sábado, 23 de fevereiro de 2013

SENTINDO O AMOR - PARASHÁ TETZAVÊ E PURIM 5773


"Certa vez Napoleão Bonaparte entrou correndo na casa de um judeu russo pedindo ajuda. Soldados do exército russo o perseguiam para matá-lo e Napoleão estava tremendo, apavorado. O judeu sentiu misericórdia e decidiu ajudá-lo. Escondeu-o sob um colchão e, quando os russos entraram, deitou-se nele para disfarçar. Os soldados revistaram toda a casa e, como não encontraram nada, foram embora.

Napoleão suspirou aliviado. Sentiu uma alegria imensa por ter escapado com vida. Tinha agora uma imensa dívida de gratidão com aquele judeu que havia se arriscado para escondê-lo. Entregou-lhe um bilhete, que continha sua assinatura e o selo real, e disse ao judeu:

- Amigo, serei eternamente grato a você. Apresente este bilhete aos oficiais do meu palácio e você terá acesso livre. Não hesite em me procurar caso precise de algo.

Anos mais tarde, aquele judeu estava em Paris e resolveu entrar no palácio de Napoleão. Mostrou o bilhete aos oficiais e foi imediatamente levado à presença do imperador, que ficou muito feliz em revê-lo. Napoleão relembrou ao judeu que ele poderia pedir o que quisesse. O judeu, um pouco sem jeito, disse:

- Imperador, eu não preciso de nada, mas eu tenho um pedido. Na verdade, uma curiosidade. Queria saber o que você sentiu quando estava sob o colchão e quase foi capturado pelos russos, mas conseguiu se salvar.

Napoleão teve um acesso de raiva. Como aquele homem ousava fazer uma pergunta daquelas ao imperador? Imediatamente chamou seus guardas, mandou prender aquele judeu e anunciou que ele seria enforcado em praça pública no dia seguinte, por desacato ao imperador.

No dia seguinte, com o imperador presente, o judeu foi trazido pelos soldados para a praça central, onde foi montada a forca. Ele chorava e implorava por misericórdia. Sua cabeça foi coberta com um pano preto, ele foi posicionado sob a forca e a corda foi colocada em volta do seu pescoço. Então o carrasco começou a contagem regressiva. O judeu tremia e chorava sem parar. Quando faltava um segundo, o imperador mandou parar a contagem. Tirou a forca do pescoço do homem, descobriu sua cabeça e avisou que ele estava livre. E antes que o judeu pudesse entender o que estava acontecendo, Napoleão abriu um sorriso e disse:

- Amigo, respondendo à sua pergunta, foi assim que eu me senti..."

Assim também o povo judeu se sentiu, ao ser salvo do decreto de morte de Haman, quando parecia que já não havia mais nenhuma esperança.


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Na Parashá desta semana, Tetzavê, a Torá descreve as roupas usadas pelos Cohanim (sacerdotes), que eram feitas com materiais nobres para dar a honra merecida àqueles que faziam os serviços do Mishkan (Templo Móvel), como os Korbanót (sacrifícios) e o acendimento da Menorá. E esta Parashá em geral antecede uma das festas mais alegres do povo judeu, Purim, que começa no Sábado a noite (23/02), logo após o término do Shabat (em Jerusalém, Purim começa na noite de 24/02). Qual a conexão entre esta Parashá e Purim?

Um dos pontos em comum está em um dos versículos da Meguilat Ester, um dos livros do Tanach (Torá, Profetas e Escrituras) que é lido publicamente em Purim, tanto de noite quanto de manhã. A Meguilat Ester conta a história do grande perigo que os judeus passaram durante o exílio babilônico, após a destruição do Primeiro Beit Hamikdash (Templo Sagrado). Tudo aconteceu quando os Persas e Medas estavam no poder, e quem reinava era o rei Achashverosh, que não era descendente de reis e havia comprado o reinado. Por isso, ele tinha problemas de autoestima e necessitava constantemente demonstrar seu poder, como com a grande e suntuosa festa que ofereceu ao povo ao completar três anos do seu reinado. Ele aproveitou para mostrar aos convidados seus incontáveis tesouros, como diz o versículo: "Quando ele mostrou as riquezas do seu reino glorioso e o esplendor da sua excelente majestade por muitos dias, 180 dias" (Ester 1:4). Explica o Talmud (Meguilá 12a) que a palavra "esplendor", que em hebraico é "tiferet", é exatamente a mesma palavra utilizada na Parashá Tetzavê para descrever as roupas dos Cohanim, como está escrito: "Você deve fazer roupas de santidade para Aharon, seu irmão, para glória e esplendor" (Shemot 28:2). Explica o Talmud que Achashverosh vestia, durante o banquete, as sagradas roupas dos Cohanim, que haviam sido saqueadas durante a destruição do Beit Hamikdash por Nevuchadnetzar (Nabucodonosor).

