sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

FONTE DA ALEGRIA VERDADEIRA - PARASHÁ MIKETZ E CHÁNUKA 5777

"O primeiro dia de aula era sempre o mais esperado pelos alunos do 4º ano. A senhora Dália, a professora, distribuía aos alunos tarefas pelas quais eles seriam responsáveis durante o ano todo, tais como preparar os livros para as aulas, manter o relógio da sala de aula sempre pontual, limpar a lousa ou cuidar de um dos animais de estimação da turma. Como algumas tarefas eram mais interessantes, as crianças ficavam ansiosas para saber quem seriam os escolhidos para serem responsáveis por elas. Porém, a distribuição não era aleatória. A senhora Dália levava em consideração quais alunos tinham sido mais responsáveis ​​no ano anterior e estas crianças eram as que recebiam as tarefas de maior responsabilidade.

Entre os melhores alunos, Sara certamente se destacava. Era uma garota boazinha e tranquila, e durante o ano anterior havia sido uma aluna exemplar. Todas as crianças sabiam que Sara era a favorita para receber a melhor tarefa. Porém, naquele ano houve uma grande surpresa. Cada criança recebeu sua tarefa, mas a tarefa de Sara foi muito diferente do que ela esperava. Ela recebeu uma pequena caixa, contendo um pouco de areia e algumas formigas. Sua função era cuidar do bem estar daquelas formigas e acompanhar o seu desenvolvimento.

A decepção de Sara era visível em seu rosto. Ao perceber, a senhora Dália tentou animá-la, insistindo que aquelas formigas eram especiais, mas Sara estava muito triste. E o pior foi o comportamento de alguns dos seus colegas. Sara podia ver o risinho de contentamento no rosto deles, como se estivessem dizendo: "agora você vai sentir o que nós sentimos". Pareciam felizes com a tristeza dela.

Uma das melhores amigas de Sara, vendo a tristeza nos olhos dela, encorajou-a a não cuidar das formigas, como uma forma de protesto contra a professora. No entanto, Sara era uma menina muito responsável. Ela escolheu ignorar as risadinhas e o desprezo dos seus colegas por sua tarefa aparentemente sem importância. Ela estava decidida a transformar aquela tarefa em algo especial. Sara começou a pesquisar tudo sobre aquela espécie de formiga. Acabou aprendendo também sobre as diferentes espécies e os detalhes de cada tipo de habitat natural. Ela modificou a pequena caixa para torná-la mais adequada às necessidades das formigas, procurou os melhores alimentos e ajudou-as a se desenvolverem bem mais do que a professora esperava. Um dia, quando os alunos estavam na sala de aula, um homem desconhecido abriu a porta. Pelas roupas, parecia ser alguém importante. A senhora Dália interrompeu a aula e, com grande alegria, disse:

- Crianças, este é o Sr. Martin. Ele é o Ministro da Educação e veio nos dar uma notícia maravilhosa. Inscrevi o trabalho da Sara com as formigas em uma Feira de Ciências nacional, representando a nossa escola, e o resultado da competição saiu ontem.  Nossa escola foi a vencedora e o prêmio é que a nossa classe participará de uma viagem para uma floresta tropical, para podermos passar uma semana pesquisando sobre todos os tipos de insetos. Parabéns, vocês serão assistentes de pesquisa.

Os alunos pularam de alegria. Todos cumprimentaram a senhora Dália pela iniciativa de inscrever a escola na Feira de Ciências.  Mas os maiores agradecimentos foram para Sara, por ter sido tão responsável. Foi assim que Sara e as outras crianças aprenderam a ter responsabilidade mesmo em tarefas aparentemente menos importantes. Além disso, aprenderam que devemos estar contentes com o que temos, sem invejar os outros e sem nos preocuparmos com o que os outros pensam sobre as nossas conquistas. Naquele dia, as crianças daquela escola aprenderam a receita da alegria verdadeira. 
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Vimos na Parashá da semana passada o início da história de Yossef. Após ter sido vendido como escravo por seus irmãos, Yossef chegou à casa de Potifar, um ministro do Faraó. Ele foi injustamente acusado de atacar a esposa de Potifar e foi mandado para a prisão. Lá, ele conheceu o padeiro-chefe e o copeiro-chefe, pois ambos haviam transgredido contra o Faraó e haviam sido enviados para a prisão. Certo dia eles tiveram sonhos estranhos, que foram interpretados por Yossef: o padeiro-chefe receberia pena de morte em três dias, enquanto o copeiro-chefe seria perdoado em três dias e voltaria às suas funções no palácio do Faraó. E assim aconteceu.

Já a Parashá desta semana, Miketz (literalmente "no fim de"), começa com um sonho perturbador do Faraó: "E o Faraó sonhou. E eis que ele estava ao lado do Nilo. E eis que do Nilo emergiram sete vacas de aparência bonita e de carne saudável, e estavam pastando no pântano. E eis que sete outras vacas emergiram do Nilo depois delas, feias e magras... e as vacas feias e magras comeram as sete vacas de aparência bonita e saudáveis, e o Faraó despertou" (Bereshit 31:1-4). Este sonho tirou o sono do Faraó e o deixou angustiado, mas nenhum de seus magos conseguia interpretá-lo. Então o copeiro-chefe lembrou-se de Yossef e a interpretação correta do seu sonho e do sonho do padeiro-chefe, e sugeriu ao Faraó trazê-lo ao palácio. Yossef foi imediatamente tirado da prisão e trazido diante do Faraó. Com inspiração Divina, Yossef interpretou corretamente o sonho do Faraó. O sonho tratava-se de uma revelação Divina ao Faraó sobre o que futuramente ocorreria ao Egito. Viriam sete anos de muita abundância e fartura, representados pelas vacas gordas e saudáveis, seguidos de sete anos de fome e escassez, representados pelas vacas feias e magras. Os anos de fome seriam tão terríveis, haveria tanta escassez, que as pessoas rapidamente esqueceriam os anos de fartura.

A maioria dos comentaristas da Torá entende que existe uma relação direta entre as vacas e a economia egípcia. Por se tratar de uma sociedade basicamente agrícola, o sucesso da economia egípcia era medido em relação aos seus rebanhos. A abundância resultava em animais bem alimentados, enquanto a escassez resultava em animais desnutridos. Rashi (França, 1040 - 1105), entretanto, foge desta explicação tradicional. De acordo com ele, a expressão "Yafot Marê", que literalmente significa "de aparência bonita", é uma alusão aos anos de abundância, quando as pessoas olharão uns aos outros de forma positiva e favorável. Diferente dos outros comentaristas, Rashi afirma que as vacas não representavam os rebanhos possuídos pelos egípcios, e sim os próprios egípcios. Mas de acordo com esta explicação de Rashi, como entendemos a continuação do versículo, que diz que as vacas tinham uma carne saudável? E o que levou Rashi a "fugir" da explicação tradicional?

