sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

VERDADEIRO VALOR DAS COISAS - PARASHÁ PEKUDEI 5774

O rei de um importante reinado tinha um fiel ajudante muito dedicado. Todas as manhãs ele ia até o rio, enchia dois baldes de água fresca, prendia um balde em cada ponta de um bastão de madeira, apoiava o bastão sobre seus ombros e caminhava de volta ao palácio.

Porém, os baldes que o ajudante do rei utilizava não eram iguais. Um deles era um balde de ouro, novo e bonito, enquanto o outro era um balde de plástico, simples. O balde de plástico já estava velho e, por causa de tanto uso, já apresentava alguns pequenos furos. Quando o ajudante do rei chegava de volta ao palácio, o balde de plástico já tinha esvaziado um pouco, pois a água ia gotejando pelo caminho, enquanto o balde de ouro ainda continuava completamente cheio. Com o tempo, o balde de ouro se tornou orgulhoso e arrogante, e começou a achar que era melhor que os outros por causa de sua bela aparência e seu alto valor. Já o balde de plástico se sentia frustrado e triste, pois fazia de tudo para que a água não escapasse, mas não conseguia. Certo dia, não aguentando mais tanta vergonha, o balde de plástico falou para o ajudante do rei:

- Por favor, termine com meu sofrimento. Eu sou um inútil. Você me enche com água fresca, mas quando chegamos ao palácio, parte já se perdeu. Nem para isso eu sirvo. Por que você não me joga fora?

O ajudante do rei não respondeu nada, mas não deixou de reparar no sorrisinho do balde de ouro, o ar de superioridade. No dia seguinte, como sempre fazia, foi até o rio, encheu os dois baldes de água e começou a voltar ao palácio. Então, com carinho, falou para o balde de plástico:

- Querido balde, olhe para baixo. Você percebeu que do seu lado há uma trilha de lindas flores e um lindo gramado verde? Todos os dias quando vou ao rio eu jogo sementes de flores pelo caminho. Na volta, ao gotejar água, você me ajuda a regar o solo, fazendo as sementes germinarem. Quando as flores desabrocham, eu as colho e coloco na mesa do rei para enfeitá-la. Você percebe o quanto você é especial?

- Mas do outro lado o que você vê? Apenas terra seca, sem vida – continuou o ajudante do rei – Isto acontece porque o balde de ouro não compartilha a água que traz dentro dele. E ele é tão orgulhoso, tão focado apenas em si mesmo, que não percebe que do seu lado há lindas flores e vida, enquanto do lado dele há apenas terra seca.


Depois de anos de tristeza, pela primeira vez o balde de plástico abriu um sorriso. Ele havia percebido seu verdadeiro valor. Ele não era feito de ouro, não era tão bonito como o outro balde, mas contribuía para embelezar a casa do rei. Foi a vez do balde de ouro, com toda a sua beleza e esplendor, sentir uma enorme vergonha.

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A Parashá desta semana, Pekudei, começa com a descrição da prestação de contas das doações feitas pelo povo judeu para a construção do Mishkan (Templo Móvel), como está escrito: “E estas são as contas do Mishkan, o Mishkan do Testemunho, que foi contado sob o comando de Moshé. O serviço dos Leviim estava sob a autoridade de Itamar, filho de Aharon HaCohen. Betzalel, filho de Uri, filho de Chur, da tribo de Yehudá, fez tudo o que D’us comandou a Moshé” (Shemot 38:21,22).

Mas se prestarmos atenção nestes versículos, algumas das informações parecem ser desnecessárias ou estar fora de contexto. Por exemplo, se a Parashá estava falando sobre a contabilidade das doações, por que foi necessário acrescentar que Itamar era o responsável pelo serviço dos Leviim? Além disso, a Torá já havia ensinado diversas vezes que Betzalel era o responsável pela construção do Mishkan, então por que a necessidade de repetir novamente?

Se pararmos para refletir sobre o Mishkan, perceberemos que ocorreu algo interessante durante a história. Alguns anos após o povo judeu ter entrado em Israel, o Mishkan foi definitivamente substituído pelo Beit Hamikdash (Templo Sagrado) de Jerusalém. Mas houve uma grande diferença entre o Mishkan e os dois Templos. Enquanto o Primeiro e o Segundo Templos foram capturados por outros povos, profanados e finalmente destruídos, o Mishkan nunca foi capturado, profanado nem destruído. Por que?