Mordechai, o líder do povo judeu, havia proibido os judeus de participarem da festa de Achashverosh. Entre outras razões, Mordechai sabia que um dos motivos da festa era comemorar que o Beit Hamikdash ainda não havia sido reconstruído. Infelizmente muitos judeus não escutaram os ensinamentos de Mordechai e participaram do banquete. A consequência espiritual desta desobediência do povo foi a imediata subida de Haman ao poder. Por ser do povo de Amalek, Haman nutria um ódio mortal pelos judeus e, com astúcia, convenceu o rei Achashverosh a decretar a "Solução Final" do povo judeu, isto é, a morte de homens e mulheres, velhos e crianças, em um único dia. Apesar do grande perigo, D'us "virou o jogo" após o arrependimento do povo judeu. Haman e seus filhos foram enforcados, os inimigos dos judeus foram mortos e os judeus se salvaram.

O nome da festa, Purim, vêm da palavra "Pur", que significa "sorteio". Haman fez um sorteio para determinar o dia em que exterminaria o povo judeu, para demonstrar que acreditava que tudo era regido pelo acaso e não por D'us. Mas há outro detalhe interessante no nome da festa. Um dos dias mais sagrados do ano é, sem dúvida, Yom Kipur, o Dia do Perdão. Em hebraico, a palavra "Ki" significa "como". Yom Kipur, e toda sua santidade, é "Ki Pur", "como Purim". Isto nos ensina o quanto Purim, um dia que parece ser espiritualmente tão "despretensioso", é uma grande oportunidade de conexão espiritual.

Mas qual é a conexão entre estas duas festas? Apesar da semelhança nos nomes, são festas muito diferentes, quase opostas. Em Yom Kipur a Mitzvá é se isentar dos prazeres materiais. Não comemos, não bebemos, passamos o dia imersos em rezas, reflexões e choro de arrependimento pelos nossos erros cometido durante o ano. Já em Purim, a Mitzvá do dia é comer, beber e se alegrar. O que conecta estas duas festas tão diferentes?

Por que Yom Kipur é um dos dias mais sagrados do ano? Justamente porque neste dia D'us revela, de uma maneira mais intensa, Seu amor pelo povo judeu. Após um ano inteiro no qual cometemos erros, excessos e nos afastamos de D'us por estarmos conectados com o materialismo, em Yom Kipur o povo judeu se desconecta dos prazeres físicos e purifica seus pensamentos e atos, com a garantia de que, através do arrependimento sincero, todos os seus erros serão expiados e perdoados por D'us. Portanto, neste dia tão sagrado, cada judeu sente o quando D'us o ama profundamente e o quer de volta, apesar de todos os erros cometidos.

Explica o Rav Yossef Kaltsky que há outra situação na qual a pessoa percebe o amor de D'us de uma maneira mais intensa. É o que sente alguém que passou por um grande perigo de vida, uma situação na qual parecia que não havia mais esperanças, mas que no final se reverteu em uma milagrosa salvação. Este foi exatamente o sentimento que o povo judeu vivenciou nos dias de Mordechai e Ester, e esta é a fonte da verdadeira alegria de Purim: o reconhecimento do amor que D'us tem pelo povo judeu. Comer, beber e se alegrar em Purim não é apenas a expressão de alegria pela salvação do decreto de Haman. A alegria vem do reconhecimento do motivo que resultou na salvação: o amor de D'us pelo povo judeu. Este é o ponto em comum entre Yom Kipur e Purim.

Este sentimento, de perceber de uma maneira especial o amor de D'us, tem o potencial de fazer o ser humano chegar a elevados níveis espirituais. Esta elevação pode ser tão grande que o Talmud (Shabat 88a) afirma que a geração de Mordechai e Ester recebeu a Torá novamente. A diferença é que a Torá no Monte Sinai foi recebida com temor, enquanto a Torá desta geração foi recebida com amor. E neste mesmo potencial gigantesco todos nós podemos chegar no dia de Purim.

