrada da estação um rapaz parou para conversar com ele. Como o rapaz não estava bem vestido, Daniel pensou que se tratava de um mendigo pedindo esmola. Apressadamente tirou do bolso algumas moedas e estendeu ao rapaz, mas ele não aceitou e explicou:

- Senhor, eu não estou pedindo esmola. Eu vendo lapiseiras aqui na estação de trem. O senhor não quer comprar uma?

Daniel estava com muita pressa, mas sentiu vergonha por ter achado que o rapaz era um mendigo. Perguntou o preço, tirou o dinheiro da carteira e deu ao rapaz, que imediatamente entregou-lhe uma lapiseira. Daniel guardou a lapiseira no bolso e, antes de correr para pegar o trem que se aproximava, disse ao rapaz:

- Obrigado. Sabe, eu tenho um bom olho clínico. Você parece ser um excelente homem de negócios.

Alguns anos mais tarde, Daniel passou novamente pela estação central e viu uma enorme loja que vendia produtos de papelaria. Atrás do balcão estava um homem jovem que, ao ver Daniel, correu ao seu encontro. O rapaz perguntou se Daniel lembrava-se dele. Sentindo um pouco de vergonha, Daniel confessou que não. Então o homem se apresentou:

- Senhor, eu sou aquele rapaz que há alguns anos vendeu a você uma lapiseira aqui na estação central. Apesar de ter passado tantos anos e eu ter vendido lapiseiras para muita gente, eu nunca mais vou me esquecer do seu rosto, pois você mudou a minha vida. Naquela época, eu achava que não tinha valor algum. Minha vida era apenas ficar vendendo lapiseiras para as pessoas na estação de trem. A grande maioria me ignorava, as pessoas passavam como se eu não existisse, como se eu fosse invisível. Mas você falou comigo. E mais do que isso, você me chamou de "homem de negócios". Isso me deu autoconfiança, me fez mudar a forma como eu me enxergava. Eu comecei a me esforçar mais, fiz um empréstimo no banco e investi no negócio de venda de lapiseiras. Hoje eu tenho 15 lojas enormes, espalhadas por todas as estações de trem da cidade. Tudo graças ao seu apoio.

Naquele dia Daniel aprendeu uma das lições mais importantes de sua vida: nós não temos a mínima ideia de quanto um ato de bondade pode ajudar a vida de outra pessoa. Mesmo uma pequena atitude ou uma simples palavra de incentivo podem fazer uma grande diferença.


********************************************
 
Nesta semana lemos a Parashá Vaishlach, que descreve o reencontro dos irmãos Yaacov e Essav. Mesmo após tantos anos, o sangue de Essav ainda fervia por Yaacov ter "roubado" a sua primogenitura. Mas o encontro, que poderia ter acabado em tragédia, felizmente terminou em paz, com os dois irmãos se abraçando e chorando. Depois disso, cada um seguiu seu caminho.

E assim diz o versículo que descreve o momento em que Yaacov, apreensivo, estava reunindo sua família para o reencontro com Essav: "E ele se levantou naquela noite, pegou suas duas esposas, suas duas escravas e seus onze filhos e atravessou o rio Yabok" (Bereshit 32:23). Porém, onde estava Diná, a filha de Yaacov com Lea? Por que o versículo não diz nada sobre ela? Explica Rashi, comentarista da Torá, que Yaacov tinha medo que seu irmão Essav, o Rashá (malvado), visse Diná, gostasse dela e quisesse casar-se com ela. Por isso, Yaacov trancou-a em uma caixa para mantê-la longe dos olhos de seu irmão durante o reencontro. Sua ideia funcionou e Essav nem mesmo chegou a conhecer Diná.

A Torá conta que, algum tempo depois, Diná foi sequestrada e desonrada por Shechem, o príncipe dos Hivitas, um dos povos que vivia na terra de Israel. Nossas limitações não nos permitem entender exatamente todos os motivos pelos quais D'us nos manda um sofrimento, mas nossos sábios revelam que um dos motivos desta terrível tragédia ter acontecimento foi para castigar Yaacov por ter escondido sua filha de Essav. Ele foi castigado "Midá Kenegued Midá" (medida por medida), isto é, como Yaacov não quis entregar Diná a um conhecido, seu próprio irmão, ela foi entregue a um completo estranho. Explica Rashi que talvez Diná, uma mulher Tzadiká (Justa), poderia ter ajudado Essav a se arrepender de seus erros e a se tornar uma pessoa boa e honesta. Ao esconder sua filha, ele tirou de Essav esta possibilidade.

Porém, deste comentário do Rashi fica um enorme questionamento. Por que este ato de Yaacov foi considerado um erro? Ele deveria ter casado sua única filha com aquele grande Rashá, que vivia uma vida de crimes e da busca desesperada por mais e mais prazeres? Ele deveria ter arriscado o futuro de sua própria filha apenas para apostar na improvável chance de que Diná ajudaria Essav a se arrepender? Além disso, aquele reencontro com Essav poderia ter se transformado em uma sangrenta batalha, e era obrigação de Yaacov proteger sua filha. Então por que mereceu um castigo tão rigoroso?

Explica o Saba Mi Slobodka que, na maioria dos casos, as pessoas são cobradas apenas pelos erros cometidos na prática, não por seus pensamentos. Mas existem algumas situações em que a pessoa pode ser cobrada por erros cometidos em seu pensamento, mesmo que o ato por si não tenha nada de errado. É o caso de pessoas em elevados níveis espirituais, como os patriarcas. D'us cobra destas pessoas um comportamento exemplar, e mesmo seus erros mais sutis não passavam despercebidos.

Talvez este conceito explique a cobrança tão rigorosa sobre Yaacov e nos ajude a enxergar seu erro. Provavelmente o ato de Yaacov foi acertado, isto é, havia motivos corretos para que Yaacov escondesse sua filha e não quisesse entregá-la para Essav. Porém, ele deveria ter sofrido por não poder fazer um ato de Chessed (bondade) com seu irmão. Yaacov deveria ter sentido uma grande dor por não conseguir ajudar Essav a consertar seu caminho na vida. E mesmo se Yaacov sentiu algum nível de dor e sofrimento, não sentiu o suficiente dentro do que era esperado no seu elevado nível espiritual. Por isso, um ato que seria correto se transformou em um grave erro, que teve consequências trágicas para Yaacov e toda sua família.

Daqui aprendemos uma lição muito importante: o quanto D'us é rigoroso conosco em relação ao Chessed que deixamos de fazer aos outros. Por que? Pois D'us criou o mundo baseado em Chessed. O Chessed é um dos pilares que sustenta o mundo, e deixar de fazer Chessed é considerado, portanto, como se estivéssemos contribuindo para destruir o mundo. A Torá traz inúmeros exemplos da gravidade de não se ocupar em ajudar o próximo com toda a força que podemos. A cidade de Sdom e todos seus habitantes foram destruídos por terem criado leis que proibiam fazer Chessed com os necessitados, o contrário do propósito da criação do mundo. Sdom tentou derrubar um dos pilares do mundo, então D'us, Midá Kenegued Midá, derrubou o pilar de Sdom.

Uma das maiores demonstrações da gravidade de deixar de fazer um único ato de Chessed está no final da nossa Parashá. Quando a Torá descreve os descendentes de Essav, menciona uma mulher chamada Timná, que foi concubina de Elifaz, o filho de Essav. Por que a Torá menciona a concubina de Elifaz se nem as suas esposas foram mencionadas? Explica Rashi que Timná era uma mulher de descendência nobre que, influenciada pelos bons atos de Avraham, desejou se unir ao povo judeu. Ela estava disposta a até mesmo abandonar a nobreza para fazer parte da herança espiritual de Avraham. Porém, ela não foi aceita por Avraham. Por que ele não a aceitou, se nossos sábios descrevem seu imenso e incansável esforço para difundir o monoteísmo e trazer as pessoas ao caminho correto? Respondem nossos sábios que Avraham tinha motivos fortes para isso. Talvez ele tenha visto, com seu nível profético, algo muito ruim na alma de Timná, que a impedia de fazer parte do povo judeu, e por isto não a aceitou.