Explica o Rav Yohanan Zweig que o termo utilizado pela Torá para abundância é "Sôva". Rashi entende que esta expressão não se refere apenas à abundância, o lado quantitativo, mas também ao contentamento, o lado qualitativo. O contentamento de uma pessoa não é medido apenas por seu nível econômico e pela quantidade de bens que ela possui, pois também depende muito do seu estado de espírito. Muitas pessoas, apesar de terem abundância, vivem tristes e deprimidas. Um exemplo deste fenômeno é a sociedade na qual vivemos. Muitas pessoas têm muito mais recursos do que jamais precisarão em suas vidas e mesmo assim estão infelizes. Um dos principais motivos é a inveja. Estas pessoas se incomodam tanto com o sucesso dos outros que acabam se esquecendo de aproveitar e valorizar suas próprias conquistas. Por isso, apesar de terem muito, nunca estão satisfeitos com o fruto do seu próprio trabalho. A inveja e a competição tiram a alegria de vida da pessoa. Por outro lado, se uma pessoa é capaz de ver o sucesso do seu companheiro de uma forma positiva e favorável, então isto é sinal de que ela está realmente contente com o que tem. É por isso que Rashi "fugiu" da interpretação tradicional, pois ele entende que a expressão "Sôva" significa uma época de contentamento, o que somente pode ocorrer quando as pessoas são capazes de ver com bons olhos o que os outros têm.

Esta explicação de Rashi é apoiada por um Midrash (parte da Torá Oral) que explica as palavras do versículo "e estavam pastando no pântano". A palavra "pântano", em hebraico "Achu", vem da mesma raiz da palavra "Achvá", que significa "irmandade". O Midrash afirma que o conceito de "vacas de aparência bonita e saudáveis" se refere a uma época de amor e irmandade no mundo. Porém, uma pessoa somente consegue olhar com bons olhos o que o outro tem caso ela consiga olhar para si mesma de uma maneira saudável. O autorrespeito, acompanhado da habilidade de medir nosso valor de acordo com os nossos próprios esforços e conquistas, nos dá a segurança para podermos participar da alegria e do sucesso dos outros. Isto está representado nas palavras "carne saudável", que se refere a uma pessoa que está com boa disposição e vê a si mesma de uma maneira saudável e positiva. O autorrespeito e a boa autoestima trazem amor e irmandade ao mundo. Por outro lado, se uma pessoa não tem respeito por si mesma, se não tem uma boa autoestima, somente conseguirá medir suas próprias conquistas comparando com as conquistas dos outros. Assim, ela estará sempre se sentindo ameaçada pelo sucesso dos outros e, portanto, nunca se alegrará, nem com o sucesso dos outros e nem com o seu próprio sucesso. Isto gera inveja, desavenças e desunião.

A Parashá Miketz sempre coincide com a Festa de Chánuka, pois a luta do povo judeu contra os gregos está fortemente conectada com este conceito ensinado na Parashá. Parte da herança da cultura Helenista, transmitida pelos gregos ao mundo inteiro, é a valorização do material sobre o espiritual, do corpo sobre a alma. As pessoas pensam atualmente que o nosso verdadeiro valor é definido pelo que temos, não pelo que somos. Isto cria uma sociedade doente, com pessoas infelizes que não conseguem se alegrar com as conquistas dos outros por se sentirem ameaçadas, como se estivessem em constante competição. Somente quando tivermos a tranquilidade de saber que cada um tem a sua própria missão e suas ferramentas, entregues por D'us sob medida, e que não devemos nos comparar com ninguém, então poderemos nos alegrar, não apenas com as nossas conquistas, mas também com as conquistas dos outros. Desta maneira, mais uma vez teremos vencido a escuridão dos gregos.

SHABAT SHALOM e CHÁNUKA SAMEACH
R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 41:1-44:17, 1 Rs. 3:15-4:1

sábado, 24 de dezembro de 2016

LOUVOR E AGRADECIMENTO - PARASHÁ VAIESHEV E CHÁNUKA 5777

O Rav Shraga Shmuel Schnitzler zt"l (Hungria, 1889 - Israel, 1979), mais conhecido como Tachaber Rav, estava no Campo de Concentração de Bergen Belsen, o verdadeiro inferno na Terra. Ele passava os dias tentando trazer tranquilidade e esperança aos outros judeus. Era o mês de Kislev de 1944 e a Festa de Chánuka se aproximava. Desde o começo do mês o Rav Shraga Shmuel tentava conseguir um pouco de óleo para acender a Chanukiá, mas sem sucesso. Desanimado, ele percebeu que Chánuka se aproximava e faltavam apenas alguns poucos dias. Ele sabia que se não acendesse a Chanukiá naquele ano, cortaria o último fio de esperança de muitos judeus do Campo de Concentração. Ele não queria desistir. Mesmo que só conseguisse acender por um dia, mesmo que fossem apenas por alguns instantes, mesmo que fosse somente um acendimento simbólico, ele queria trazer um pouco de luz para aquela terrível escuridão física e espiritual.

Certo dia, o Rav Shraga Shmuel estava caminhando pelo Campo de Concentração quando tropeçou em um buraco no chão e quase caiu. Ele percebeu que havia algo dentro daquele buraco, pois a terra lá dentro estava um pouco mais fofa. Após se certificar que nenhum guarda nazista o observava, ele começou a cavar. Encontrou um pequeno pote com um líquido dentro que parecia óleo. O milagre de Chánuka estava se repetindo mais uma vez. O Rav Shraga Shmuel não cabia em si de contentamento. Ele colocou mais uma vez a mão dentro do buraco e percebeu que havia um embrulho. Ao abrir, viu que eram oito pequenos copinhos de vidro e oito pavios finos de algodão. Era óbvio que algum dos prisioneiros havia escondido lá sua Chanukiá e o óleo, mas quem seria? Será que ainda estava vivo? Ele enterrou novamente seu recém-encontrado tesouro, caso o dono verdadeiro viesse buscar.

Nos dias seguintes ele passou o tempo inteiro procurando o dono daquela Chanukiá, mas não era de ninguém que estava no Campo de Concentração. Quando Chánuka chegou, o Rav Shraga Shmuel foi buscar a Chanukiá no buraco. Ele acendeu a vela, enquanto um grupo assistia, em total silêncio, aquela pequena luz lutando sua batalha eterna contra a escuridão. Alguns sorriram diante daquele milagre, outros derramaram lágrimas de emoção. Uma pequena fagulha de esperança se acendeu no coração de todos aqueles judeus que presenciavam um novo milagre de Chánuka. O milagre se repetiu nas oito noites de Chánuka, enquanto a pequena luz vencia a terrível escuridão nazista. Poucos meses depois, em abril de 1945, um milagre ainda maior aconteceu. Os alemães se rendiam às forças aliadas e a guerra chegava ao fim. O Rav Shraga Shmuel foi um dos poucos judeus da Europa que conseguiram sobreviver. Depois de sair de Bergen Belsen, ele voltou para a Hungria, onde se estabeleceu como líder espiritual de muitos sobreviventes do Holocausto.