A geração de Mordechai e Ester teve o mérito de ver com seus próprios olhos a salvação milagrosa de D'us. Mas como nós, que não presenciamos o milagre, podemos nos elevar? Através da reflexão, recordando os grandes milagres que D'us faz de maneira oculta, através de pequenos atos cotidianos que, juntos, demonstram Seu enorme amor pelo povo judeu. Lembrando-se da nossa sobrevivência milagrosa, mesmo que em cada geração alguém se levante para tentar nos exterminar. Com este entendimento, não apenas nossa festa de Purim fica mais alegre, mas nossas vidas ganham uma nova perspectiva, ao estarmos conscientes que há Alguém que cuida de nós, com muito amor, o tempo inteiro.

SHABAT SHALOM E PURIM KASHER VE SAMEACH

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 27:20-30:10, Ez.43:10-27, Hb. 13:10-16 (Shabat Zachor / Erev Purim)

No Purim lemos o Livro de Ester.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

ENCONTRANDO SEU LUGAR IDEAL - PARASHÁ TERUMÁ 5773


"O Rav Elchanan Wasserman desde cedo se destacou muito no estudo da Torá. Depois de casar, foi morar na casa do seu sogro e recusou muitos cargos rabínicos, alguns que lhe trariam muito prestígio, pois preferia se dedicar apenas ao estudo de Torá. Alguns anos mais tarde, começou a ensinar Torá e montou uma Yeshivá (Centro de estudos de Torá) para jovens alunos, onde começou a se destacar muito como professor de Torá.

Passados alguns anos, para evitar uma possível discussão com um rabino local, o Rav Elchanan Wasserman saiu do comando da Yeshivá e foi estudar no Kolel (Centro de estudos de Torá para homens casados) dirigido pelo Rav Israel Meir HaCohen, o Chafetz Chaim, onde continuou se destacando muito pela sua constância e dedicação nos estudos. Incentivado pelo Chafetz Chaim, montou uma nova Yeshivá para jovens alunos, mas a Primeira Guerra Mundial fez com que ele tivesse que fugir para vários lugares.

Após o fim da guerra, o Rav Elchanan Wasserman foi para a Polônia e tornou-se o Rosh Yeshivá (Diretor) de Novardok, que mais tarde, graças à sua genialidade, tornou-se a uma das Yeshivót mais famosas da Europa. A Yeshivá cresceu muito e, em poucos anos, tinha mais de 300 alunos. Influenciou de maneira significativa todo o Mundo de Torá da Europa e tornou-se um dos líderes de sua geração.

Mas momentos difíceis vieram e não havia mais dinheiro nem mesmo para comprar comida para os alunos. O Rav Elechanan Wasserman então decidiu viajar para os Estados Unidos, onde tinha certeza que conseguiria juntar muito dinheiro para a Yeshivá. Enquanto ainda estava nos Estados Unidos começou a Segunda Guerra Mundial, e muitos aconselharam o Rav Elchanan a ficar na América, onde estaria seguro. Voltar para a Europa, com o avanço das tropas nazistas, seria certamente um grande risco de vida. Mas ninguém conseguiu convencer o Rav Elchanan a ficar. Sua única preocupação era com seus alunos, que haviam ficado sozinhos na Europa, sem um guia espiritual para ajuda-los naquela situação difícil.

E a decisão do Rav Elchanan Wasserman se mostrou acertada. Ele voltou para a Europa e por algum tempo ainda conseguiu ensinar Torá aos seus alunos e tranquilizá-los. Mas o cerco nazista foi se fechando cada vez mais até que o Rav Elchanan Wasserman sentiu que o fim se aproximava. Então ele reuniu os judeus que estavam com ele em Slobodka e fez um último discurso emocionado, que reviveu o espírito quebrado dos judeus. Ele ressaltou que a morte deles era para trazer expiação a todo o povo judeu, como os Korbanót (sacrifícios) que eram oferecidos no Beit Hamikdash (Templo). Ressaltou que eles não deveriam ter nenhum questionamento sobre a bondade e os caminhos de D'us, e assim, com Emuná (fé) completa, eles morreriam em total pureza espiritual, cumprindo a Mitzvá de santificar o nome de D'us. Afirmou que a morte deles não seria em vão, pois salvaria a vida de milhões de judeus que estavam do outro lado do oceano. E finalizou dizendo que o fogo que consumiria seus corpos seria o mesmo fogo que reconstruiria o Beit-Hamikdash em Jerusalém. Em 1941, o Rav Elchanan Wasserman foi preso e morto por colaboradores nazistas na Lituânia"

O Rav Elchanan Wasserman poderia ter pensado apenas em si mesmo e salvado a sua vida. Mas ele preferiu pensar nos outros, e decidiu não deixar seus alunos sozinhos. No final, além de toda a Torá e o incentivo que ele conseguiu transmitir aos alunos, ele meritou cumprir, de maneira completa, a Mitzvá de santificar o nome de D'us.