Mas Avraham tinha feito um erro em suas contas. Na verdade, apesar de Timná não ser apta, ele deveria tê-la aceitado, pois talvez assim ela conseguisse vencer o seu lado ruim. Qual foi a consequência deste erro de Avraham? Desesperada para fazer parte da família dos patriarcas, Timná se sujeitou a até mesmo ser a concubina de Elifaz. E deste relacionamento nasceu Amalek, que deu origem ao povo que, durante toda a história, lutou contra o povo judeu e nos causou muita dor e sofrimento. Amalek é a encarnação do mau, é a sombra que tenta constantemente escurecer a presença de D'us no mundo. E é para Amalek que damos força toda vez que deixamos de fazer Chessed com os outros.

É necessário ressaltar que obviamente estes erros de Avraham e Yaacov foram erros pequenos. Eles eram gigantes espirituais, eram pessoas que dedicaram suas vidas a cumprir a vontade de D'us. Suas falhas foram tão pequenas que não estão nem mesmo mencionadas explicitamente na Torá, somente sabemos delas através de Midrashim (parte da Torá Oral) e da transmissão dos nossos sábios. Para que possamos enxergar os erros deles com os nossos olhos, foi necessário aos nossos sábios colocar uma "lente de aumento", por isso os erros parecem tão grandes. Mas ao mesmo tempo vemos que, apesar de terem sido erros pequenos, as consequências foram desastrosas, para eles e para o povo judeu, nos ensinando o quanto D'us aprecia nossos atos de bondade e quanto a falta deles, mesmo em relação a uma única pessoa, pode trazer consequências terríveis para o mundo todo muitas gerações depois.

Baseado em versículos da Torá, nossos sábios dizem que a característica de bondade de D'us é 500 vezes mais forte do que a Sua justiça estrita. Se deixar de fazer um Chessed apenas em nível de pensamento trouxe consequências tão graves, imagine quanto mérito e quantas consequências boas podemos trazer ao mundo ao nos ocuparmos ativamente em fazer Chessed com as pessoas. Com um simples ato de bondade, como um incentivo ou uma demonstração de apoio, podemos dar vida para uma pessoa. Chessed não se faz apenas com dinheiro, se faz com um sorriso, com um abraço, com um simples telefonema. Chessed pode ser feito com os ricos e com os pobres, com os doentes e com aqueles que estão saudáveis, com todos aqueles que precisam de uma mão estendida ou de uma palavra amiga. Se Chessed é um dos pilares do mundo, ao fazer Chessed estamos nos comportando como D'us e, como sócios da Criação, estamos sustentando o mundo inteiro.

"Pois isto é o ser humano: não para si mesmo foi criado, e sim para ajudar ao próximo, com todas as forças que tiver" (Rav Chaim Vologhin).

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 32:3 -36:43, Ob.1:1-21, Hb.11:11-20

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

EU TINHA TUDO E NUNCA TIVE NADA - PARASHÁ VAIETSE 5773

"Brian Epstein era um jovem inglês de Liverpool que trabalhava em uma loja de discos. Certa vez, após ter escutado sobre um jovem grupo de rapazes que tocava em um pub chamado "Cavern Club", resolveu ir conhecê-los. Eles realmente tocavam muito bem e Brian Epstein ficou impressionado com a música, o ritmo e o sentido de humor deles sobre o palco. Além disso, eles tinham um incrível carisma, perceptível mesmo em um primeiro encontro. No final da noite, Brian Epstein foi procurá-los. Propôs ser o empresário deles e se prontificou a encontrar uma gravadora. Os 4 rapazes concordaram e assinaram um contrato.

Mas o que parecia algo fácil se transformou em um grande desafio. Brian Epstein tentou algumas gravadoras, mas foi recusado em todas. Grandes empresas como a Columbia, Pye, Philips e Oriole nem se interessaram em gravar uma versão de demonstração. A gravadora Decca ainda gravou algo, mas logo dispensou os 4 rapazes. Foi somente na gravadora Parlophone que eles foram aceitos e gravaram seu primeiro disco.

Pouco tempo depois, aqueles 4 rapazes de Liverpool eram as pessoas mais famosas do planeta: os Beatles. Brian Epstein, também conhecido como o 5º Beatle, foi o empresário que os lançou para a fama. Ele influenciou fortemente os Beatles na forma de cantar, de se vestir e de se comportar no palco. Ele ficou milionário e seu nome ficou guardado para a história. Sua fortuna era tão grande que, segundo informações da época, ele tinha em sua garagem 7 Rolls-Royce.

Mas aos 32 anos, com uma fortuna estimada em 7 milhões de libras, famoso e considerado o grande xodó da imprensa, Brian Epstein se matou. Alguns dizem que foi com um tiro, outros dizem que foi uma overdose de drogas. Segundo algumas fontes, Brian Epstein deixou um bilhete que dizia: "I had everything, yet I had nothing" (Eu tinha tudo, mas ao mesmo tempo eu não tinha nada)."

E a história se repete. Não são poucos os casos de pessoas bem sucedidas que terminam suas breves vidas de maneira trágica. Jimi Hendrix, Kurt Cobain e Marilyn Monroe, entre outros, são alguns exemplos. O que faltava para eles? O que o dinheiro deles nunca conseguiu comprar?

********************************************

A Parashá desta semana, Vaietse, nos conta sobre a vida de Yaacov, nosso terceiro patriarca, desde quando ele foi para a casa de seu tio Lavan, fugindo da fúria de seu irmão Essav, que queria matá-lo. Yaacov se casou com suas primas Rachel e Lea, pelas quais teve que trabalhar para Lavan por 14 anos. Além disso, Yaacov trabalhou para Lavan por mais 6 anos para juntar dinheiro para sustentar sua família.

Mesmo com Lavan tentando enganar Yaacov centenas de vezes, D'us protegeu-o e ele enriqueceu muito, despertando a inveja de Lavan e seus filhos. Yaacov começou a perceber que Lavan já não o tratava bem e decidiu que era o momento de voltar para casa. D'us então apareceu para ele e confirmou que realmente era o momento de voltar para Israel. Yaacov foi falar com suas esposas, para convencê-las a abandonar a casa de seu pai e ir para a terra de Israel. Mas a conversa deles, descrita pela Torá, precisa de explicações.

Em primeiro lugar, quando Yaacov falou com suas esposas e apresentou a ideia de voltar para Israel, fez uma enorme introdução, relembrando o quanto Lavan havia tentado enganá-lo durante todos aqueles anos. Ele também ressaltou o fato de que já não era visto com bons olhos por Lavan e seus filhos. Somente depois disso Yaacov mencionou que D'us os havia mandado voltar. Não era suficiente ele ter mencionado desde o princípio que D'us os havia mandado voltar?

E o que necessita ainda mais explicação é a resposta de Rachel e Lea, que disseram: "E responderam Rachel e Lea: Por acaso ainda temos alguma parte e herança na casa de nosso pai?... Então agora, faça tudo o que D'us disse para você" (Bereshit 31:14). O que significam estas palavras? Por que elas não disseram diretamente que estavam dispostas a cumprir a vontade de D'us de forma incondicional? Se estivesse tudo bem, se elas tivessem parte na herança do pai, elas não iriam para Israel? Elas somente concordaram em voltar para Israel, conforme D'us havia comandado a Yaacov, pois sabiam que não tinham nada a perder?