Passaram-se muitos anos. Em uma viagem aos Estados Unidos, o Rav Shraga Shmuel foi fazer uma visita ao Rav Yoel Teitelbaum zt"l (Hungria, 1887 - Estados Unidos, 1979), mais conhecido como Satmer Rebe. Entre outras conversas, o Satmer Rebe comentou que também havia sido prisioneiro em Bergen Belsen. O Satmer Rebe contou que havia estado lá um ano antes do Rav Shraga Shmuel e que havia sido resgatado quatro dias antes de Chánuka. Ele comentou que já havia se preparado para Chánuka. Havia subornado alguns guardas para juntar óleo, potes de vidro e pavios de algodão, e havia enterrado tudo em um buraco. Comentou que o que lhe deixava muito triste era saber que ninguém havia utilizado aquela Chanukiá enterrada. Ao escutar isso, o Rav Shraga Shmuel abriu um sorriso e disse:

- Não se preocupe, sua Chanukiá foi usada. Ela dissipou a escuridão de centenas de judeus e ajudou-os a terem força e esperança para aguentar até o final da guerra. Foi um novo milagre de Chánuka" (História Real) 
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Nesta semana lemos a Parashá Vaieshev (literalmente "e se estabeleceu"), que conta a história de Yossef e seus irmãos, filhos do nosso patriarca Yaacov. A Torá se alonga na descrição dos acontecimentos da vida de Yossef. Ele foi vendido como escravo pelos seus próprios irmãos e, após alguns altos e baixos, acabou se tornando o vice-rei do Egito, um dos homens mais poderosos do mundo. Ao analisarmos a vida de Yossef, percebemos que a mão de D'us estava sempre presente, dirigindo cada pequeno acontecimento da sua vida. E este conceito de enxergar a mão de D'us está conectado com a nossa próxima parada no calendário judaico. Logo após o fim deste Shabat começaremos a reviver a Festa de Chánuka. Durante oito dias acendemos as velas da Chanukiá e acrescentamos na nossa Tefilá (reza) o trecho de "Al Hanissim" e o Halel (louvores). Chánuka é a Festa na qual celebramos a incrível vitória do povo judeu sobre o poderoso exército grego e o posterior milagre do único jarro de óleo encontrado intacto, suficiente para acender a Menorá por apenas um dia, mas que durou por oito dias.

Porém, há uma aparente contradição nas fontes judaicas sobre qual milagre é o mais significativo para representar a Festa de Chánuka. Por um lado, se prestarmos atenção no texto do "Al Hanissim", perceberemos que o principal foco é a vitória militar sobre os gregos, ressaltando a natureza milagrosa dos eventos através dos quais D'us permitiu que os judeus saíssem vitoriosos da guerra. Em contraste, o Talmud (Shabat 21b) coloca uma ênfase muito maior no milagre do óleo do que na vitória militar. Quando o Talmud questiona: "O que é Chánuka?", a resposta é a descrição do milagre do óleo, com apenas uma rápida referência à batalha. Afinal, qual dos dois milagres é o mais significativo?

Explica o Rav Chaim Friedlander zt"l (Alemanha, 1923 - Israel, 1986) que há dois aspectos que podem definir a importância de um milagre. Um dos aspectos é a necessidade do milagre ocorrer, isto é, quanto maior a urgência de uma situação, mais importante é o milagre. Por exemplo, antes do milagre da abertura do Mar Vermelho ocorrer, o povo judeu estava cercado no deserto, com os egípcios quase os alcançando e o imenso mar diante deles. Era um milagre extremamente necessário e urgente, que dele dependia a salvação do povo inteiro. Há também um segundo aspecto que pode definir a importância de um milagre, que é a medida do quanto um milagre quebra as leis da natureza. De acordo com o judaísmo, tudo é um grande milagre, pois é a mão de D'us que faz tudo acontecer. Apesar de ser algo cotidiano, até mesmo o ato de acender um fósforo é um milagre. A natureza é um simples mecanismo que D'us criou para manter o mundo funcionando sem precisar intervir o tempo inteiro de maneira revelada. Não há nenhuma dificuldade para D'us quebrar as leis que Ele mesmo criou. Entretanto, de acordo com Sua sabedoria infinita, raramente Ele faz isto, pois milagres que envolvem a quebra das leis da natureza atingem diretamente o livre arbítrio das pessoas. Nas raras ocasiões nas quais Ele quebra as leis da natureza, há um efeito muito forte sobre as pessoas que testemunharam o milagre, pois neste caso fica impossível ignorar a Providência Divina. Quanto maior e mais evidente a quebra da natureza, maior o impacto sobre as pessoas e, portanto, maior o nível de importância do milagre.

Isto nos ajuda a entender que cada um dos milagres que aconteceram em Chánuka é mais importante que o outro em um dos aspectos. Em termos da necessidade, a vitória militar sobre os gregos foi muito mais importante do que o milagre do óleo. Os decretos gregos estavam colocando em risco o cumprimento da Torá e a continuidade do povo judeu e, por isso, era essencial que o pequeno exército judeu superasse os poderosos gregos. Por outro lado, os milagres que possibilitaram a vitória militar do povo judeu não aconteceram de forma aberta, não foi necessária a quebra das leis da natureza. Alguém que testemunhou o milagre da batalha poderia atribuir a vitória à destreza dos judeus nas batalhas ou à sorte. Já o milagre do óleo não foi um milagre de grande necessidade. Mesmo sem este milagre o povo judeu já estava livre do jugo grego e poderia retomar em breve os Serviços do Beit Hamikdash (Templo Sagrado). Entretanto, este milagre foi extraordinário no sentido que representou de forma clara a quebra das leis da natureza. Milagres como este têm um poderoso efeito nas pessoas que testemunharam, deixando o envolvimento de D'us no milagre quase irrefutável.