Explica o Rav Ovadia Sforno (Itália, 1475-1550), comentarista da Torá, que estas partes aparentemente desnecessárias dos versículos iniciais da Parashá são, na verdade, informações fundamentais que nos ajudam a entender a enorme diferença espiritual que havia entre o Mishkan e os dois Templos. Os versículos descrevem os motivos pelos quais o Mishkan tinha um nível espiritual tão elevado. As palavras “Mishkan do Testemunho” se referem à presença das Tábuas sagradas, nas quais D’us escreveu pessoalmente os 10 Mandamentos e entregou-as a Moshé no Monte Sinai. As palavras “sob o comando de Moshé” se referem ao fato de Moshé ter participado pessoalmente da montagem do Mishkan, fazendo com que o Mishkan absorvesse parte da sua própria majestade. Os versículos ainda ressaltam que os serviços do Mishkan tinham a participação de Itamar, filho de Aharon, um homem de elevado nível espiritual, que contribuiu para que o Mishkan alcançasse um grande nível de santidade. E finalmente a Torá ressalta que os trabalhos foram pessoalmente supervisionados por Betzalel, um homem muito conectado com a espiritualidade, que recebeu do seu avô, Chur, a característica de dedicar a vida para D’us.

A construção dos dois Templos Sagrados, por outro lado, não envolveu tanta santidade quanto no Mishkan. Por exemplo, apesar de o Primeiro Templo ter sido construído por Shlomo Hamelech (Rei Salomão), um homem muito reto e elevado, os trabalhadores foram homens de outros povos que moravam na cidade de Tsur, pessoas não comprometidas com a espiritualidade. E por isso o Templo se deteriorava e exigia uma manutenção constante, diferente do Mishkan, que não se deteriorava. Além disso, por causa do seu nível espiritual mais baixo, ele foi finalmente capturado pelos nossos inimigos e destruído. O Segundo Templo tinha um nível de santidade ainda mais baixo, pois as Tábuas que continham os 10 Mandamentos já não estavam mais presentes e sua construção foi autorizada por Koresh (Ciro), o Rei da Pérsia. Por isso, o Segundo Templo também caiu nas mãos dos nossos inimigos, foi profanado e finalmente destruído.

O Sforno aponta outra diferença interessante entre o Mishkan e os dois Templos. Na continuação da Parashá, a Torá apresenta o total de materiais que foram doados para a construção do Mishkan. A quantidade é muito menor do que a quantidade de materiais nobres que foram utilizados nos dois Templos. Isto quer dizer que os dois Templos eram construções muito mais bonitas, caras e esplendorosas do que o Mishkan. Mas apesar disso, foi do “humilde” Mishkan que a Presença Divina nunca se afastou.

Da justaposição destas duas características, isto é, o nível espiritual das pessoas envolvidas na construção e a quantidade de materiais nobres utilizados, o Sforno chega a uma incrível conclusão: a santidade de uma construção não é definida pelo valor de seus materiais nem por sua beleza, mas pelo nível espiritual das pessoas envolvidas em sua construção. Os Templos eram certamente mais imponentes e impressionantes, mas apesar disso o valor espiritual do Mishkan era muito maior, por causa da pureza e espiritualidade daqueles que cuidaram da sua construção.

Nos ensina o Rav Yehonasan Gefen que desta explicação do Sforno aprendemos algo mais abrangente para nossas vidas. A perspectiva da Torá sobre quanto vale um objeto físico ou uma construção é completamente diferente da visão não judaica. Enquanto a visão não judaica define o valor das coisas através da beleza externa e do custo dos materiais utilizados, a Torá dá pouca importância para as qualidades externas, uma vez que a espiritualidade interna que foi investida é o que define o verdadeiro valor das coisas. Isto nos ensina que um ato pequeno, mas feito com humildade e intenções corretas, é muito maior aos olhos de D’us do que grandes atos feitos com orgulho e com intenção de se autopromover. Às vezes nos sentimos menores por não podermos contribuir tanto quanto grandes filantropos, mas a verdade é que se fizermos a nossa parte, de acordo com as nossas possibilidades e com as intenções puras, nossos atos serão mais queridos para D’us do que a doação de enormes quantias acompanhada de intenções não tão puras.

Outro ensinamento importante que fica é o quanto é uma grande tolice dedicar a vida para acumular bens materiais. O verdadeiro valor de uma pessoa não é o que ele tem, e sim o que ele é. A Civilização Ocidental nos ensina que o valor de uma pessoa é medido pelo tamanho do seu apartamento, pela quantidade de carros na sua garagem ou pelo seu cargo na empresa, pois o valor das coisas é função das aparências superficiais ou do valor monetário. É por isso que tantas pessoas entram em depressão quando se aposentam ou perdem muito dinheiro, pois sentem que a parte mais importante delas se foi. Mas de acordo com o judaísmo, o valor verdadeiro de uma pessoa é medido pelos seus traços de caráter, pela forma como ela se relaciona com as outras pessoas e pela pureza com que ela faz seus pequenos atos cotidianos.