Para encontrar a resposta, antes precisamos desmitificar a forma como enxergamos a religião. Para muitos, o cumprimento das Mitzvót é visto de uma maneira negativa. Por que tantos insistem em continuar afastados dos ensinamentos da Torá? Pois, influenciados por conceitos de outras religiões, acabamos acreditando na ideia equivocada de que viver uma vida espiritual significa abrir mão de todos os prazeres do mundo material e viver imerso em sofrimentos e abstinência. Os religiosos são aqueles coitados que vivem no passado, sem prazeres materiais. Muitos acreditam que, de acordo com a religião, viemos para este mundo apenas para sofrer, e que este sofrimento é a única forma de alcançar nossa porção no Mundo Vindouro. Porém, de acordo com a filosofia judaica, isto é um completo equívoco.

Explica o Rav Eliahu Lopian que não estamos neste mundo para sofrer. Se tivéssemos vindo neste mundo apenas para sofrer, por que D'us teria criado um mundo tão maravilhoso? Por que teria feito tanta abundância de frutas e flores? Por que teria feito com que todos os dias tivessem um nascer e um por do sol espetaculares? D'us nos criou para nos dar prazer, e quando cumprimos a vontade Dele, já começamos a desfrutar deste prazer ainda neste mundo. É uma obrigação de cada ser humano refletir e entender que cumprir a vontade de D'us faz com que recebamos muitas Brachót (bênçãos) e coisas boas aqui, como ensinam nossos sábios: "Os frutos são comidos neste mundo e o fundo fica guardado para o Mundo Vindouro". A principal recompensa das nossas Mitzvót fica guardada para o Mundo Vindouro, mas é possível aproveitar as Brachót já neste mundo.

Por outro lado, também sabemos que não viemos para ficar o tempo inteiro imersos nos prazeres do mundo material. É importante perceber que os prazeres materiais sem nenhuma conexão com o espiritual são completamente vazios e não nos preenchem. É fácil ver isto na prática, através de muitas pessoas que tinham tudo o que o dinheiro podia comprar e, mesmo assim, se mataram ou morreram de overdose de drogas. Mesmo que nem todos chegam a este extremo, a maioria ao menos demonstra, de alguma maneira, que não se preenchem, apesar de tudo o que têm na vida.

Mick Jagger, vocalista da banda Rolling Stones, é um exemplo de alguém que alcançou o sucesso e é invejado por muitos. Ele é famoso, tem dinheiro, honra, mulheres e prazeres acessíveis apenas para poucos. Mas que tipo de sentimento ele expressa em suas músicas? "I try, and I try, and I try, I can get no satisfaction!" (Eu tento, eu tento, eu tento, mas eu não consigo ter satisfação). O que falta para ele e para tantos outros que, por um lado têm tudo, mas ao mesmo tempo não têm nada? Falta canalizar o material para o lado espiritual, utilizar os prazeres para um propósito maior.

Em Lashon Hakodesh (língua sagrada na qual foi escrita a Torá), a palavra "Osher" significa "riqueza" e também significa "felicidade". Poderíamos pensar que daqui aprendemos que riqueza e felicidade são sinônimos. Mas diferente do que aparenta, ao observar de perto percebemos que as palavras não são escritas da mesma maneira. Felicidade começa com a letra "Alef", enquanto riqueza começa com a letra "Ain". Isto quer dizer que, olhando de fora, a riqueza e a felicidade parecem iguais, mas após investigar um pouco, chegamos à inevitável conclusão de que o dinheiro não necessariamente traz felicidade. Se for bem utilizado, se estiver conectado com a espiritualidade, pode ser uma grande fonte de prazer e Brachá. Mas se estiver sem espiritualidade, a riqueza acaba sendo a ruína da pessoa, como foi para Brian Epstein e muitos outros.

Portanto, para chegar ao nível de sentir prazer com espiritualidade, são necessárias duas importantes reflexões. Em primeiro lugar, precisamos saber que espiritualidade e sofrimento não são sinônimos. É possível, e até mesmo desejável, crescer espiritualmente com os prazeres da vida. Originalmente D'us criou o mundo sem sofrimentos e dificuldades, eles vieram apenas quando nos desviamos do caminho. Se voltarmos ao caminho correto, a tendência é já sentirmos as Brachót aqui neste mundo. Podemos aprender muito com os sofrimentos, mas devemos desejar chegar ao nível no qual D'us não precisará mais mandar sofrimentos ao mundo.

Em segundo lugar, mesmo quando precisamos deixar de "aproveitar" alguns tipos de prazer do mundo para fazer a vontade de D'us, como quando deixamos de comer certos tipos de comida não-Kasher, precisamos internalizar que não estamos perdendo nada, pois o uso dos prazeres do mundo material que estão desconectados de espiritualidade são apenas vanidades, são prazeres vazios que não nos preenchem. Um adúltero pode encontrar prazer momentâneo junto de sua amante, mas ele não se satisfaz. O ladrão pode aproveitar o objeto do seu roubo, mas ele não se sacia. Os jovens saem da balada, depois de uma noite cheia de bebida e prazeres, e afirmam que não se sentem preenchidos. Por que? Pois todos os prazeres voltados apenas ao prazer do corpo nos satisfazem por alguns instantes, mas depois deixam um grande vazio, porque não têm nenhum tipo de espiritualidade. Podem saciar momentaneamente o corpo, mas não saciam a alma.

Foi esta a ideia que tanto Yaacov quanto suas esposas quiseram transmitir para nós. Obviamente seria suficiente para Yaacov mencionar diretamente que D'us havia pedido para eles voltarem a Israel, mas ele queria ressaltar para suas esposas que eles não perderiam nada cumprindo a vontade de D'us, nem mesmo no mundo material. Também não há dúvidas de que Rachel e Lea cumpririam a vontade de D'us mesmo se precisassem abrir mão de sua herança ou passar por algum tipo de sofrimento, mas elas também queriam ressaltar que estava claro que não se perde absolutamente nada quando se cumpre a vontade de D'us, e mesmo o que aparentemente estamos deixando para trás, é apenas vazio e vanidade que não nos preenchem.

Portanto, aqueles que cumprem as Mitzvót estão guardando uma grande recompensa para o Mundo Vindouro, mas já começam a comer seus frutos aqui neste mundo. Pois não há prazer maior do que deitar a cabeça de noite e saber que vivemos nosso dia da maneira correta. Nada preenche mais o ser humano do que viver uma vida honesta. Construir uma família harmoniosa, ser um bom trabalhador e, antes de tudo, um ser humano consciente. Não viemos aqui para sofrer, viemos aqui para aproveitar. Mas para aproveitar de verdade, precisa ser com prazeres que também preenchem nossa alma, não apenas nosso corpo.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 28:10-32:2, Os.11:7-14:9, Jo. 1:19-51

sábado, 17 de novembro de 2012

QUEM QUER SOFRIMENTOS? - PARASHÁ TOLDOT 5769

Havia um homem que vivia com constantes sofrimentos. Ele e sua família tinham muitas doenças, sofriam com a falta de dinheiro e passavam por outras dificuldades. Um dia ele decidiu visitar o Rav Shalom Shrabi, um grande sábio, para perguntar como entender o comportamento de D'us e o que ele poderia fazer para que as coisas melhorassem e os sofrimentos diminuíssem. Após uma longa e cansativa viagem a pé, ele chegou na casa do rabino e foi recebido pela rabanit (esposa do rabino), que o convidou a entrar, sentar em um confortável sofá e aguardar o rabino, que estava resolvendo outro problema. O homem estava tão cansado por causa da viagem que caiu em um sono profundo. Começou a sonhar e se viu em uma grande estrada, completamente deserta, onde não se escutava nenhum ruído. De repente escutou um barulho vindo de longe. Uma carruagem cheia de anjos brancos passou em alta velocidade e logo desapareceu no horizonte. Mais alguns minutos e novamente o silêncio foi quebrado pelo barulho de uma carruagem cheia de anjos escuros, de aparência atemorizante, que também logo sumiu no horizonte.