Com este entendimento podemos responder a diferença de abordagem entre o Talmud, que foca no milagre do óleo, e o texto do "Al Hanissim", que enfatiza a vitória militar. De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), quando o Talmud questiona "O que é Chánuka?", a pergunta na verdade é "Por causa de qual milagre nossos sábios fixaram Chánuka como uma comemoração permanente?". Ensina o Rav Chaim Friedlander que houveram muitos eventos milagrosos na história do povo judeu e cada um deles foi transformado em uma espécie de "Yom Tov", no qual era proibido fazer "Hespedim" (discursos de elogio aos falecidos) e jejuns. Porém, chegou um momento em que estes eventos eram tão abundantes que os rabinos decidiram cancelar todos eles, com exceção de Purim e Chánuka, pois foram milagres que tiveram impactos muito profundos no povo judeu. O questionamento do Talmud é para tentar identificar qual é o milagre excepcional que justificou Chánuka ter continuado como uma Festa permanente, enquanto os outros dias de milagres foram anulados. É por isso que a resposta do Talmud foca principalmente no milagre do óleo, pois certamente foi um milagre que, por quebrar as leis da natureza, foi muito mais marcante para o povo judeu do que o milagre da batalha.

Entretanto, quando é o momento do povo judeu agradecer a D'us pelos milagres de Chánuka, nosso foco principal é no milagre mais necessário, que salvou nossas vidas e permitiu o judaísmo existir até hoje. Este milagre é a vitória na batalha contra os gregos, a vitória de poucos contra muitos, dos fracos contra os fortes. Como o "Al Hanissim" é o momento de agradecimento na nossa Tefilá, a principal ênfase é dada à vitória militar, pois este é o aspecto da história de Chánuka de maior necessidade para a continuidade do povo judeu.

O Talmud (Shabat 21b) termina sua explicação dizendo que o período de Chánuka é conhecido como "dias de Halel VeHodaá", que literalmente significa "dias de louvor e agradecimento". Talvez o Talmud esteja se referindo aos dois aspectos dos milagres que aconteceram em Chánuka. O louvor é feito em relação ao milagre do óleo, pois é o milagre que mostra de forma mais completa o envolvimento de D'us com o povo judeu, enquanto o agradecimento é feito em relação ao milagre da batalha, pois nosso maior sentimento de gratidão é em relação à nossa redenção do exílio grego.

Uma das principais lições que podemos aprender da Festa de Chánuka é que D'us faz milagres o tempo inteiro. Algumas poucas vezes Ele faz milagres abertos, que quebram as leis da natureza, mas na grande maioria das vezes os milagres são ocultos e somente conseguimos enxergar se pararmos para prestar atenção e refletir. Mesmo quando D'us faz milagres em nossas vidas, se não internalizamos, em pouco tempo as marcas deste milagre somem. Os milagres devem nos trazer para níveis espirituais mais elevados, devem nos tirar do comodismo. D'us permitiu que os gregos dominassem os judeus pois estávamos acomodados. Somente quando o povo judeu reagiu e lutou para reestabelecer as leis da Torá é que D'us nos salvou com milagres. Em um mundo de tanta escuridão, representada pelo comodismo, pela preguiça e pela falta de espiritualidade em nossas vidas cotidianas, as luzes de Chánuka nos trazem de volta à nossa essência verdadeira.   
SHABAT SHALOM E CHÁNUKA SAMEACH

R' Efraim Birbojm
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Gn. 37:1-40:23, Am. 2:6-3:8

domingo, 18 de dezembro de 2016

QUANTO VALE UMA VIDA? - PARASHÁ VAISHLACH 5777

Sharon Steiff era professora de inglês da oitava série na Maimonides School, em Massachusetts. Ela foi diagnosticada com leucemia e, apesar de ter procurado incansavelmente por um doador de medula óssea, ela faleceu sem encontrar ninguém compatível. O falecimento daquela professora abalou muito seus alunos, entre eles Itzik, um rapaz religioso. Naquela época ele não tinha idade suficiente para ser doador, mas ficou com aquela ideia guardada na cabeça. Somente em março de 2007, quando já estudava em Israel, finalmente conseguiu se registrar como potencial doador de medula óssea, uma homenagem a sua professora.

Por algum tempo ele continuou com sua vida cotidiana. Mas tudo mudou em novembro de 2008, durante seu segundo ano na Yeshiva University. Certa manhã, enquanto caminhava para a aula, seu telefone celular tocou com um número que ele não conhecia. Era a instituição "Gift of Life", informando que ele era um potencial doador para um paciente que precisava urgentemente da doação de medula óssea. Itzik, pego de surpresa, começou a procurar motivos para não doar. Tinha provas na faculdade e muitos trabalhos para entregar, e no fundo também sentia um pouco de medo. Mas lembrou-se do desespero de sua professora procurando um doador. A chance de salvar a vida de alguém não era algo que surgia todos os dias. Era o momento de dar para outra pessoa o presente que sua professora nunca havia recebido. Então Itzik disse sim.

Depois de alguns exames complementares, Itzik foi autorizado a doar células-tronco. De repente, tudo se tornou real. Ele estava realmente indo doar vida para alguém, ele estava indo salvar a vida de outra pessoa. Itzik informou seus professores que perderia uma semana de aulas. Eles foram muito acolhedores e solidários, permitindo-o fazer as provas e trabalhos depois. Todos estavam orgulhosos da sua atitude corajosa.

No dia 2 de fevereiro, sua data de doação, ele foi ao hospital. Seis horas depois, estava feito. Foram necessários alguns dias para que Itzik recuperasse totalmente a sua força. Ele recebeu total apoio da família e dos amigos, o que definitivamente ajudou-o a passar por todo o difícil processo. O paciente que recebeu a doação aos poucos foi se recuperando, até que pôde voltar à sua vida ao normal. Com seu gesto nobre, Itzik havia salvado a vida de outro ser humano, e isto não tinha preço. Itzik conta que teve seus temores e seus momentos de dúvida, mas lembrar que estava dando a alguém o dom da vida era a melhor motivação que poderia ter (História real). 
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Nesta semana lemos a Parashá Vaishlach (literalmente "E enviou"), que descreve o momento em que Yaacov começou a voltar para casa. Yaacov havia passado 14 anos no Centro de Estudos de Torá de Shem e Ever, descendentes de Noach, e mais 20 anos trabalhando na casa de seu tio Lavan, para fugir da fúria de seu irmão Essav, que queria matá-lo. Ele havia partido de casa sozinho, mas voltava agora com uma enorme família. Depois de tantos anos, Yaacov acreditava que a fúria de Essav já havia se aplacado e que ele poderia voltar tranquilamente para casa. Ele mandou mensageiros para verificar como estava a situação, mas os mensageiros voltaram com a terrível notícia de que Essav vinha ao seu encontro com um verdadeiro exército. Certamente a fúria de Essav ainda queimava dentro dele e o tempo não havia conseguido acalmá-lo.