Por isso, ao invés de nos sentirmos pequenos, devemos saber o quanto nos tornamos grandes aos olhos de D’us quando fazemos a nossa parte na construção do mundo, com muito esforço e, acima de tudo, com muita humildade.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 38:21-40:38, I Re. 7:51-8:21
 

 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

DANDO UMA FORCINHA AO SHABAT - PARASHÁ VAYAKEL 5774

Certa vez, na noite de Shabat, apareceu na sinagoga onde o Rav Twersky rezava um judeu que nunca havia frequentado o lugar. Ele parecia um pouco perdido e, apesar do Shabat já ter começado, ainda carregava sua maleta de trabalho e estava sem Kipá. O Rav Twersky imediatamente levantou-se e foi ajudá-lo, indicando um local para ele guardar a maleta. Ele também ofereceu ao homem uma Kipá e mostrou-lhe um lugar ao seu lado onde ele poderia sentar-se.

Durante toda a reza, o Rav Twersky ajudou o homem com o livro de rezas, já que ele demonstrava não saber nem mesmo de que lado abrir o Sidur. Após as rezas, o Rav Twersky fez questão de convidá-lo para jantar na sua casa e, pela primeira vez na vida, experimentar o verdadeiro ambiente do Shabat. O homem, após alguma insistência, aceitou o convite. Quando ele foi pegar sua maleta, o Rav Twersky pediu para que ele deixasse-a na sinagoga, pois não era permitido carregá-la durante Shabat. O homem achou estranho e olhou para o Rav Twersky como se ele fosse um extraterrestre, mas como o rabino havia sido tão gentil, não quis ser mal educado e concordou em deixar a maleta na sinagoga.

Durante o caminho eles foram conversando. O Rav Twersky, interessado em saber um pouco mais sobre aquele homem, começou a perguntar sobre sua vida, seus interesses e seu trabalho. O homem, ao invés de responder, começou a procurar nervosamente algo em seus bolsos. Lembrou-se então que o que ele estava procurando estava na maleta que havia ficado na sinagoga. O Rav Twerky perguntou se poderia ajudar, o homem respondeu:

- Que pena. Queria te entregar meu cartão de visitas. Mas eu acabei deixando todos na minha maleta, que ficou na sinagoga.

Depois do Shabat, o Rav Twersky refletiu sobre o ocorrido e chegou a uma incrível conclusão: algumas vezes a vida material nos faz pensar que somos apenas o que está escrito no nosso cartão de visitas. Deixamos de ser humanos e passamos a ser apenas engenheiros, médicos ou advogados. Por isso o Shabat é tão especial. É o dia de esvaziarmos nossos bolsos, de esquecermos os nossos cartões de visitas e descobrirmos quem nós somos e não o que nós fazemos”
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A Parashá desta semana, Vayakel, que significa literalmente “e reuniu”, começa com Moshé reunindo todo o povo para nos ensinar sobre uma importante Mitzvá, como está escrito: “E reuniu Moshé toda a assembleia dos Filhos de Israel e disse para eles: ‘Estas são as coisas que D’us ordenou, para fazê-las. Em seis dias o trabalho deve ser feito, e o sétimo dia será sagrado para vocês, um dia de descanso completo para D’us’” (Shemot 35:1). O Talmud (Shabat 97b) nos ensina que Moshé estava transmitindo ao povo judeu as leis do Shabat, incluindo as 39 categorias de “Melachót” (atividades construtivas) que são proibidas. Depois disso a Torá volta a falar sobre a construção do Mishkan (Templo Móvel). Por que estes dois assuntos são escritos juntos? Para nos ensinar a enorme santidade do Shabat. Apesar de o Mishkan ser o lugar mais sagrado do mundo, a Morada de D’us, todos os trabalhos de construção paravam durante o Shabat.