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Nesta semana lemos a Parashá Terumá que, entre outros assuntos, descreve a doação dos materiais necessários para a construção do Mishkan (Templo Móvel) e para a confecção das roupas dos Cohanim (sacerdotes), como está escrito: "A oferenda que vocês tomarão deles será a seguinte: ouro, prata e cobre... Pedras de ônix e "Avnei Miluim" (pedras preciosas) para o efod e para o peitoral" (Shemot 25:3,7). As pedras preciosas foram doadas para serem utilizadas em uma das roupas do Cohen Gadol (Sumo sacerdote), chamada peitoral. Nela eram incrustadas 12 pedras preciosas, cada uma representando uma das 12 tribos de Israel.

É interessante notar que as pedras preciosas utilizadas no peitoral receberam um nome coletivo, "Avnei Miluim". Rashi, comentarista da Torá, explica que este nome, que literalmente significa "as pedras de preenchimento", descreve a função destas pedras preciosas. No peitoral do Cohen Gadol havia 12 "engastes" feitos de ouro, formando cavidades onde as pedras deveriam ser encaixadas. Portanto, a função das pedras, como o nome sugere, era encaixar-se e preencher a cavidade dos engastes de ouro.

Mas desta explicação do Rashi ficam duas perguntas. Em primeiro lugar, por que a Torá atribuiu às pedras preciosas um nome "menos nobre", sugerindo que elas eram apenas "preenchedoras de um espaço vazio", ao invés de atribuir a elas um nome que acentuasse sua beleza e seu elevado valor? Além disso, cada pedra representava uma das 12 tribos de Israel, com suas qualidades e identidades únicas. Então por que as pedras receberam um nome coletivo, o que aparentemente anulava a individualidade e a singularidade de cada uma delas?

Responde o Rav Yohanan Zweig que este pequeno detalhe escrito na Torá nos ensina um fundamento muito importante para nossas vidas. É muito comum ocorrer situações nas quais ficamos divididos entre ficar em um lugar que necessita do nosso talento ou mudar para outra área que parece ser mais propícia para o nosso crescimento pessoal. O que é mais importante? O que é o correto a se fazer? Devemos pensar nos outros, isto é, na necessidade coletiva, ou em nós mesmos e no nosso próprio crescimento? As pedras preciosas nos ajudam a resolver este dilema. Apesar de que a beleza e o valor individual de cada pedra seriam certamente ressaltados caso cada uma delas estivesse isolada do conjunto, a Torá descreve que a função das pedras era ficar em seus devidos lugares, fazendo parte de um conjunto. Com isso a Torá nos ensina que é preferível a pessoa ficar no lugar onde necessitam dela, ao invés de mudar para uma área que parece ser mais propícia para o seu crescimento pessoal, mas onde ela não é tão necessária.

A saída de alguém de um local onde ele é muito necessário causa um impacto muito negativo naqueles que ficam, deixa um grande vazio. É como no caso das pedras preciosas do peitoral do Cohen Gadol, se apenas uma das pedras preciosas estivesse faltando, o vazio deixado por ela ofuscaria completamente as outras pedras. Poderíamos pensar que este é o ensinamento das pedras preciosas: devemos estar dispostos a nos sacrificar, abrindo mão de nossas necessidades pessoais em prol das necessidades comunitárias.

Mas as pedras preciosas nos ensinam algo ainda mais profundo. A verdade é que a escolha de ficar no local onde a pessoa é necessária é a escolha mais benéfica também para ela mesma. No final das contas, o crescimento pessoal será maior caso ela permaneça no local onde ela é mais necessária, ao invés de ir para o local onde, apesar de ter mais ferramentas de autodesenvolvimento, ela não as utilizará, pois não será tão necessária naquele local. É isto o que a Torá está nos ensinando ao chamar as pedras preciosas de "Avnei Miluim", dando a elas um nome coletivo e relacionado com sua função de preencher o local criado para elas, ao invés de ressaltar sua beleza e valor individuais. Pois o valor de cada pedra preciosa se tornava ainda maior pelo fato delas terem um local ao qual elas se adequavam perfeitamente.