Porém, o que nos chama mais a atenção foi a reação de Yaacov ao escutar as más notícias, pois está escrito: "E Yaacov ficou com medo e isto o angustiou" (Bereshit 32:8). Como pode ser que Yaacov ficou angustiado? Ele era neto de Avraham, aquele mesmo Avraham que havia derrotado, com poucos homens, a coligação dos quatro exércitos mais poderosos do mundo. Além disso, Yaacov havia presenciado os milagres que D'us fez para protegê-lo das trapaças e da ameaça física de Lavan. D'us havia aparecido para Yaacov em um sonho e havia garantido que o protegeria de qualquer mal. Yaacov podia até estar preocupado com as consequências de uma batalha sangrenta, e que talvez ele não tivesse méritos para ser salvo. Mas por que ele ficou angustiado? Ficar angustiado não é uma demonstração de falta de Emuná (fé)?

Rashi (França, 1040 - 1105) explica que Yaacov realmente teve medo de ser morto por Essav na batalha, mas ele tinha Emuná (fé) completa em D'us, sabia que se ele tivesse méritos, D'us poderia protegê-lo mesmo contra um poderoso exército. Mas a angústia de Yaacov era que, em uma situação de guerra, ele teria que matar Essav. Portanto, a maior preocupação de Yaacov era não querer matar seu próprio irmão.

De acordo com o Rav Yehuda Loew zt"l (Polônia, 1525 - República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, Rashi não falou explicitamente que Yaacov estava com medo de matar Essav, e sim que "Yaacov estava com medo de matar outros". Ele explica que, na realidade, Yaacov estava com medo de matar os homens que estavam acompanhando Essav, pois havia a possibilidade de que eles não tinham a intenção de matá-lo, e sim estavam sendo forçados por Essav a lutar contra ele.

Porém, o Talmud (Sanhedrin 72a) afirma que "se alguém vem te matar, se levante e o mate". Isto significa que, apesar de um dos mandamentos mais importantes da Torá ser o "Não matarás", isto não se aplica à autodefesa. A pessoa tem a obrigação de se defender caso sua vida esteja em risco. Então por que Yaacov chegou a ficar angustiado com a possibilidade de matar Essav ou os homens que o estavam acompanhando? Mesmo que estavam sendo obrigados a atacar Yaacov, ele tinha o dever de proteger sua própria vida, mesmo que para isto fosse necessário matar aqueles que colocavam sua vida em risco!

Explica o Rav Yohanan Zweig que, infelizmente, a dificuldade que temos em relação à explicação trazida por Rashi vem da falta de entendimento do verdadeiro valor de uma vida humana. Vivemos em uma época em que as pessoas não valorizam mais a vida. O último século testemunhou duas guerras mundiais, nas quais morreram milhões de inocentes das formas mais cruéis. Atualmente pessoas matam para roubar um tênis ou um celular. O descaso com a vida é assustador, e cada vez mais os governos aumentam os investimentos em armas de destruição em massa. O mundo atualmente vive sob o terror das armas nucleares, que em segundos podem destruir cidades inteiras.

Porém, não é apenas nas guerras e nos crimes que vemos a falta de valor à vida. O aborto é visto cada vez mais como uma opção válida, dando ao ser humano o poder de escolher quem merece e quem não merece nascer e viver. Não estamos falando de casos de aborto de bebês que são fruto de atos de violência. O grande perigo é que, a partir do momento em que o aborto for visto como uma opção natural, isto pode abrir precedentes para que mesmo motivos banais sejam utilizados para justificar a interrupção de uma gravidez. Um feto já é um potencial de vida, e após 40 dias de gestação ele já tem uma alma. Interromper este potencial de vida é um crime. A eutanásia também ganha cada vez mais força, deixando claro que o ser humano considera que a vida pertence a nós, e qualquer um tem o direito de acabar com uma vida, mesmo que seja a sua própria vida, quando assim decidir. E tudo isto ocorre por não sabemos o valor verdadeiro de uma vida.

A Torá não é insensível. Ela entende a dor daqueles que estão passando por dificuldades, como a família de um paciente que está sofrendo em estado terminal. Porém, a Torá leva em consideração que D'us tem cálculos perfeitos e Sua bondade é ilimitada, enquanto nós somos limitados. É um terrível equívoco pensar que somos donos da vida. Não fomos nós que construímos nosso corpo e não fomos nós que colocamos neste corpo inerte uma alma de vida. Portanto, por que achamos que podemos decidir sobre a vida e a morte? O único dono da vida e da morte é D'us, o Criador de tudo. Uma pessoa que quer abortar ou praticar a eutanásia está se colocando acima de D'us. Somente D'us sabe todos os cálculos e pode levar em consideração também as implicações espirituais de cada instante de vida e de cada sofrimento. Somente Ele conhece o passado, o presente e o futuro, e Ele sabe o que é o melhor para cada um de nós. Cabe a nós termos Emuná (fé) de que tudo o que Ele faz é para o nosso bem.

A partir do momento em que D'us coloca uma alma dentro de um corpo, a pessoa recebe um potencial gigantesco de realização. O fim de uma vida representa o fim deste potencial. Por isso, embora exista a permissão de transgredir o "Não matarás" para proteger a própria vida, ainda assim o fato de tirar uma vida, encerrando assim um potencial, é uma grande tragédia. Apesar da permissão de matar por autodefesa, mesmo assim doía muito em Yaacov a ideia de matar outro ser humano. Mesmo que havia a possibilidade de serem Reshaim (malvados), assassinos cruéis, ainda assim a possibilidade de precisar tirar a vida de uma pessoa fez Yaacov ficar angustiado, pois Yaacov sabia o verdadeiro valor de uma vida humana.

Precisamos voltar a ter a sensibilidade do valor verdadeiro de uma vida. Uma vida não tem preço, como afirma o Talmud (Sanhedrin 37a): "Aquele que salva uma vida, salva o mundo inteiro". Enquanto as pessoas se preocupam em aprovar leis que permitem o aborto e a eutanásia, bancos de sangue ficam vazios e pessoas morrem por falta de doadores de medula óssea. Ao invés de valorizar tanto a morte, é hora de começarmos a valorizar a vida.     
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
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Gn. 32:3 -36:43, Ob.1:1-21

sábado, 10 de dezembro de 2016

HONESTIDADE ACIMA DE TUDO - PARASHÁ VAIETSE 5777

Três estudantes universitários não queriam fazer a prova final do curso de engenharia, pois haviam passado o final de semana curtindo e não tinham estudado nada. Mas como poderiam convencer o professor a deixá-los fazer a prova depois? Eles elaboraram um plano incrível. Sujaram suas roupas com graxa, óleo e gasolina e foram falar com o professor nos minutos finais da prova.