Curioso, ele apertou o passo para saber onde terminava a estrada. Finalmente chegou em uma praça, onde ele viu as carruagens estacionadas. No centro da praça havia uma balança gigantesca, e os anjos desciam das carruagens e se dirigiam à balança. O homem viu que em cada anjo havia uma pequena placa. Nos anjos brancos estavam escritas várias Mitzvót, como por exemplo estudo da Torá, Tefilá (reza) e honrar os pais. Já nos anjos escuros estavam escritas várias transgressões, tais como Lashon Hará (falar mal dos outros), roubo e inveja. O homem entendeu que ali era o Tribunal Celestial, e alguém estava sendo julgado. Cada Mitzvá que a pessoa tinha feito na vida havia criado um anjo branco e cada transgressão havia criado um anjo escuro. Quando o homem se aproximou da balança, viu que era o seu próprio julgamento.

O homem observou que todos os anjos brancos se encaminharam para um lado da balança enquanto os anjos escuros se encaminharam para o outro lado. Notou, para seu desespero, que a balança pendia para o lado dos anjos escuros e começou a tremer de medo. Procurou outros anjos brancos, mas não havia mais nenhum. Ele estava perdido...

De repente, chegou uma terceira carruagem, com anjos gigantescos, que haviam sido criados com os sofrimentos que o homem havia passado na vida. Para cada anjo de sofrimento que se apresentava, eram retirados alguns anjos escuros. Mas para a infelicidade do homem a balança ainda pendia para o lado das transgressões. No desespero, ele deu um grito amargo: "Me mandem mais alguns sofrimentos, me mandem mais alguns sofrimentos!!"

O homem acordou gritando e aos poucos entendeu que tudo havia sido um sonho. Levantou-se e preparou-se para sair, mas a esposa do rabino perguntou:

- Ei, você não tinha que perguntar algo para o rabino?

- Tinha - disse o homem sorrindo - mas agora não preciso mais. D'us já me respondeu... (História Real)
-----------------
A Parashá desta semana, Toldot, continua nos contando um pouco mais sobre Itzchak, uma pessoa reta em todos os seus atos e com uma impressionante claridade do seu propósito no mundo. Onde podemos enxergar a grandeza dele? No episódio da Akeidá, no qual D'us testou Avraham pedindo para que ele sacrificasse seu filho. Aparentemente Itzchak não sabia que seria sacrificado e somente por isso aceitou ir junto com seu pai. Mas a Torá nos ensina diferente, pois está escrito "E Avraham pegou a lenha para a oferenda e colocou sobre as costas de Itzchak, seu filho. Ele pegou em suas mãos o fogo e a faca, e os dois subiram juntos... E então Itzchak falou para Avraham seu pai... 'Aqui está o fogo e a madeira, mas onde está a ovelha para o sacrifício?'. E Avraham respondeu: 'D'us escolherá para Ele a ovelha para o sacrifício, meu filho'. E os dois subiram juntos" (Bereshit 22:6-8). Por que a Torá precisou repetir "E os dois subiram juntos"? Para nos ensinar que mesmo após Itzchak entender que ele seria o sacrifício, ele continuou subindo com Avraham, e com o mesmo entusiasmo de antes. Apesar do sacrifício não ter efetivamente ocorrido, D'us considerou como se Itzchak realmente tivesse dado a vida por Ele.

Mas a Parashá ensina algo difícil de ser entendido. Itzchak, este grande Tzadik (Justo) que estava disposto a dar sua vida por D'us, ficou cego, como está escrito "E foi, quando Itzchak envelheceu, seus olhos se escureceram..." (Bereshit 27:1). Isso ocorreu quando Itzchak tinha 123 anos, e como ele viveu até os 180 anos, vemos que ele passou mais de 50 anos imerso em total escuridão. Por que D'us causou tanto sofrimento para Itzchak? E mais do que isso, se D'us é bondoso, por que pessoas boas sofrem?

Temos uma visão completamente equivocada dos sofrimentos. Quando sofremos, sentimos que D'us nos abandonou e nos deixou de lado. Mas é justamente o contrário, os sofrimentos são um grande presente de D'us, que recebemos somente pelos méritos de Itzchak. Segundo o Midrash (parte da Torá Oral), as pessoas não recebiam sofrimentos, e foi justamente Itzchak quem pediu para que D'us nos mandasse sofrimentos. D'us concordou e começou por Itzchak mesmo, deixando-o cego. Mas por que Itzchak queria sofrimentos no mundo?

Explica o Chafetz Chaim que existe uma grande diferença entre os castigos aplicado pelos seres humanos e os castigos aplicado por D'us. Os castigos aplicados pelos seres humanos são apenas um meio de colocar medo na pessoa. Aquele que castiga espera que o transgressor aprenda a lição e não volte a errar novamente no futuro. Já os castigos Divinos, além de ajudarem as pessoas a não voltar a transgredir mais, também limpam, através dos sofrimentos, os erros cometidos.

Não existe Tzadik no mundo que faz o bem e não peca. Cada transgressão que fazemos cria um anjo, que se torna um acusador no Tribunal Celestial. E quanto maior o nível da pessoa, mais ele é cobrado por qualquer erro cometido. É como uma pessoa dentro de uma empresa, quanto maior o cargo, maior a responsabilidade e maiores as consequências no caso de um erro cometido. Quando o faxineiro erra, a sala pode ficar um pouco mais suja, mas se o presidente erra, ele pode quebrar toda a empresa. Itzchak, com seu grande nível espiritual, entendeu que sem sofrimentos nenhum ser humano conseguiria passar pela Justiça Celestial quando saísse deste mundo. Por isso ele pediu para que D'us descontasse parte dos nossos erros através de sofrimentos ainda neste mundo.

Sentir dor é bom? A maioria das pessoas diria que não. Mas existe uma doença chamada CIPA (insensibilidade congênita à dor) que causa com que a pessoa não sinta nenhuma dor. Mas bem longe de viver uma vida paradisíaca, em geral estas pessoas morrem muito jovens, quase sempre por motivos banais como queimaduras ou pequenos ferimentos. Qualquer criança normal que coloca a mão no fogo, ao primeiro sinal de dor, retira rapidamente o braço, num ato reflexo de proteção. Mas estas crianças com a doença, por não sentirem nenhuma dor, não entendem o perigo que estão correndo e acabam morrendo. A dor é, portanto, algo amargo mas que salva nossas vidas. E da mesma forma que isso ocorre no mundo material, assim também ocorre nos mundos espirituais, isto é, os sofrimentos são amargos e difíceis, mas salvam nossa vida eterna, funcionando tanto como um alarme de que algo vai mal quanto como uma maneira de limpar nossos erros e permitir que possamos sair limpos deste mundo.

Este ensinamento nos ajuda muito em nossas vidas, pois não existe ninguém que não passa por sofrimentos e dificuldades. Saber que os sofrimentos têm um propósito nos ajuda a aceitá-los. Não temos que pedir mais sofrimentos para D'us, pois mal e mal suportamos os que já temos, mas temos a obrigação de receber os sofrimentos que Ele nos manda com alegria, pois apesar de serem amargos e difíceis, os sofrimentos, que são limitados, nos ajudarão a ter uma eternidade de prazeres ilimitados.

Shabat Shalom

Rav Efraim Birbojm

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

MÉRITOS DO PASSADO - PARASHÁ TOLDOT 5773

"Era véspera de Yom Kipur em Jerusalém. A Mikve estava completamente lotada, pois todos queriam cumprir o costume de imergir na Mikve para se purificar antes do Dia do Julgamento. E entre a multidão havia um jovem que parecia um pouco desconfortável. Era Jamie, um jovem estudante de uma Yeshivá para Baalei Teshuvá (pessoas que vieram de famílias judias não praticantes e se tornaram judeus praticantes).