Este é um ensinamento muito precioso para nossas vidas. Não apenas é muito desejado que uma pessoa pense mais no coletivo do que em si mesma, mas a Torá está ensinando que este é o melhor caminho para ela também. Quanto mais pensamos e ajudamos os outros, mais o nosso brilho e o nosso valor verdadeiro são ressaltados.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 25:1-27:19, 1 Re. 5:12 -6:13, Mt. 5: 33-37, Hb. 9: 1-10

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O VERDADEIRO DONO - PARASHÁ MISHPATIM 5773

 "Era domingo de tarde e Roberto já estava horas na frente da televisão. Parava apenas para ir ao banheiro ou para assaltar a geladeira entre um intervalo e outro. Completamente esparramado no sofá, ficava com o controle remoto na mão, passando de canal em canal, procurando algo interessante. Foi quando ele viu uma reportagem sobre pacientes terminais que eram mantidos vivos com a ajuda de aparelhos. Chocado com as fortes imagens da reportagem, imediatamente chamou sua esposa e disse:

- Querida, por favor, você jura que se um dia eu estiver dependente de uma máquina para viver, você tira ela da tomada?

- Sim, eu juro – respondeu a esposa, depois de refletir um pouco.

Então, sem pensar duas vezes, ela levantou-se e tirou a televisão da tomada..."

Achamos que somos livres e independentes. Mas a verdade é que somos totalmente escravos de nossas próprias vontades e desejos.

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Na Parashá desta semana, Mishpatim, a Torá traz dezenas de leis "Bein Adam Lehaveiró" (entre o homem e seu companheiro), que fazem parte do código de leis civis do povo judeu. E o primeiro assunto tratado na Parashá é sobre um judeu que adquire outro judeu como escravo. Nosso conceito de escravidão é totalmente distorcido, pois a primeira ideia que nos vem à cabeça é uma pessoa com vida miserável e trabalho pesado sob fortes e impiedosas chicotadas. Mas a visão da Torá é completamente diferente, a ponto de o Talmud (Kidushin 22a) afirmar que "aquele que adquire um escravo, adquire para si um dono", tamanha é a responsabilidade que o dono deve ter com o bem estar de seu escravo. Por exemplo, um escravo deve ser alimentado com a mesma comida que o dono da casa come, deve ter uma boa cama para poder descansar e não pode sofrer nenhum tipo de maus-tratos. Muito longe dos exemplos de escravidão dos livros de história.

Como um judeu se tornava escravo de outro judeu? Uma das maneiras era quando uma pessoa roubava algo e, ao ser presa, não tinha dinheiro para devolver o roubo ao dono. O Beit Din (Tribunal) então tinha o poder de vender este ladrão como escravo, por um período de 6 anos, para arrecadar os fundos necessários para ressarcir o dono do objeto roubado. O ladrão cumpria os seis anos de trabalho escravo e era libertado no sétimo ano, podendo voltar à sua vida normal, com suas dívidas do passado quitadas.

A Torá traz ainda outro detalhe interessante. O escravo poderia decidir, ao final dos seis anos de trabalho, que gostaria de continuar sendo escravo. O Beit Din tentava convencê-lo a voltar para sua vida normal, como um homem livre, mas caso o escravo recusasse, ele passava por uma cerimônia, na qual era colocado ao lado do batente de uma porta e sua orelha era furada. O escravo então permanecia trabalhando para seu dono até o ano do Yovel (Jubileu), que ocorria a cada 50 anos.

Mas qual o significado desta estranha cerimônia, de furar a orelha da pessoa que decidiu continuar vivendo como escravo? E por que o furo era feito justamente na orelha e não em outro órgão do corpo? Explica Rashi, comentarista da Torá, que a orelha era o local mais adequado, pois como a pessoa havia se tornado escrava por ter roubado, então o furo na orelha servia como um lembrete que dizia: "Que esta orelha, que escutou no Monte Sinai o Mandamento de "Não roubarás" e mesmo assim foi e roubou, seja agora furada".