- Professor, pedimos desculpas, não conseguimos chegar a tempo para fazer a prova. Estávamos em um casamento no Rio de Janeiro e na volta o carro quebrou. Passamos muito tempo tentando consertar o carro, por isso estamos assim sujos. Não temos condições psicológicas de fazer a prova agora. Por favor, podemos fazer em outro dia?

O professor pensou por alguns instantes e, de maneira muito compreensiva, marcou a prova para três dias depois. Os amigos ficaram muito felizes com o sucesso de sua malandragem, pois haviam aproveitado o fim de semana e ainda fariam a prova em outro dia, com bastante tempo para estudar. Depois de três dias eles foram fazer a prova confiantes, pois haviam estudado muito e estavam bem preparados. Para a surpresa deles, o professor colocou-os em salas separadas. Quando receberam a prova, quase desmaiaram. A prova tinha apenas quatro perguntas:

1. De quem era o casamento no Rio de Janeiro?
2. Que horas o carro quebrou?
3. Aproximadamente em que trecho da estrada o carro quebrou?
4. Qual é o modelo do carro?

Embaixo das perguntas estava escrita a seguinte frase: "Caros alunos, ser honesto significa escolher não mentir, não roubar, não enganar e não trapacear de modo algum, mesmo quando parece justificável. Quando somos honestos, desenvolvemos a força de caráter que nos permite melhorar nosso relacionamento com D'us e com o próximo. Sendo honestos, alcançamos a paz de espírito, além do respeito e a confiança do próximo. Boa prova" 
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A Parashá desta semana, Vaietse (literalmente "E saiu"), descreve a viagem de Yaacov para a casa de seu tio Lavan, para fugir da fúria de seu irmão Essav e para procurar uma esposa. Yaacov conheceu a filha de Lavan, Rachel, e percebeu que com ela construiria o povo judeu. Mas como Yaacov não tinha dinheiro para o dote, Lavan cobrou dele sete anos de trabalho. Após trabalhar os sete anos, Yaacov foi enganado e acabou casando-se com a outra filha de Lavan, Leá. Teve então que trabalhar outros sete anos por Rachel. Depois disso, ainda trabalhou mais seis anos para Lavan com o intuito de juntar um pouco de dinheiro e bens para sua própria família. Quando decidiu voltar para casa, ainda foi perseguido por Lavan, que quis checar nos utensílios de Yaacov se ele havia roubado algo.

No total, Yaacov trabalhou por 20 anos para seu tio Lavan. Apesar do tempo tão longo e das péssimas condições de trabalho, a Torá atesta que durante todos estes anos ele foi completamente honesto, como está escrito em relação aos sete anos adicionais que Yaacov teve que trabalhar por Rachel: "E (Yaacov) trabalhou com ele (Lavan) outros sete anos" (Bereshit 29:30). Rashi aprende deste versículo que a Torá quis conectar os sete anos finais com os sete anos iniciais, para nos ensinar que, da mesma forma que os sete anos iniciais foram com honestidade completa, assim também os sete anos finais foram com honestidade completa.

Mas deste comentário de Rashi surge uma grande pergunta. Por acaso teríamos alguma desconfiança da honestidade de Yaacov? Nossos patriarcas eram incríveis exemplos de retidão. Yaacov era uma pessoa tão correta, tão íntegra, tinha tanto temor a D'us, que certamente nunca faria um ato de desonestidade. Então, por que neste momento a Torá precisou reforçar a sua honestidade?

Explica o Rav Yerucham Leibovitz zt"l (Bielorússia, 1873 - 1936) que a resposta está em um interessante Midrash: "Diz Rabi Akiva: "Ame ao próximo como a você mesmo" (Vayikrá 19:18), esta é uma grande regra da Torá. Ben Azay diz: "Esta é a narração das gerações" (Bereshit 5:1) é uma regra ainda maior. Não diga: "Pelo fato de ter sido desprezado (pelo meu companheiro), desprezarei meu companheiro junto comigo". Se você fez isto, saiba quem você está desprezando: "À imagem de D'us o fez (o ser humano)" (Bereshit 5:1). Mas o que significa este Midrash?

De acordo com o Rav Yerucham, este Midrash traz uma discussão entre Rabi Akiva e Ben Azay, dois grandes sábios da época do Talmud, em relação a como deve ser o nosso relacionamento com o próximo. De acordo com o Rabi Akiva, nosso relacionamento com o próximo é baseado no versículo "Ame ao próximo como a você mesmo". Temos que tomar cuidado com a honra dos outros e nunca fazer ao próximo o que não gostamos que façam conosco. Porém, na prática, caso nosso companheiro nos despreze, também seria permitido desprezá-lo, pois não temos obrigação de amar o próximo mais do que amamos a nós mesmos. Já de acordo com Ben Azay, o comportamento exigido de cada ser humano vem do seguinte versículo "Esta é a narração das gerações do ser humano. No dia em que D'us criou o ser humano, à imagem de D'us o fez"". O final do versículo, "à imagem de D'us o fez", impede a pessoa de dizer "como fui envergonhado pelo meu companheiro, então envergonharei meu companheiro comigo", pois como o ser humano foi criado à imagem e semelhança de D'us, então aquele que despreza seu companheiro está, em última instância, desprezando D'us.

Com esta explicação do Midrash, podemos entender as palavras do versículo que ressaltam a honestidade de Yaacov. Ele tinha muito motivos e justificativas para não continuar a trabalhar para Lavan de maneira honesta. Ele tinha feito um trato com Lavan, com as condições muito claras. Sabendo da má índole de Lavan, Yaacov havia especificado que queria casar-se com a sua filha mais nova, Rachel. Yaacov havia tentado se proteger de todas as formas de uma enganação de Lavan. Porém, após trabalhar sete anos por Rachel, Yaacov foi enganado. A reação normal de uma pessoa enganada é revidar, tentando diminuir seu prejuízo. Por dentro, Yaacov devia estar querendo "dar o troco" em Lavan. Ele poderia facilmente retirar animais do rebanho de Lavan ou ficar descansando ao invés de ir trabalhar. Mas ele conseguiu passar por este teste de honestidade e, apesar de saber que os sete anos adicionais eram injustos, mesmo assim ele continuou fazendo seu trabalho de forma honesta. Ele foi tão íntegro e correto em seu trabalho como pastor dos animais de Lavan que seu comportamento se transformou em Halachá (Lei judaica) em relação à responsabilidade exigida dos "Shomrim" (pessoas que guardam objetos dos outros).