Quando Jamie tirou a camiseta, rapidamente colocou a mão sobre o braço, escondendo algo. Era uma enorme tatuagem que ele tinha feito em sua juventude. Após fazer Teshuvá ele aprendeu sobre a gravidade de tatuar o corpo, e por isso raramente mostrava para alguém aquela enorme tatuagem, que um dia tinha exibido com orgulho, mas que agora era uma fonte de vergonha. Com a Mikve lotada, parecia que todos olhavam para ele, mas o que fazer? Ele gostaria de mudar o passado, de nunca ter feito aquela tatuagem, mas naquele momento a única saída era cobrir a tatuagem com a mão e torcer para ninguém perceber.

Quando Jamie se aproximava do local de imersão, ainda cobrindo o braço, algo terrível aconteceu: o chão estava molhado e Jamie escorregou. Para não cair, segurou-se fortemente no corrimão. Todos escutaram o barulho, se viraram na direção de Jamie e se depararam com aquela enorme tatuagem. Passaram alguns poucos segundo, mas o silêncio era tão intenso que para Jamie pareceu uma eternidade. Então Jamie sentiu uma mão em seu ombro. Era um velhinho, que estendeu o braço e mostrou alguns números tatuados. Então o velhinho virou-se para ele e disse:

- Veja, meu querido. Como você, eu também tenho uma tatuagem. É para nunca esquecer quem fomos e o longo caminho que tivemos que percorrer para estarmos aqui hoje.

Com um sorriso, o velhinho ajudou Jamie a se levantar. Jamie já não sentia mais vergonha do seu passado. A partir daquele momento, ele passou a sentir um grande orgulho, ao lembrar-se de onde tinha saído e onde tinha conseguido chegar" (História Real).

Devemos nos arrepender dos nossos erros do passado, mas não nos sentir inferiores por causa disso. Cada dia é uma nova possibilidade de consertar nossos erros e recomeçar. Não podemos reescrever o passado, mas podemos começar, a partir de agora, a escrever um novo futuro.
 
********************************************

Na Parashá desta semana, Toldot, a Torá descreve um pouco da vida do nosso segundo patriarca, Yitzchak. É interessante perceber que Yitzchak passou por alguns testes na vida muito parecidos com os testes de seu pai, Avraham. Por exemplo, em seus dias também houve uma grande fome na terra de Israel, que o obrigou a sair de sua casa e a buscar um lugar com melhores condições. Em um primeiro momento Yitzchak pensou em ir ao Egito, como havia feito seu pai, mas D'us apareceu para ele e comandou-o a ir para Guerar, a terra onde viviam os Plishtim. D'us também prometeu para Yitzchak que ele teria muitas Brachót (Bênçãos) e que seus descendentes seriam muito numerosos. E no final das promessas, D'us acrescentou algo interessante: "Pois Avraham escutou a Minha voz" (Bereshit 26:5). O que significam estas palavras?

O entendimento mais simples deste versículo é que D'us estava explicando a Yitzchak que o mérito de todas aquelas Brachót era de Avraham, por ele ter servido a D'us de uma forma tão leal e completa, passando com louvor por todos os testes que surgiram durante sua vida.

Mas além desta explicação, há um entendimento mais profundo das palavras deste versículo. Explica o Rav Avraham ben David, o Raavad, que a linguagem utilizada no versículo, "Ekev", que significa "Pois", tem a guemátria (valor numérico das letras) de 172. O que isto nos ensina? Que dos 175 anos da vida de Avraham, 172 deles foram vividos de acordo com a vontade de D'us. Isto significa que desde o dia em que Avraham foi desmamado, aos 3 anos de idade, ele seguiu o caminho de D'us.

Porém, há uma dificuldade nesta explicação do Raavad. Diz o Rambam (Maimônides) que Avraham só chegou à consciência de que existe um único Criador, que controla todas as forças do universo, com a idade de 40 anos. Segundo o Rambam, até esta idade Avraham ainda servia deuses idólatras. Somente depois de 40 anos é que ele começou a pregar ao mundo o monoteísmo, reunindo milhares de seguidores. Portanto, como entendemos a explicação do Rambam, se o valor numérico da palavra "Ekev" aparentemente ensina que Avraham serviu a D'us desde os 3 anos de idade?

Além disso, o Raavad faz outro questionamento interessante. Na época de Avraham, ainda estavam vivos alguns dos descendentes de Noach (Noé), como seu filho Shem e seu tataraneto Ever. Eles eram Tzadikim (Justos), acreditavam em um único Criador e mantinham uma academia de estudos das leis de D'us. Por que em nenhum momento a Torá menciona que Shem e Ever também protestavam contra a idolatria e pregavam o monoteísmo, como fazia Avraham?

Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta começa com uma afirmação muito interessante dos nossos sábios. Ensina o Talmud (Sanhedrin 99a) que um Baal Teshuvá, uma pessoa que se arrependeu de seus erros e passou a viver da maneira como D'us ensinou, tem um nível maior do que alguém que sempre foi Tzadik. Para fazer esta afirmação, o Talmud se baseia no seguinte versículo: "Shalom, Shalom, para o distante e para o próximo" (Yeshaia 57:19). Isto significa que D'us se refere primeiro àqueles que estavam distantes Dele, os Baalei Teshuvá, antes mesmo de se referir àqueles que sempre estiveram próximos Dele, os Tzadikim.

Mas deste ensinamento surge uma grande pergunta: por que a Torá chama um Baal Teshuvá de "distante"? Se o Baal Teshuvá tem um nível maior do que o Tzadik, por que ele é tratado de uma maneira aparentemente depreciativa, sendo recordado na Torá como alguém que foi distante de D'us no passado? Não seria melhor se referir ao Baal Teshuvá como alguém que atualmente está perto de D'us, como o Tzadik?

A resposta é que o Talmud não está depreciando os Baalei Teshuvá, ao contrário, está nos ensinando qual é a fonte da grandeza deles, que os eleva acima dos Tzadikim. O fato de eles terem sido distantes de D'us é justamente o que faz com que eles se aproximem Dele de uma maneira muito mais intensa. Isto se relaciona com um fenômeno interessante, que nos ensina algo profundo na psicologia do ser humano. Quem são os maiores ativistas antitabagismo? Os ex-fumantes. E existem dois principais motivos para isso. Em primeiro lugar, por já terem sido viciados, os ex-fumantes precisam constantemente lutar contra a tentação de voltar ao vício. E o ativismo contra o tabagismo dos outros é um mecanismo natural de proteção, pois pessoas em volta fumando são uma tentação constante. E em segundo lugar, justamente por saberem os malefícios do cigarro e terem sentido na própria pele todos os danos que ele causa, os ex-fumantes aderem a várias campanhas para ajudar outras pessoas a também saírem do vício. E eles têm a grande vantagem de saber o quanto foi difícil abandonar o vício, por isso desenvolvem uma sensibilidade maior de como lidar com o problema e podem ensinar aos outros a fórmula do sucesso.

Isto se aplica também aos Baalei Teshuvá. Por sua vontade de abandonar os caminhos errados, qualquer transgressão se torna uma grande abominação. Eles querem se afastar o máximo possível dos erros do passado, e com isso conseguem se elevar ainda mais do que os Tzadikim. Além disso, pelos Baalei Teshuvá terem passado por toda a dificuldade de mudar seu estilo de vida, eles têm a sensibilidade de entender aqueles que ainda não conhecem o caminho correto, sendo mais fácil ajudá-los a também conseguir mudar.

Com este conceito, podemos entender porque a Torá relata somente o esforço de Avraham para propagar o monoteísmo. Shem e Ever eram Tzadikim desde o nascimento, sempre viveram com a convicção de que existe apenas um único D'us e que as idolatrias eram uma grande tolice. Eles não entendiam o que significava ser um idólatra e não conseguiam entender o coração das pessoas que seguiam as idolatrias, por isso não conseguiam ajudá-las. Já Avraham, que também havia adorado as idolatrias, entendia o coração das pessoas e conseguia convencê-las e ajudá-las a abandonar os caminhos errados. O fato de ter sido distante de D'us foi justamente o que fez Avraham chegar a um nível espiritual tão alto e poder ajudar tantas pessoas.