Mas estas palavras de Moshé sobre o Shabat despertam alguns questionamentos. Em primeiro lugar, o Shabat é um dia no qual diminuímos nossas atividades, pois deixamos de fazer as Melachót proibidas. Então por que a linguagem “para fazê-las”, como se no Shabat tivéssemos que ativamente fazer algo, e não apenas nos abster das atividades proibidas? Além disso, por que justamente nesta Mitzvá foi utilizada a linguagem “Vayakel”, que vem da palavra “Kahal” (comunidade), indicando que era importante que a Mitzvá de Shabat, diferente das outras Mitzvót, fosse transmitida ao povo como uma comunidade e não como indivíduos? E finalmente, a Parashá da semana passada (Ki Tissá) falou sobre o terrível pecado do Bezerro de Ouro, enquanto a Parashá desta semana começou falando sobre a Mitzvá de guardar o Shabat. Qual a conexão entre estes dois assuntos?

Responde o Rav Yohanan Zweig que espiritualmente cada Mitzvá que nós fazemos afeta positivamente o mundo inteiro. Porém, em relação ao mundo material, normalmente o cumprimento de uma Mitzvá tem um impacto direto apenas sobre aquele quem a cumpriu. Isto quer dizer que é pequena a influência que vem do cumprimento das Mitzvót de um indivíduo em relação à comunidade. Por exemplo, quando uma pessoa decide comer Kasher, o seu ato tem pouca influência sobre a comunidade como um todo. O contrário também é válido, isto é, quando a comunidade cumpre as leis de Kashrut, isto tem pouca influência sobre o cumprimento desta Mitzvá por cada um dos indivíduos. Mas há uma exceção: a Mitzvá de Shabat.

Uma pessoa que cumpre o Shabat e está cercada de pessoas que não cumprem tem uma experiência completamente diferente do que aquele que cumpre o Shabat cercado por uma comunidade observante. Quem já passou um Shabat em um ambiente de pessoas que não estão cumprindo sabe o quanto é difícil se concentrar e sentir a santidade do dia. E, ao contrário, quem passa o Shabat em companhia de pessoas comprometidas se sente imerso no clima de Shabat e consegue aproveitar melhor a oportunidade espiritual.

Isto quer dizer que qualquer pessoa que cumpre o Shabat está contribuindo para criar um ambiente propício e melhora, portanto, a experiência do Shabat de cada membro da comunidade. O contrário também é válido, isto é, cada pessoa que descumpre o Shabat causa um impacto negativo sobre toda a comunidade. Isto explica por que o versículo utiliza, em relação ao Shabat, uma linguagem ativa, “para fazê-las”, pois parte da obrigação daqueles que cumprem o Shabat é criar uma atmosfera que influencie positivamente a nós mesmos e aos outros.

O ser humano tem uma grande dificuldade de se conectar com coisas que não sejam concretas e palpáveis. Não é muito simples se envolver com conceitos que não podem ser vistos nem tocados. Por isso, o ser humano precisa de símbolos aos quais ele possa conectar-se e com os quais ele se identifica. Por exemplo, independente de quanto um judeu esteja afastado do judaísmo, quando ele acende as velas de Chánuka ou senta-se no Seder de Pessach, algo automaticamente o conecta com a sua espiritualidade, pois estes “símbolos” físicos fazem a pessoa sentir a conexão.


Foi exatamente esta dificuldade de se conectar através de coisas intangíveis que levou o povo judeu ao pecado do Bezerro de Ouro. Enquanto Moshé estava com o povo judeu, eles se sentiam conectados a D’us através dele. Mas quando ele demorou a descer do Monte Sinai, os judeus temeram que ele houvesse morrido e se desesperaram, achando que haviam se desconectado de D’us. Por isso os judeus buscaram um substituto para Moshé, algo que os fizessem sentir-se novamente conectados com D’us. Para grande parte do povo, o Bezerro de Ouro representava apenas um substituto, concreto e tangível, de Moshé.

Mas não somente símbolos totalmente palpáveis nos ajudam a criar uma conexão espiritual. Por exemplo, outro “símbolo” que é essencial para que a pessoa possa sentir sua conexão espiritual é o ambiente onde ela vive. D’us, logo após o pecado do Bezerro de ouro, pediu para Moshé ensinar aos judeus como eles poderiam criar um símbolo permitido, através do qual eles se sentiriam mais próximos Dele. O Shabat é justamente a Mitzvá que atesta que D’us é o Criador do Universo e que Ele está constantemente envolvido em manter o mundo. Por isso, quando participamos na criação de uma atmosfera de Shabat, nos sentimos mais conectados às outras pessoas que também cumprem o Shabat e, em última instância, à D’us.