Mas destas palavras do Rashi surgem duas perguntas. Em primeiro lugar, se o furo na orelha era uma forma de castigar o escravo por ele ter roubado, então por que o furo era feito apenas após os seis anos de escravidão, quando a pessoa decidia continuar sendo escrava, e não logo quando a pessoa havia se tornado escrava, justamente por ter roubado e não ter conseguido devolver o roubo?

Além disso, observando atentamente os 10 Mandamentos da Torá, que foram trazidos na Parashá da semana passada, Itró, percebemos algo interessante. De acordo com o Talmud (Sanhedrin 86a), o 8º Mandamento da Torá, "Não roubarás", não se refere à proibição de roubar objetos e dinheiro dos outros, e sim à proibição de sequestrar uma pessoa. A linguagem "Não roubarás" é utilizada na proibição do sequestro porque em hebraico, uma das maneiras de expressar sequestro é "Gneivat Nefesh" (roubar uma alma). Então, se nos 10 Mandamentos o "Não roubarás" se refere ao sequestro, qual a conexão com a pessoa que decidiu continuar vivendo como escravo?

Para responder estas perguntas, precisamos refletir um pouco sobre o ato de sequestro. Se a Torá chama o sequestro de "roubar uma alma", a pessoa que está sendo sequestrada está sendo roubada de quem? De seus pais? De sua esposa? De seus filhos? Quem é o verdadeiro dono de uma pessoa? Por mais que existam vínculos de sangue entre as pessoas de uma família, como entre os pais e filhos, ou vínculos "contratuais", como entre maridos e esposas, estes vínculos não fazem com que um seja dono do outro. Um pai não é dono de seu filho, um marido não é dono de sua esposa. Então de quem o sequestrado está sendo roubado?

Responde o Rav Shimon Shwab que D'us é o único e verdadeiro dono de cada pessoa. Foi Ele quem criou cada um de nós e, portanto, Ele é o dono de tudo. Quando a pessoa está sequestrada, presa no cativeiro, ela não pode servir a D'us, o seu Criador e verdadeiro Dono, da maneira correta. Por isso, o sequestro significa roubar alguém de D'us.

Com este conceito podemos então responder as perguntas anteriores. Da mesma maneira que um sequestrador rouba a pessoa de D'us ao afastá-la do seu serviço Divino, assim também se comporta aquele que, por vontade própria, quer continuar a viver como um escravo. Ele está se impedindo de servir a D'us da maneira correta e, portanto, está transgredindo o 8º Mandamento da Torá, "Não roubarás". É também por isso que a orelha do escravo era furada somente após os seis anos, e não no momento em que ele era vendido como escravo pelo Beit Din para quitar as suas dívidas, pois no momento da venda a pessoa estava se tornando escrava por força das circunstâncias, não por escolha. Mas a partir do momento em que ela já havia quitado suas dívidas e mesmo assim quis continuar na escravidão, com isso ela demonstrou que queria ser um escravo de escravos, e não um escravo de D'us. Por isto, somente neste momento sua orelha era furada, para lembrar que ela não havia escutado no Monte Sinai o Mandamento de não roubar de D'us uma de Suas almas.

Podemos aplicar este importante ensinamento em nossas vidas. Ele nos ajuda, por exemplo, a entender um pouco mais o porquê a Torá é tão contra a eutanásia, a prática de ativamente terminar com uma vida para acabar com os sofrimentos pelos quais a pessoa está passando, como um doente terminal. As pessoas a favor da eutanásia utilizam o seguinte argumento: "A vida é minha e, por isso, eu faço o que eu quiser com ela". Mas segundo o judaísmo isto não é verdade. Não somos donos da vida de ninguém, e nem mesmo da nossa própria vida, pois não somos nossos próprios criadores. Nossa vida pertence à D'us, e não está nas mãos de ninguém decidir quem merece viver ou morrer. Por mais difícil que possa estar a situação de uma pessoa, por piores que possam ser seus sofrimentos, tudo está sob a Hashgachá Prati (Supervisão particular) de D'us. Nosso intelecto não entende Seus caminhos, nosso entendimento limitado não consegue alcançar a grandeza dos pensamentos Dele. Mas sabemos que quando um filho sofre, seu pai sofre ainda mais do que ele. Assim também acontece com D'us, que sofre mais do que a pessoa que está sofrendo. E se mesmo assim Ele, o Dono da vida e da morte, entendeu que a pessoa deve continuar viva, quem somos nós para pensar o contrário?