E como entender a contradição dos ensinamentos do Rambam com a linguagem "Ekev" do versículo? A resposta é que Avraham foi um Baal Teshuvá. Durante muitos anos ele fez idolatria, mas ao descobrir a verdade, ele se afastou com todas as forças do modo de vida equivocado em que esteve imerso por tantos anos. Portanto, a Torá não está dizendo que Avraham serviu a D'us desde os 3 anos de idade, pois ele ainda fazia idolatria até os 40 anos. O que a Torá está nos ensinando é que Avraham serviu a D'us por 172 anos, pois no momento em que ele buscou a verdade e encontrou-a, ele abandonou todas as idolatrias e dedicou sua vida a viver a verdade e a trazer outras pessoas também. Neste momento, todos os seus erros foram transformados em Mitzvót, pois foram utilizados como ferramentas para ter sensibilidade e poder ajudar a aproximar as pessoas de D'us, como ensina o Talmud (Yomá 86a): "Os pecados de rebeldia são transformados em méritos". Com a força da Teshuvá, suas transgressões do passado ajudaram-no a ter força de vontade para crescer e para tocar o coração das pessoas e ajudá-las a entender a verdade.

Isto também se aplica às nossas vidas. Muitas vezes olhamos para trás e nos arrependemos dos erros que fizemos. Muitas vezes sentimos que erramos tanto que não há mais conserto. Mas de Avraham aprendemos até onde chega a bondade de D'us. Não apenas nossos erros podem ser apagados, mas podem ser transformados em Mitzvót. Não apenas podemos nos afastar das transgressões, mas também podemos ajudar outros a se afastarem. Avraham começou com 40 anos. Rabi Akiva, que se tornou um dos maiores sábios da Torá de todos os tempos, também começou seu caminho de Teshuvá aos 40 anos. Nunca é tarde para começar. Podemos utilizar nossos erros e nossas experiências passadas de maneira positiva, ajudando aqueles que estão na mesma situação na qual estávamos. Assim poderemos, como Avraham, transformar nossos erros em mérito e nos tornar uma fonte de Brachá para o mundo inteiro.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
Gn. 25:19-28:9, 1Sm 20:18-42, Rm.9:1-13 (Machar Chodesh)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

PEREGRINO OU MORADOR? - PARASHÁ CHAIEI SARA 5773

 
"Os habitantes de certo reinado tinham um costume muito estranho: uma vez por ano eles saíam pela estrada principal que levava ao reinado e coroavam como rei o primeiro que aparecia no caminho. Esta pessoa recebia o poder de decidir todos os assuntos do reinado por um ano. No fim deste ano, eles tiravam a pessoa do trono e a expulsavam da cidade. Sem a sua realeza, a pessoa ia embora sem nada, exatamente como tinha chegado. Então os habitantes iam para a estrada escolher um novo rei.
Certa vez, um mendigo estava passando naquela estrada. Apesar de não ter dinheiro, ele tinha muita sabedoria. De repente, viu uma enorme multidão vindo em sua direção, cantando alegremente. Antes mesmo de entender qual era o motivo de tanta alegria, ela já estava vestindo um manto e a coroa real, e estava sendo carregado nos ombros da multidão em direção ao palácio. Lá, uma grande festa o aguardava para que oficialmente assumisse o trono daquele reinado.
Pensando nos estranhos acontecimentos daquele dia, o novo rei reuniu seus ministros e pediu explicações. Eles descreveram o costume local de, uma vez por ano, escolher uma pessoa qualquer na estrada para ser o rei. Como ele estava no local certo e no momento certo, havia sido o escolhido da vez.
Quando foi deitar-se, o novo rei parou para refletir um pouco. Se uma vez por ano um novo rei era escolhido, isto significava que dentro de um ano ele seria destituído do trono e voltaria à sua miséria. Então o que ele poderia fazer para não perder tudo no final daquele ano? Após pensar bastante, encontrou a solução: durante todo o tempo em que foi rei, enviou para sua própria casa o máximo de dinheiro, joias e mercadorias valiosas que conseguiu.
Quando o ano estava para terminar, uma multidão entrou em sua casa trazendo suas velhas roupas de mendigo. Após se trocar, ele foi oficialmente expulso daquele reinado e escoltado até os portões, onde os guardas receberam a ordem de nunca mais deixá-lo entrar. Mas ao contrário do que as pessoas esperavam, o mendigo estava feliz, até cantava de alegria. Ele se lembrou do imenso tesouro que o esperava em casa. E aquele tesouro foi suficiente para sustentar sua esposa e filhos, com conforto, pelo resto de suas vidas"
Explica o Rav David HaNaggid que viemos para este mundo apenas por um tempo limitado. Muitas vezes estamos tão imersos na busca de prazeres materiais que esquecemos que o tempo está passando rapidamente. E somente quando chega o momento de partir, a pessoa percebe que está indo embora de mãos completamente vazias. Já a pessoa sábia prevê o futuro e, enquanto está neste mundo, se esforça para mandar um tesouro para depois de sua partida daqui. Este tesouro é composto por Mitzvót e bons atos, que servem como méritos para nossa vida eterna no Mundo Vindouro.

********************************************
A Parashá desta semana, Chaiei Sara, começa nos contando sobre a morte de Sara, a nossa primeira matriarca, aos 127 anos. Além do sofrimento pela perda de sua querida esposa, Avraham passou por mais uma grande dificuldade. Apesar de D'us já ter prometido que daria a ele e a seus descendentes a Terra de Israel, ele precisou comprar, por um preço muito alto, um lugar para enterrar sua esposa.

Na conversa que Avraham teve com o povo de Chet, os habitantes do local naquela época, ele pediu que lhe vendessem a "Mearat Hamachpelá" como local de sepultura para Sara. E há algo que nos chama a atenção na frase dita por Avraham: "Eu sou um peregrino e um residente permanente com vocês" (Bereshit 23:4). Este versículo é completamente contraditório, pois como alguém pode ser, ao mesmo tempo, um peregrino e um residente permanente? O que Avraham quis dizer para o povo de Chet?

A mesma pergunta surge quando observamos um dos versículos da Parashá Emor, que trata sobre as leis de venda de um terreno na Terra de Israel. Assim está escrito: "E a terra não será vendida de maneira permanente, pois a terra é Minha, pois vocês são peregrinos e habitantes permanentes Comigo" (Vayikrá 25:23). Este versículo nos ensina que as terras em Israel somente podiam ser vendidas até o ano do Yovel (Jubileu), que ocorre a cada 50 anos. No Yovel, cada terra que havia sido vendida voltava automaticamente aos seus verdadeiros donos. O que nos chama a atenção é que novamente um versículo junta os conceitos de peregrinos e residentes permanentes. Isto não é contraditório?

O Maguid Mi Duvno explica qual foi a intenção de Avraham quando ele disse esta frase contraditória ao povo de Chet. Segundo o judaísmo, a mentira é uma transgressão muito grave, a ponto de D'us nos advertir de maneira mais enfática do que em outras transgressões, como está escrito: "Se afaste da mentira" (Shemot 23:7). Não é suficiente apenas não mentir, devemos fazer todo o possível para nos afastar de uma mentira. Porém, existem algumas poucas situações nas quais há permissão de distorcermos a verdade, como em casos onde dizer a verdade completa causaria uma briga ou colocaria uma pessoa em perigo de vida. Esta situação aconteceu com Avraham, pois D'us havia prometido para ele a Terra de Israel, Avraham sabia que aquela terra era toda sua, mas se ele falasse a verdade para os Chitim, colocaria sua vida em risco. Por outro lado, Avraham era uma pessoa tão íntegra e correta que não concebia a possibilidade de que mentiras saíssem de sua boca, mesmo que o momento assim exigia. Por isso, quando ele falou com os Chitim, ele foi extremamente cuidadoso e sábio, utilizando uma linguagem com duplo sentido e falando a verdade, mas deixando que os Chitim entendessem o que quisessem entender.