Foi por isso que Moshé reuniu todo o povo, depois do pecado do Bezerro de Ouro, para ensinar as leis do Shabat, pois ele não queria ensinar as leis aos judeus como indivíduos, mas como uma comunidade, pois é desta maneira que seremos influenciados e influenciaremos os outros de forma positiva. Quando formamos uma comunidade, isto cria algo mais tangível, para nós e todos os que estão em volta. Além disso, muitas das leis do Shabat são justamente voltadas ao estabelecimento da atmosfera necessária para criar o ambiente de Shabat. O acendimento das velas, as roupas especiais em honra do Shabat e as comidas deliciosas são apenas alguns exemplos.

Moshé nos ensinou que o Shabat é uma oportunidade de ouro, uma forma de construir uma relação concreta com D’us. Cumprir o Shabat é, acima de tudo, uma contribuição que podemos dar para toda a comunidade, uma forma de participar na criação de uma atmosfera propícia ao crescimento espiritual de todo o povo judeu.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Ex. 35:1-38:20, 1 Re 7:13-26, 40-50, 2

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

CONTINUIDADE DO POVO JUDEU - PARASHÁ KI TISSÁ 5774


A CONTINUIDADE DO POVO JUDEU - PARASHÁ KI TISSÁ 5774 (14 de fevereiro de 2014)

“Moshe Chaim Ginsberg era um judeu ortodoxo que resolveu sair da sua pequena comunidade na Rússia para tentar a sorte nos Estados Unidos. Depois de 5 anos eles voltou para casa, já sem barba, sem Kipá e sem o Tsitsit. Seu pai olhou para ele, assustado, e perguntou:

- Filho, o que aconteceu? Onde está sua barba, sua kipá e seu Tsitsit? E que roupas são estas?

- Pai, nos Estados Unidos não é aceitável que um judeu seja diferente dos outros. A roupa que eu estou usando é um terno fino, pois agora eu sou um importante homem de negócios. Deixei minhas roupas tradicionais de lado, pois elas chamavam muito a atenção das pessoas.

- Mas filho, que nome é este no seu crachá? “John”? Não foi este o nome que eu e sua mãe te demos!

- Eu sei, pai, mas eu precisava de um nome mais americano para me dar bem nos EUA. Imagine que vergonha se as pessoas soubessem que eu me chamava “Moshe Chaim”...

- Espera, filho. Pelo menos você continua comendo comida Kasher?

- Pai, no local onde eu moro a comida Kasher não é facilmente acessível. E eu também não vou deixar de marcar almoços de negócio apenas por causa da comida Kasher...

- Filho, e o Shabat? Não vai me dizer que você não está guardando mais o Shabat...

- Não, pai, eu não estou mais guardando o Shabat – respondeu o filho – pois no Shabat eu tenho muito trabalho para fazer.

O pai, respirando fundo, juntou todas as suas forças e perguntou:

- Filho, ao menos você continua circuncidado???”

Daríamos risada da piada se infelizmente esta não fosse a realidade de muitos judeus ao redor do mundo. Estamos diante da difícil luta do povo judeu para se manter vivo e vencer os atuais movimentos de assimilação. A contribuição de cada um de nós pode fazer muita diferença.


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A Parashá desta semana, Ki Tissá, traz vários assuntos muito diferentes, e cada um deles levanta diversos questionamentos. A Parashá começa com a contagem do povo. Por ser proibido contar os judeus de forma direta, a contagem era feita através da doação de uma moeda de meio shekel por pessoa, e a contagem das moedas indicava quantos judeus havia no deserto. Mas a linguagem utilizada para a contagem, “Ki Tissá”, significa literalmente “quando você levantar”. Qual a relação entre a contagem do povo e o ato de levantar?

Depois disso a Parashá descreve a construção do “Kiór” (Lavatório), um utensílio feito de bronze que ficava no pátio do Mishkan (Templo Móvel), em cujo interior era armazenada água. Através de algumas torneiras que ficavam na parte inferior do Kiór, os Cohanim (sacerdotes) lavavam suas mãos e pés antes de iniciar os serviços do Mishkan. Mas por que a Torá deixou para descrever o Kiór apenas nesta Parashá, se todos os outros utensílios sagrados do Mishkan já haviam sido descritos nas Parashiót anteriores?

A Parashá também descreve os ingredientes para fabricar o óleo utilizado na unção dos Cohanim, do Mishkan e dos seus utensílios. Depois disso estão listadas as especiarias aromáticas utilizadas para fabricar o “Ketoret”, o incenso que era queimado duas vezes por dia no Altar de Ouro do Mishkan. Mas se a própria construção do Altar de Ouro foi descrita na Parashá da semana passada, por que a Torá esperou até esta Parashá para descrever os componentes do Ketoret?