Outro ensinamento que podemos utilizar para nossas vidas é que, apesar de atualmente não haver mais a possibilidade de uma pessoa ser vendida como escravo, o conceito de escravidão ainda existe. Se não tomamos cuidado, nos tornamos escravos do mundo material e também transgredimos o Mandamento de "Não roubarás", pois ao nos tornarmos escravos dos nossos próprios desejos, nos afastamos da nossa espiritualidade e do serviço a D'us. Pois a pior escravidão não é aquela que controla o nosso corpo, e sim aquela que controla nossa cabeça.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 21:1-24:18, Je 34:8-22, 33:25-26, Mt. 5: 38-42(Shabat Sh`kalim)

sábado, 2 de fevereiro de 2013

JUNTOS NOS BONS E MAUS MOMENTOS - PARASHÁ ITRÓ 5773


"No caminho de seu trabalho, Henrique passou na frente de uma loja de roupas finas e viu um lindo casaco na vitrine. Imaginou como ficaria bem com aquele casaco elegante. Vestindo aquele casaco tão chique ele ganharia um ar nobre e deixaria as pessoas boquiabertas.

Sonhando acordado, Henrique entrou na loja para experimentar o casaco. Estava decidido a comprá-lo, apesar do preço exorbitante. O vendedor recebeu-o de forma amável e trouxe o casaco escolhido. Mas após algumas tentativas de vestir o casaco, Henrique descobriu que, decididamente, aquele casaco não era do seu tamanho. Por mais que insistisse, o casaco não entrava. Porém, o vendedor era persistente e não desistiu tão fácil. Ele pediu para que Henrique levantasse uma das mãos, abaixasse a outra, dobrasse um pouco os joelhos, curvasse a coluna para o lado. Então foi só forçar um pouquinho e o casaco entrou. Mas o casaco ficou tão justo no corpo de Henrique que, para andar, ele precisava ficar completamente torto. Obcecado, apesar do desconforto e de estar todo torto, Henrique decidiu comprar o casaco. Após pagar, saiu da loja com ele já vestido.

Henrique caminhava pela rua, todo torto, com seu casaco novo, quando passou por duas mulheres que eram da alta sociedade. Escutou então elas conversando:

- Veja, querida, aquele pobre homem caminhando. Coitado, olha como ele é torto! – disse a primeira.

A segunda olhou com atenção e exclamou:

- É verdade, querida. Mas veja que casaco elegante ele está vestindo. Que caimento perfeito..."

Parece uma grande piada, mas é exatamente isto que fazemos quando tentamos moldar a realidade de acordo com nossas próprias necessidades e vontades, ao invés de enxergar a verdade.

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Na Parashá desta semana, Itró, estão descritos os detalhes do evento que mudou a história da humanidade: a entrega da Torá no Monte Sinai, quando D'us se revelou para os judeus, um povo inteiro, com mais de 3 milhões de pessoas. A entrega da Torá envolveu grandes milagres, como o Monte Sinai inteiro ardendo em fogo e tremendo, sob um intenso som do toque do Shofar e o brilho da luz dos relâmpagos. Houve fogo e trovões, como está escrito: "Todo o povo viu os trovões e as chamas..." (Shemot 20:15).

Rashi, comentarista da Torá, diz que há mais um milagre implícito neste versículo. Quando a Torá diz que "todo o povo viu", isto quer dizer que mesmo aqueles que eram cegos foram milagrosamente curados e conseguiram ver. O mesmo conceito aparece no versículo que descreve a aceitação da Torá pelo povo judeu: "E respondeu todo o povo junto, e disseram: 'Tudo o que D'us disse, nós faremos' " (Shemot 19:8). A linguagem "respondeu todo o povo" significa que todas as pessoas do povo falaram, inclusive os que eram mudos e surdos, pois foram milagrosamente curados no momento da entrega da Torá.

Mas deste comentário do Rashi surge uma grande questão. Nossos sábios ensinam que os judeus passaram por um processo de preparação para o recebimento da Torá. Eles saíram do Egito em um elevado nível de impureza espiritual e foram, aos poucos, se purificando, até chegar ao nível de profecia. Todo este crescimento espiritual foi um pré-requisito indispensável, pois o povo precisava se purificar espiritualmente para poder absorver os conceitos da Sagrada Torá. Mas, de acordo com a explicação de Rashi, a perfeição física também foi um pré-requisito para o recebimento da Torá. Por que?