Há um Midrash que ressalta ainda mais a honestidade de Yaacov, demonstrando que ele tinha um comportamento impecável. Normalmente somos rigorosos em relação a objetos de maior valor, mas acabamos sendo descuidados com objetos de pequeno valor. Ninguém roubaria uma caneta Mont Blanc, mas quase ninguém se importa de levar para casa a caneta Bic do escritório ou de fazer cópias de documentos pessoais na impressora do escritório. Isto é ainda mais frequente quando se trata de pessoas próximas. É normal, quando um genro mora com seu sogro, que ele acabe tendo proveitos não permitidos dos bens do seu sogro. Porém, também em relação a isso a Torá atesta a honestidade de Yaacov. Por que Lavan perseguiu Yaacov? Pois desconfiou que ele havia pegado objetos seus de maneira desonesta. Mas após Lavan procurar em todos os utensílios de Yaacov, não encontrou nada. Yaacov então desabafou: "Pois quando você revirou os meus utensílios, o que você encontrou?" (Bereshit 31:37). O Midrash afirma que Lavan não encontrou nos pertences de Yaacov nem mesmo uma agulha sua. Yaacov, em 20 anos de trabalho, foi honesto, não apenas com objetos mais caros, mas também com os objetos mais simples.

A honestidade é um traço de caráter difícil de ser adquirido. O Rav Moshe Chaim Luzzato zt"l, em seu livro Messilat Yesharim (Caminho dos Justos), ressalta o quanto devemos ser extremamente cuidadosos em situações onde é muito fácil encontrar desculpas e justificativas para sermos desonestos. Nosso modelo de verdade e honestidade é Yaacov. Por 20 anos ele viveu na casa de Lavan e diversas vezes foi trapaceado e enganado, e mesmo assim Yaacov manteve-se íntegro e não procurou justificativas para se comportar de maneira desonesta. Nestes 20 anos, nem mesmo uma agulha ele pegou sem autorização.

Ensinam os nossos sábios que todos os dias devemos nos questionar: "Quando meus atos chegarão ao nível dos atos dos meus antepassados, Avraham, Ytzchak e Yaacov?". Precisamos refletir: como reagiríamos caso estivéssemos fazendo negócios com alguém que não age conosco de forma honesta? Como lidaríamos com o fato de saber que estamos sendo enganados? O que faríamos caso esta enganação não fosse algo passageiro, e sim uma trapaça que se estende por muitos anos? Certamente sentiríamos que todas as leis da Torá não se aplicam mais neste caso e que estamos isentos de nossas obrigações e responsabilidades com a outra pessoa. Em alguns casos acharíamos que é até mesmo Mitzvá causar perdas àquele que nos enganou.

Mas não foi assim que Yaacov se comportou. Apesar de todas as trapaças e enganações de Lavan durante 20 anos, Yaacov não mudou absolutamente nada em suas responsabilidades e obrigações. Os maus atos de Lavan não causaram mudanças nos atos de Yaacov. A mesma integridade que ele tinha antes das trapaças, ele manteve depois das trapaças. Com isto, Yaacov estava cumprindo na prática o ensinamento trazido por Ben Azay, de que cada ser humano é criado à imagem e semelhança de D'us. Apesar de Lavan não merecer nenhum tipo de respeito, Yaacov sabia que devia respeitá-lo por sua semelhança com D'us.

Infelizmente todos acabam tendo contato na vida com pessoas desonestas e trapaceiras. Não devemos mudar nossos atos por causa delas nem deixar de ser corretos somente porque há pessoas à nossa volta que não são íntegras. Devemos cuidar das nossas obrigações e responsabilidades, tanto quando se trata de valores altos quanto quando se trata de valores pequenos. Não devemos fazer justiça com as próprias mãos, pois caso nossa escolha seja trapacear o trapaceiro, em última instância estaremos trapaceando D'us, o verdadeiro Dono do julgamento.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 28:10-32:2, Os.11:7-14:9

sábado, 3 de dezembro de 2016

ACREDITANDO EM MILAGRES - PARASHÁ TOLDOT 5777

"Uma pobre senhora, com visível ar de tristeza no rosto, entrou em um armazém. Aproximou-se do proprietário, um homem conhecido pelo seu jeito grosseiro, e pediu-lhe alguns mantimentos. Ela explicou que seu marido estava muito doente e não podia trabalhar, e que tinha sete filhos para alimentar, mas se comprometia a pagar assim que pudesse por todos os produtos. O dono do armazém deu risada dela e pediu que ela se retirasse do seu estabelecimento. Pensando na necessidade da sua família, ela não se importou em se humilhar e implorar mais uma vez. Ele lhe respondeu rispidamente que não vendia nada a crédito em sua loja e, se ela quisesse algo, que arrumasse o dinheiro em outro lugar e voltasse para comprar o que precisava. Em pé no balcão ao lado, um freguês que escutou a conversa se aproximou do dono do armazém e lhe disse:

- Por favor, dê para esta mulher o que ela necessita, eu pago.

Mas o comerciante ainda não estava satisfeito com a humilhação que havia causado à mulher. Ele perguntou se ela tinha a lista de mantimentos que necessitava. A mulher, visivelmente envergonhada, balançou afirmativamente a cabeça. O comerciante então quis fazer uma piada:

- Vamos fazer o seguinte. Não é necessário este senhor pagar nada. Coloque a sua lista na balança e, de acordo com o quanto ela pesar, eu lhe darei em mantimentos.

Por dentro, o dono do armazém ria, pois sabia que o peso da lista nem mexeria a balança. A pobre mulher hesitou por alguns instantes. Com a cabeça curvada, retirou da bolsa um pedaço de papel, escreveu algo e colocou o papel suavemente na balança. Para a admiração dos três, o prato da balança com o papel desceu como se um enorme peso tivesse sido colocado. A mulher começou a colocar mantimentos no outro prato da balança, mas a balança não se equilibrava. Ela continuou colocando mais e mais mantimentos, até que não havia mais nenhum espaço na balança. Somente então a balança se equilibrou. O dono do armazém ficou parado por alguns instantes, olhando para a balança, tentando entender o que havia acontecido. Finalmente, ele tomou coragem, pegou o pedaço de papel da balança e ficou espantado. Não era uma lista de compras, e sim uma súplica daquela pobre mulher, que dizia: "D'us, Você conhece as minhas necessidades. Eu deixo tudo em Suas mãos". A mulher recolheu suas compras no mais completo silêncio, agradeceu e foi embora."