Outro questionamento surge quando observamos as especiarias que compunham o Ketoret. Uma delas era chamada “Chelbená” (Gálbano). Segundo o Talmud (Kritut 6b), esta especiaria tinha um cheiro muito ruim. Deste ingrediente malcheiroso do Ketoret, o Talmud aprende que as comunidades estão obrigadas a incluir os pecadores em suas rezas. Qual o ensinamento que podemos aprender para nossas vidas desta afirmação do Talmud? E qual a ligação entre todos estes assuntos trazidos pela Parashá, que parecem tão desconexos?

Responde o Rav Yochanan Zweig que este censo, a primeira contagem do povo judeu desde a saída do Egito, indica que havíamos atingido o status de uma comunidade. Ser contados como uma comunidade significa que fomos elevados, de indivíduos que necessitam da infraestrutura e do apoio dos outros, a uma unidade autossuficiente com a habilidade de manter sua própria identidade e garantir sua sobrevivência e sua continuidade. É por isso a contagem começa com as palavras “quando você levantar”, pois representou uma elevação e mudança de status do povo.

Os utensílios utilizados no Mishkan eram feitos com os materiais doados pelo povo inteiro, inclusive os outros utensílios feitos de cobre. Mas o Kiór era uma exceção, pois foi inteiramente feito com os espelhos de cobre polido doados exclusivamente pelas mulheres. Porém, o que havia de tão especial para que simples espelhos, usados normalmente para as mulheres se embelezarem, fossem utilizados para fabricar um dos utensílios do Mishkan? A pergunta fica ainda mais forte pelo fato de Moshé não ter aceitado inicialmente esta doação, pois considerava que os espelhos eram objetos utilizados para criar desejo físico e, portanto, inapropriados para serem utilizados em utensílios sagrados. Os espelhos somente foram aceitos quando D’us revelou a Moshé que eles eram sagrados, pois representavam a luta pela sobrevivência do povo judeu. Qual a relação entre os espelhos e a continuidade do povo?

Quando os egípcios infligiam duros sofrimentos aos judeus, durante os terríveis anos de escravidão, os homens chegavam tão cansados em casa que não tinham mais forças nem mesmo para o relacionamento íntimo com suas esposas. Isto colocava em risco as futuras descendências dos judeus. Para garantir a continuidade do povo, as mulheres usavam os espelhos para ficarem mais bonitas e desejadas pelos seus maridos. Enquanto os outros utensílios foram doados por indivíduos, os espelhos foram doados com um senso de comunidade. O Kiór, portanto, representa a importância de preservar a continuidade do povo judeu, e simboliza os esforços requeridos para possibilitar a formação da vida comunitária judaica.

Ao incluir nas especiarias do Ketoret um ingrediente com cheiro ruim, a Torá está nos definindo os requerimentos para uma comunidade. Um grupo de judeus somente pode ser considerado uma comunidade se não há nenhuma parte do povo que está sendo excluída. Como uma comunidade, nós temos a responsabilidade de suprir as necessidades e garantir o bem estar de cada indivíduo. Um grupo somente se torna uma comunidade quando deixamos de ser egoístas, quando passamos a pensar no coletivo com a mesma importância que pensamos no particular.

Enquanto o Kiór representa os aspectos sociológicos de uma comunidade, como a continuidade e a autopreservação, o Ketoret reflete a maneira como os indivíduos de uma comunidade devem se relacionar entre si. É por isso que o Kiór e o Ketoret foram “guardados” para serem escritos na Parashá Ki Tissá, a Parashá na qual o povo judeu se transformou em uma comunidade.

O povo judeu continua, passados mais de três mil anos da construção do Mishkan, em sua luta pela sobrevivência. Passamos atualmente por um momento difícil, no qual nossos jovens cada vez mais se assimilam e abandonam nossas raízes. É obrigação de cada judeu, como parte da comunidade, se preocupar com cada um de seus irmãos em particular, e com a continuidade do povo judeu como um todo. É obrigação de cada um de nós garantir que todos os nossos irmãos possam ter uma vida digna. Somos o povo do Chessed (bondade), o povo da perseverança, o povo que já passou por terríveis perseguições e tentativas de extermínio, mas que sempre soube levantar a cabeça e seguir em frente.