Como Avraham conseguiu este efeito de duplo sentido? Ele disse "eu sou um peregrino e um residente permanente com vocês". Quando ele incluiu o "com vocês", Avraham quis dizer que, entre ele e os Chitim, um era peregrino e o outro era residente permanente. O entendimento mais simples, e assim os Chitim entenderam, é que Avraham era o peregrino e eles eram os residentes permanentes. Porém, a intenção de Avraham era dizer justamente o contrário, que ele era o residente permanente enquanto os Chitim eram os peregrinos.

Mas ao entendermos a intenção de Avraham, surge outra grande pergunta. Se a estrutura da frase dita por Avraham era para dar um duplo sentido às suas palavras, então o mesmo conceito deve se aplicar ao versículo que fala sobre a venda de terras em Israel. Por que D'us falou algo com duplo sentido? Qual o entendimento verdadeiro das palavras do versículo da Parashá Emor?

A resposta começa com as palavras dos nossos sábios: "Este Mundo se assemelha a um corredor diante do Mundo Vindouro. Se prepare no corredor para que você possa entrar no palácio" (Pirkei Avót 4:16). Da mesma forma que o corredor de um palácio é apenas uma passagem, assim também é a nossa vida neste mundo material, devemos viver como se fossemos peregrinos em uma terra estranha, como pessoas convidadas para passar a noite em uma casa estranha, pois é somente algo passageiro. Então o que viemos fazer aqui? Nos preparar para poder entrar no "palácio", o Mundo Vindouro. E como fazemos a preparação? Diz David Hamelech (Rei David): "Eu sou um peregrino na terra, não oculte de mim as Suas Mitzvót" (Tehilim 119:19). David Hamelech está nos ensinando que a estadia do ser humano neste mundo é apenas temporária e, portanto, ele não deve desperdiçar esta oportunidade, que apesar de ser breve, é muito valiosa. O ser humano deve se esforçar para dar sentido à sua existência através da conexão com as Mitzvót de D'us. Devemos viver como peregrinos, isto é, nossa dedicação principal deve ser as aquisições espirituais, enquanto nossas ocupações com o mundo material devem ser secundárias, pois do mundo material não levaremos nada para nossa eternidade. De que adianta trabalhar 24 horas por dia e acumular milhões se de nada servirão para adquirir nosso Mundo Vindouro?

Portanto, quando D'us disse "Vocês são peregrinos e habitantes permanentes Comigo", o versículo está juntando D'us e os seres humanos na mesma frase. O sentido da frase, como no caso de Avraham, é que entre D'us e nós há um que é peregrino e um que é habitante permanente. O que isto significa? Que o comportamento de D'us conosco depende das escolhas que fazemos na vida, está em nossas mãos. Se nós escolhemos ser peregrinos neste mundo, isto é, se vivemos de maneira em que a busca pelos prazeres materiais é secundária e nos dedicamos com prioridade aos valores espirituais, então D'us se comporta conosco como um residente permanente, está constantemente ao nosso lado. Mas se nos comportamos neste mundo como residentes permanentes, investindo nossos esforços apenas em adquirir mais bens, prestígio e prazeres, então Ele se comporta conosco como se fosse apenas um peregrino de passagem.

É por isso que o versículo diz: "E a terra não será vendida de maneira permanente", pois devemos viver aqui como vive uma pessoa que está em uma casa alugada. Alguém que vive de aluguel não passa o tempo todo investindo em melhorias no apartamento, pois sabe que é uma estadia provisória, sabe que a qualquer momento terá que deixá-lo. Assim também em nossas vidas, devemos investir no que levaremos para sempre, ao invés de investir nas coisas que ficarão aqui neste mundo. Somente assim nossa existência fará sentido e sairemos deste mundo para receber, no Mundo Vindouro, um verdadeiro tesouro.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

Gn.23:1-25:18, 1Rs.1:1-31, Mt.1:1-17

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

FAZENDO CÁLCULOS EQUIVOCADOS - PARASHÁ VAIERÁ 5773

 
"Adriano e Gustavo, dois grandes amigos, decidiram participar de uma tradicional competição de natação que era realizada no principal lago da cidade onde moravam. Enquanto Adriano investiu muito tempo para aprender e praticar as regras fundamentais da natação, Gustavo não se interessou em aprender nada, muito menos em praticar.

Chegou o esperado dia da competição. Adriano entrou na água com confiança e segurança. Já experiente nas regras da natação, manteve seu corpo plano sobre a água. As mãos estavam em formato de concha, puxando o máximo de água a cada braçada. Os pés, movimentando-se com firmeza e coordenação, o impulsionavam para frente com velocidade. Adriano sentia uma alegria especial enquanto se deslocava com tanta agilidade. Assim, com constância e tranquilidade, chegou à pequena ilha no meio do lago, o ponto de chegada, entre os primeiros colocados. Enquanto descansava ele refletiu e percebeu o quanto ter se focado no conhecimento e na prática das regras o havia ajudado a atingir seu objetivo.

Já Gustavo não teve tanto sucesso. Ao contrário, sua participação na competição foi um grande fracasso. Ele entrou apressado na água, sem nenhuma preparação nem aquecimento, sentindo um enorme nervosismo desde o primeiro momento. Sem conhecer as regras básicas da natação, ao invés de nadar com tranquilidade e equilíbrio, Gustavo começou a chutar a água e a se debater, seus braços e pernas se movimentando de maneira aleatória. Sem nenhum objetivo em mente, ele começou a nadar em muitas direções. Rapidamente ele foi superado pela exaustão. A emoção de participar da competição foi substituída pelo terror de sentir que estava se afogando.

Enquanto Adriano recebia uma medalha de honra por ter completado a prova entre os primeiros e era muito aplaudido pelo público, que reconheceu seu esforço, Gustavo era retirado da água pelo salva-vidas, completamente humilhado, diante da multidão que apontava para ele e dava gargalhadas"

Muitas vezes queremos fugir das regras. Queremos nos sentir livres, fazer as coisas do nosso jeito, sem obrigações. Mas na verdade as regras não nos atrapalham, ao contrário, são elas que nos ajudam a chegar ao topo. Se fugirmos das regras, o mais provável é acabarmos afundando no fracasso.
 