Só D'us sabe o quanto pesa uma Tefilá (reza) vinda do coração. Não existe nada impossível para D'us. Ele pode fazer qualquer milagre, pois pode quebrar as leis da natureza que Ele mesmo criou. Jamais desista. 
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A Parashá desta semana, Toldot (literalmente "Gerações"), começa descrevendo a milagrosa gravidez da nossa matriarca Rivka. Por 20 anos ela não conseguia engravidar, até que Rivka e Ytzchak rezaram muito para D'us e pediram um filho, como está escrito: "E suplicou Ytzchak para D'us, em frente à sua esposa, pois ela era estéril. E D'us aceitou sua súplica, e sua esposa Rivka engravidou" (Bereshit 25:21). De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105) a linguagem da Torá demonstra que, embora ambos tenham rezado pelo nascimento de um filho, apenas a Tefilá (reza) de Ytzchak foi atendida, enquanto a Tefilá de Rivka foi rejeitada. Rashi explica que não se compara a Tefilá de um Tzadik (Justo) filho de um Tzadik, como Ytzchak filho de Avraham, com a Tefilá de um Tzadik filho de um Rashá (malvado), como Rivka filha de Betuel, um homem de péssima índole. Desta gravidez nasceram gêmeos, Yaacov e Essav.

Mas de acordo com o Rav Yohanan Zweig, este ensinamento da Torá desperta um enorme questionamento. Provavelmente Ytzchak e Rivka pediram em suas Tefilót exatamente a mesma coisa, isto é, que pudessem ter um filho. Portanto, por que a Torá ressalta que apenas a Tefilá de Ytzchak foi escutada? Qual é a implicação prática de D'us ter escutado apenas Ytzchak e não Rivka?

Os detalhes da gravidez de Rivka também despertam questionamentos. A Torá nos ensina que Rivka passou por uma gravidez muito conturbada, como está escrito: "E os filhos se agitaram dentro dela" (Bereshit 25:22). Rashi explica que a linguagem "Vaitrotzatzu", que significa "se agitaram", vem da palavra "Ritza", que significa "corrida". Sempre que Rivka passava pelo Centro de Estudos de Torá comandado por Shem e Ever, descendentes de Noach, Yaacov corria para sair da sua barriga, e sempre que ela passava por um centro de idolatrias, Essav corria para sair da sua barriga. Mas sabemos que nos primeiros estágios de formação, o feto não tem nem mesmo os membros formados! O que a Torá quer nos ensinar quando utiliza a linguagem "correr" ao se referir a fetos no útero de sua mãe?

Outro questionamento é o fato que Rivka, incomodada e preocupada com as sensações fisiológicas experimentadas em sua gravidez, foi até o Centro de Torá se aconselhar com Shem, buscando uma resposta de D'us. Porém, o Rav Avraham ben Meir zt"l (Espanha, 1092 - 1167), mais conhecido como Ibn Ezra, explica que antes de buscar aconselhamento Divino, Rivka conversou com outras mulheres para saber se as sensações que ela estava experimentando eram normais em mulheres grávidas. Quando ela foi informada por todas as mulheres com quem conversou que seus sintomas não eram normais, somente então ela procurou o conselho de D'us. Mas que desconforto era este, diferente do que todas as outras mulheres grávidas sentiam? Não é normal a mulher sentir o bebê se mexendo no útero, como Rivka sentiu?

Além disso, não encontramos nesta Parashá nenhuma menção de que D'us abriu o útero de Rivka, como aconteceu com Leá e Rachel, como está escrito: "E D'us viu que Leá era desprezada, então Ele abriu seu útero" (Bereshit 29:31) e "E D'us lembrou-se de Rachel, e D'us a escutou, e Ele abriu seu útero" (Bereshit 30:22). Por que a gravidez de Rivka foi tão diferente de qualquer outra gravidez descrita na Torá? E, finalmente, por que depois desta gravidez Rivka não teve mais nenhum filho?

Explica o Rav Yohanan Zweig que realmente Rivka não teve uma gravidez normal. Citando o Rabeinu Bechaye zt"l (Espanha, 1255 - 1340), ele ensina que o que mais incomodou Rivka foi que a sensação dos bebês se mexendo dentro dela ocorreu desde o início da gravidez. Isto era algo completamente fora do normal, pois no início da gravidez as mulheres não sentem absolutamente nenhum movimento dos bebês dentro delas. Portanto, de acordo com esta explicação, a gravidez de Rivka não envolveu desenvolvimento fetal no útero. Logo após a concepção, D'us fez um enorme milagre e criou dentro de Rivka dois seres humanos já completamente desenvolvidos, com todos os seus órgãos e membros já prontos, mas em tamanho miniatura. Este conceito é reforçado pelas palavras do versículo "E disse D'us para ela: 'Duas nações estão na sua barriga'" (Bereshit 25:23). A palavra utilizada não foi "Rechem", que significa "útero", e sim "Bitná", que literalmente significa "sua barriga". Isto indica que os bebês não necessitaram de um útero para se desenvolver.

O Talmud (Yevamot 64a) afirma que Rivka era incapaz de dar à luz uma criança. Em termos biológicos, não havia nenhuma possibilidade de Rivka ter um bebê. Por isso eles tentaram por 20 anos que Rivka engravidasse, sem nenhum sucesso. Porém, houve uma diferença muito grande entre a Tefilá de Rivka e a Tefilá de Ytzchak. Enquanto Rivka rezou para que se desenvolvessem os processos e componentes biológicos necessários para ela poder ter um filho, Ytzchak rezou apenas para que ela desse à luz uma criança. É por isso que a Torá enfatiza que as Tefilót de Ytzchak foram escutadas, mas não as Tefilót de Rivka, pois na realidade o corpo dela não se desenvolveu, em termos biológicos, para que pudesse ter filhos. Não foi um milagre oculto sob as forças da natureza, foi um milagre aberto. Tecnicamente Rivka permaneceu estéril, mesmo depois de dar à luz. É por isso que depois disso Rivka nunca mais teve filhos.

A Parashá está nos ensinando algo incrível. Precisamos saber que não existe natureza, tudo é a "Mão de D'us". Algumas vezes Ele faz milagres ocultos, encobertos pelas leis da natureza. Porém, quando é Sua vontade, Ele também pode fazer milagres abertos, que quebram as leis da natureza. Não podemos nunca desanimar, em nenhuma situação, mesmo quando tudo parece perdido, pois foi Ele quem criou as leis, e Ele pode quebrá-las quando bem entender. Temos a obrigação de viver de acordo com as leis da natureza, para não nos apoiarmos em milagres. Temos que fazer sempre a nossa parte, para que não seja necessário D'us intervir de uma maneira mais explícita, quebrando as leis da natureza. Porém, temos que saber que nós estamos limitados pelas leis da natureza, mas não D'us. E Ele justamente nos deu a força da Tefilá para nos conectarmos diretamente a Ele. D'us é Misericordioso, Ele diariamente aguarda nossos pedidos e escuta nossas Tefilót. A natureza é apenas uma capa encobrindo a Mão de D'us. Na verdade, tudo o que ocorre é um grande milagre. Por isso, nunca desista, sempre há esperança.
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 25:19-28:9, Ml. 1:1-2:7