Nossos antepassados fizeram a parte deles, lutaram para que o judaísmo chegasse até nós e venceram. Agora é a hora de cada um de nós fazer a sua parte, para assegurar que o povo judeu, uma verdadeira comunidade, nunca tenha fim.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

Ex. 30:11-34:35, 1Re. 18:1-39




Ex. 30:11-34:35, 1Re. 18:1-39, 1 Co. 8: 4-13 (Shabat Pará)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

LÍNGUA BARULHENTA OU SILENCIOSA - PARASHÁ TETSAVÊ 5774

“Shmuel Hanagid, poeta judeu espanhol que viveu no século 11, era o primeiro ministro de Granada. Certa vez ele foi duramente insultado, na presença do rei, por alguém que o odiava. O rei, completamente furioso com o atrevimento daquele homem que ousou ofender e difamar o primeiro ministro diante do próprio rei, ordenou que Shmuel Hanaguid castigasse duramente o ofensor cortando fora sua língua.

Porém, ao contrário das ordens do rei, não apenas Shmuel Hanaguid não cortou a língua daquele que o ofendeu, mas também passou a tratá-lo com a máxima bondade. Quando o rei escutou que suas ordens não haviam sido cumpridas, e ainda descobriu que Shmuel Hanaguid tratava bem seu desafeto, então ele voltou sua fúria contra seu primeiro ministro, acusando-o de desacato à autoridade e exigindo uma explicação. Shmuel Hanaguid, sem perder a calma, deu uma bela resposta ao rei:

- Não entendo sua raiva, Majestade. Você me acusa de não ter cumprido sua ordem, mas eu sim cumpri. Você me pediu para que eu cortasse a língua ruim do meu inimigo, e foi isso o que eu fiz. A única diferença foi que eu tirei a língua ruim dele e coloquei no lugar uma língua gentil”.

Às vezes passamos por situações de stress com outras pessoas, nas quais nosso sangue ferve, como quando somos ofendidos. Frequentemente caímos no erro de tentar combater fogo com fogo, e tudo o que conseguimos é aumentar ainda mais o problema. A maneira mais simples de apagar fogo é utilizando água fria. Portanto, ao invés de gritos e retaliações violentas, a forma verdadeira de esfriar uma briga é utilizar palavras tranquilas e suaves, falando em um tom baixo, com a cabeça fria e levando a honra do próximo em consideração.


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Na Parashá desta semana, Tetsavê, a Torá continua descrevendo os detalhes do Mishkan (Templo Móvel). O foco nesta Parashá são as oito roupas utilizadas pelo Cohen Gadol (Sumo Sacerdote) durante os serviços do Mishkan. No final da Parashá a Torá também começa a nos ensinar algumas das leis sobre os Korbanót (sacrifícios) que eram oferecidos no Mishkan.

Além do aspecto físico das roupas do Cohen Gadol, que tinham um grande esplendor e eram feitas de materiais nobres e caros, o Talmud (Arachim 16a) ressalta que as roupas tinham outra característica interessante. O Talmud questiona o porquê da proximidade entre a descrição das roupas do Cohen Gadol e a descrição dos Korbanót, e responde que da mesma maneira que os Korbanót traziam expiação aos pecados cometidos pelo povo, assim também as roupas do Cohen Gadol traziam expiação. Cada uma das roupas tinha o poder de trazer expiação por algum erro específico que o povo judeu havia cometido. A “Ktonet” (Túnica) trazia expiação pelos assassinatos, a “Michnassaim” (Calça) trazia expiação pelas relações incestuosas, o “Mitsnefet” (Turbante) trazia expiação pela arrogância, o “Avnet” (Cinto) trazia expiação pelos pensamentos pecaminosos do coração, o “Choshen” (Peitoral) trazia expiação pelos erros judiciais, o “Efod” (tipo de um avental) trazia expiação pela idolatria, o “Tzitz” (Placa de ouro) trazia expiação pelos atos descarados, e finalmente o “Meil” (Manto) trazia expiação pelo Lashon Hará (maledicência).

O Meil era um longo manto em cuja borda eram costurados pequenos sinos. Quando o Cohen Gadol se movimentava, os sinos faziam barulho. O Talmud explica que justamente esta roupa, que fazia barulho, servia para expiar a transgressão que também faz barulho, o Lashon Hará. Mas o Talmud traz uma aparente contradição ao afirmar que era o “Ketoret”, o incenso que era oferecido no Mishkan, que trazia expiação para a transgressão de Lashon Hará. Se o Talmud associa o barulho do Meil com o barulho do Lashon Hará, como pode ser que o Ketoret, algo silencioso, também pode estar associado ao Lashon Hará? E afinal, era o Meil ou era o Ketoret que fazia a expiação do Lashon Hará?