********************************************

Na Parashá desta semana, Vaierá, D'us continuou testando Avraham Avinu. O décimo e mais difícil teste foi o pedido de D'us para que Avraham sacrificasse seu filho, como está escrito: "E Ele disse: Por favor, pegue seu filho, seu único, aquele que você ama, Yitzchak, e vá para a terra de Moriá; eleve-o ali como uma oferenda sobre uma das montanhas que Eu vou te dizer" (Bereshit 22:2).
Muitas vezes o teste de Avraham é entendido de maneira infantil, perdendo com isso muito do profundo ensinamento que nos transmite. Por isso, antes de tudo precisamos entender qual foi exatamente o último teste de Avraham. Será que foi apenas a dificuldade de vencer o amor pelo filho, ou será que este teste esconde uma luta interna de Avraham muito mais intensa?
Explicam os nossos sábios que o teste de Avraham não foi um teste emocional como aparenta. Por mais que Avraham amava muito Yitzchak, e um pai naturalmente arrisca sua própria vida para proteger a vida de seu filho, o teste não foi sentimental, pois Avraham chegou a um nível de entendimento intelectual de D'us tão profundo e completo que nunca deixaria seus sentimentos influenciarem na sua escolha de seguir a verdade. O teste de Avraham foi, na realidade, um teste intelectual muito difícil. Que teste foi este?
Na época de Avraham, uma das idolatrias mais comuns era chamada "Molech". A pessoa servia esta idolatria passando o próprio filho sobre uma fogueira e queimando-o vivo. Avraham levantou-se fortemente contra esta prática absurda de sacrificar o próprio filho para um deus. O que aconteceria se Avraham sacrificasse seu filho a pedido de D'us? Ele seria considerado um grande hipócrita e perderia a credibilidade. Toda a luta de Avraham para aproximar as pessoas de D'us e afastá-las da ideia estúpida de que o mundo era controlado por deuses de madeira e pedra perderia completamente a força e o sentido. Avraham poderia ter pensado que, por D'us, seria melhor ele não sacrificar seu filho Yitzchak.
Além disso, o Rambam (Maimônides) diz que Avraham investiu todo o seu intelecto, dos 3 aos 48 anos de idade, para entender D'us em todos os níveis possíveis para um ser humano. Ele pretendia dar continuidade a este trabalho espiritual através de seu filho Yitzchak. Ele queria que esta claridade atingisse toda a humanidade e que todos entendessem o conceito da unicidade de D'us. Mas se ele sacrificasse Yitzchak, quem daria continuidade ao seu trabalho espiritual, um investimento de uma vida inteira? Quem transmitiria ao mundo suas revelações sobre o monoteísmo? Não fazia sentido algum o que D'us estava pedindo, pois aparentemente ia contra o propósito da criação do mundo.
Portanto, o verdadeiro teste enfrentado por Avraham foi um teste intelectual, uma contradição no seu entendimento de D'us. E agora, o que seria melhor fazer: cumprir a ordem de D'us, mesmo que parecia completamente ilógica e ia contra tudo o que ele havia entendido até aquele momento, ou atender ao pedido de D'us sem questionamentos?
Para entender a dificuldade da escolha de Avraham, precisamos voltar um pouco no tempo, até Adam Harishon, o primeiro ser humano, que passou por um teste parecido. D'us havia dado para Adam apenas uma Mitzvá, e se ele tivesse passado pelo teste de escutar D'us, teria chegado à perfeição e todos os seus descendentes teriam nascido em um nível elevado. A ordem de D'us era para que ele não comesse do fruto do conhecimento do bem e do mal. Mas Adam comeu e despencou espiritualmente, causando que seus descendentes nascessem em um nível muito mais baixo. Por que Adam, que era elevado como um anjo, não escutou a ordem de D'us, que havia sido simples e direta?
Explicam nossos sábios que Adam escutou e entendeu a ordem de D'us, mas ao invés de cumpri-la, ele preferiu fazer cálculos. Confiando em sua própria sabedoria, Ele quis fazer melhor do que D'us havia pedido. Como Adam conhecia a força da Teshuvá (arrependimento), ele sabia do conceito espiritual de que uma pessoa que se arrepende por amor transforma seus erros em méritos. Por isso ele pretendia intencionalmente errar e ir contra a vontade de D'us, para depois se arrepender e transformar seu erro em mérito, chegando a um nível ainda mais alto do que chegaria antes do erro.
Aparentemente a ideia de Adam estava correta. Existe realmente o conceito de que se uma pessoa arrepende-se de seus erros e, por amor a D'us, corrige seus atos, neste caso suas transgressões são transformadas em méritos. Mas no caso de Adam isto não se aplicava. O Talmud explica que isto vale apenas para alguém que transgrediu por ter sido levado por seu mau instinto, mas uma pessoa que comete um erro e diz "vou pecar agora, mas não tem problema, pois depois D'us vai me perdoar", esta pessoa não merece o perdão. Foi este o erro de Adam: a lógica parecia boa, mas ele apenas esqueceu o pequeno detalhe de que estava indo contra a lógica do próprio Criador do mundo, que havia ordenado que ele não comesse do fruto proibido.
Qual foi a fonte do erro de Adam? Ele se considerou mais sábio do que D'us. Ele se achou no direito de fazer cálculos intelectuais para descumprir um pedido explícito do Criador. E as consequências foram trágicas para ele e para o resto da humanidade. Adam foi expulso do Gan Éden e dificultou o trabalho do ser humano de chegar à perfeição. Portanto, as consequências do seu erro são sentidas até os nossos dias.
Esta foi a semelhança do teste de Avraham com o teste de Adam Harishon. Quando D'us comandou Avraham a sacrificar seu filho, ele também poderia ter feito cálculos, poderia ter tentado fazer "melhor" do que D'us pediu, ele tinha motivos lógicos suficientes para isso. Mas Avraham venceu o teste, como afirma o próximo versículo: "E Avraham madrugou de manhã e selou seu jumento..." (Bereshit 22:3). Avraham não ficou dormindo até tarde, esperando D'us mudar de ideia. Ele madrugou e começou a fazer pessoalmente os preparativos, para cumprir a vontade de D'us o mais rápido possível.
Porém, o teste não terminou no momento em que Avraham decidiu fazer a vontade de D'us. Assim diz o próximo versículo: "No terceiro dia Avraham levantou os olhos e viu o lugar de longe" (Bereshit 22:4). Por que a Torá detalhou que o sacrifício aconteceria no terceiro dia, que diferença faz? D'us não queria que Avraham fizesse Sua vontade apenas por impulso. Se D'us pedisse para Avraham sacrificar seu filho imediatamente, teria sido mais fácil ele juntar suas forças e, no ímpeto, sacrificar seu filho. Mas D'us fez com que Avraham andasse por três dias, o tempo todo com a ideia na cabeça de que estava indo sacrificar seu próprio filho. Por três dias Avraham lutou contra seu próprio intelecto, e venceu. A conclusão da história é que Avraham cumpriu a vontade de D'us e tudo terminou bem, sem nenhuma contradição. A lógica de D'us se mostrou, obviamente, muito superior à lógica limitada de Avraham.
Podemos criticar Adam Harishon por ter caído no seu teste. Mas na realidade temos que perceber que esta é a fonte da maioria dos erros que nós cometemos. A falta de humildade nos leva a pensar que podemos ir contra a vontade de D'us e ainda assim ter sucesso. Ele nos entregou a Torá, um "manual de instruções" de como viver a vida, para que possamos errar menos e acertar o caminho correto. Para todas as atividades que fazemos na vida há um certo e um errado, e a Torá nos ensina o que fazer em cada situação. Mas apesar disso, jogamos o manual pela janela e preferimos viver de acordo com as nossas "certezas", mesmo que a experiência mostre que estamos indo cada vez mais para baixo. Desunião, desonestidade, violência e promiscuidade são, infelizmente, valores cada vez mais normais.
Um dos equipamentos imprescindíveis de mergulhadores profissionais é um relógio que mostra se ele está afundando ou subindo. Aparentemente este relógio não serve para nada, pois qualquer pessoa normal sabe, sem dificuldades, se está subindo ou descendo na água. A resposta é que por causa das altas pressões no fundo do mar, muitas vezes um mergulhador pode sentir um mal estar súbito chamado "embriaguez dos mergulhadores", no qual ele perde as referências de direção, como se tivesse ingerido uma grande quantidade de álcool. Isto pode ser fatal no fundo do mar, pois a pessoa pode afundar ao invés de subir, morrendo afogado. O relógio serve para a pessoa, neste momento em que está se sentindo desnorteada, saber se está afundando ou subindo. Assim também é a nossa Torá, um "equipamento" para utilizarmos em momentos como o que vivemos atualmente, onde tudo está confuso, para saber se estamos subindo ou afundando.
Por que Avraham é chamado de "Avinu" (Nosso pai)? Pois da mesma forma que um pai transmite para seus filhos a herança genética, Avraham nos transmitiu uma herança genética espiritual. Recebemos dele a força para vencer os testes que surgem em nossa vida. Recebemos dele o ensinamento de não fazer cálculos diante dos ensinamentos de D'us. Se foi D'us Quem nos comandou algo, não devemos questionar, pois somos limitados, somos insignificantes diante Dele. Seguindo o "manual", podemos nos tornar grandes vencedores, ao invés de terminar a corrida da vida afogados nas incertezas e dificuldades.

SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm
Gn.18:1-22:24, 2Rs. 4:1-37, Lc.1:26-38, 24:36-53