Responde o Talmud que existem dois tipos de Lashon Hará: o que é feito com barulho e o que é feito de forma silenciosa. O Meil, que faz barulho, traz expiação para o Lashon Hará que é feito com barulho, isto é, quando aquele que está difamando seu companheiro o faz sem esconder seus sentimentos, dizendo as coisas de forma tão aberta que até mesmo aquele que está sendo difamado escuta. Já o Ketoret, que é silencioso, traz expiação para o Lashon Hará que é feito de maneira silenciosa, isto é, quando o difamador esconde da “vítima” seus sentimentos verdadeiros, e ela não tem nem mesmo a consciência de que sua imagem está sendo impiedosamente manchada.

Porém, por que era necessário que duas partes diferentes do Mishkan viessem expiar a mesma transgressão? À primeira vista, o Lashon Hará com barulho, que causa uma vergonha direta para aquele que é abertamente difamado, é muito mais grave. Se o Meil era suficiente para expiar o Lashon Hará com barulho, por que não era suficiente também para expiar o Lashon Hará silencioso, aparentemente menos grave e menos danoso?

Explica o Rav Yehonatan Guefen que para responder esta pergunta antes precisamos entender de uma maneira mais profunda os verdadeiros efeitos dos dois tipos de Lashon Hará. O Lashon Hará com barulho causa um grande dano, pois quando a pessoa difamada escuta as coisas ruins que estão sendo abertamente ditas sobre ela, sente uma grande dor. Neste sentido, o Lashon Hará barulhento é muito mais grave e danoso do que o silencioso. Porém, por outro lado, como o Lashon Hará é feito de forma escancarada, a vítima tem mais chances de, ao escutar o que está sendo dito sobre ela, se defender e tomar uma atitude para interromper o Lashon Hará. Já o Lashon Hará silencioso tem um lado muito mais maligno do que o Lashon Hará barulhento. O Lashon Hará silencioso é caracterizado pelo difamador se comportar com “duas caras”, isto é, na frente da vítima ele é amigável e está sempre dando sorrisos e abraços, mas por trás dela o difamador fala, de forma impiedosa, coisas terríveis. Pelo fato da vítima não estar consciente de estar sendo difamada, ela não faz nenhum esforço para se proteger, e os ataques podem seguir continuamente.

Com este esclarecimento é possível entender a necessidade de duas partes independentes do Mishkan para expiar a transgressão de Lashon Hará, pois cada uma das duas formas de Lashon Hará, a barulhenta e a silenciosa, tem algo que a torna mais prejudicial, e neste ponto cada uma delas é mais grave do que a outra. Por isso, apesar do Meil conseguir expiar o Lashon Hará barulhento, ele não consegue expiar o Lashon Hará silencioso. O Ketoret, ao contrário, tem força para expiar o Lahon Hará silencioso, mas não tem força para expiar o Lashon Hará barulhento.

O que é particularmente surpreendente nesta explicação é que o Lashon Hará feito de forma silenciosa, que parece inofensivo, pode ser muitas vezes até mais grave e destrutivo do que o Lashon Hará feito de maneira escancarada. Por isso, temos que tomar cuidado com nossas palavras, para que não estejamos, mesmo sem intenção, causando graves danos às outras pessoas, muitas vezes irreparáveis.

Acontecem várias ocasiões em nossas vidas nas quais desenvolvemos um desafeto por alguém. Mas é óbvio que esta aversão que sentimos pelo outro não justifica de forma nenhuma o Lashon Hará, principalmente quando feito com “duas caras”. A Torá nos ensina que os irmãos de Yossef sentiram tanta inveja dele a ponto de odiá-lo, como está escrito “Eles não conseguiam falar com ele (Yossef) de forma pacífica” (Bereshit 37:4). A Torá não está criticando os irmãos de Yossef, ao contrário, está louvando a atitude deles, que não se comportavam de uma maneira falsa. Eles não davam sorrisos e abraços quando estavam com Yossef e o denegriam quando ele não estava presente. Por mais que havia um grave erro de guardar ódio no coração, os irmãos de Yossef se cuidavam para não se comportarem de maneira hipócrita.

O Lashon Hará e a hipocrisia servem somente para aumentar as discussões e a inimizade entre as pessoas. O caminho ideal para resolver problemas deve ser sempre através de uma conversa franca e transparente, sem rispidez nem exaltação. O tom de voz deve ser mantido sempre baixo, e a conversa calma e ponderada. Somente através de um comportamento honesto e sincero poderemos realmente melhorar nosso relacionamento com todos os que estão à nossa volta, sem correr o risco de nos tornarmos hipócritas ou de causar danos aos outros.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
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Parasha   Ex. 27:20-30:10
Haftorah Ez.43:10-27