Explica o Rav Yohanan Zweig que existe um mito de que religião é apenas uma "muleta" para os doentes e infelizes. De onde vem esta ideia completamente equivocada? De uma triste constatação: quanto mais rica é uma sociedade, mais ela abandona D'us. Países estáveis, como a Suíça e a Suécia, onde há estabilidade socioeconômica e poucas doenças, o índice de ateísmo chega a 60%. Já em países pobres da África, onde há muitas dificuldades e doenças, o ateísmo não passa de 1%. Por que isto acontece? Pois quando a pessoa tem dificuldades financeiras ou enfermidades, a conexão com D'us traz consolo e esperança. Mas quando a pessoa tem estabilidade, fartura e saúde, ela prefere viver ignorando D'us.

É impressionante perceber que estas tristes estatísticas estão profetizadas nas palavras do "Shemá Israel", que lemos duas vezes ao dia: "... e você vai comer e se saciar. Cuidem-se para que seus corações não sejam seduzidos e se desviem, e servirão outros deuses" (Devarim 11:15,16). A idolatria a que a Torá se refere é a "egolatria", o autoendeusamento, a pessoa atribuir a si mesmo todo o sucesso e sabedoria, esquecendo que D'us está por trás de tudo o que ocorre no universo. Quando esta "egolatria" ocorre? Quando estamos saciados. Quanto mais sucesso a pessoa tem na vida, maior a chance dela se desconectar da busca pela verdade que está contida na religião, pois a pessoa que atinge sucesso e prosperidade financeira não quer seguir regras, ela prefere viver de acordo com suas próprias leis. Portanto, fica a impressão de que a religião é importante apenas para pobres, necessitados e doentes.

Os judeus saíram do Egito carregados com grandes riquezas em ouro e prata. Além disso, D'us provia diariamente ao povo o "Man", a comida milagrosa que caía do céu, na quantidade exata para cada família. Um poço acompanhava os judeus no deserto, fornecendo toda a água necessária. As roupas cresciam junto com o corpo e não se estragavam com o uso. Em resumo, não havia pobres nem necessitados entre os judeus que estavam no deserto. Eles tinham abundância, tinham estabilidade, tinham a tranquilidade de saber que nada material faltava em suas vidas. A única coisa que faltava era a saúde, pois havia doentes dentro do povo. Havia cegos, surdos, mudos, e todos os outros tipos de defeitos físicos. Portanto, ao curar os doentes antes da entrega da Torá, D'us estava deixando uma mensagem muito clara para nós: a Torá não foi entregue para tratar apenas dos pobres e desafortunados. Ao contrário, quanto mais a pessoa tem sucesso na vida, mais ela deve estar conectada com a sua espiritualidade, para agradecer tudo o que tem de bom e não se perder no materialismo exagerado e desequilibrado.

Infelizmente, a maioria das pessoas espera as dificuldades e doenças para lembrar-se de D'us e de Sua Torá. Mas isto não é o correto, não devemos frequentar a sinagoga apenas quando nos falta algo e desaparecer novamente logo após a solução dos nossos problemas. A Tefilá (reza) não foi fixada pelos nossos sábios apenas para que possamos pedir o que nos falta, mas também como uma ferramenta de agradecimento a D'us por tudo o que temos de bom. Devemos estar conectados à nossa espiritualidade principalmente quando tudo está bem, quando temos estabilidade, quando nada nos falta. Pois quando a pessoa se desconecta de sua espiritualidade, uma das maneiras que D'us tem para nos despertar é através das dificuldades.

Podemos enganar a nós mesmos, querendo nos acomodar em uma vida sem regras, onde nós fazemos as nossas próprias leis. Mas a experiência mostra que saímos perdendo duas vezes, tanto espiritualmente quanto materialmente. A cultura ocidental, que prega uma vida sem regras e sem limites, está em colapso após pouco mais de 200 anos de existência. As consequências são evidentes, estão diante dos nossos olhos: divórcios, traição, abuso de alimentação não saudável, vidas desregradas e famílias desestruturadas. Por outro lado, vemos o judaísmo e suas leis, com seus mais de 3000 anos de existência, manter-se firme e saudável, ensinando aos judeus a necessidade do equilíbrio, da estabilidade e dos valores corretos.

Muitas civilizações já surgiram e desapareceram, mas o judaísmo continua. Pois as leis que D'us nos entregou no Monte Sinai não foram apenas para curar nossas doenças ou resolver nossos problemas, mas para que possamos ser felizes de verdade, neste mundo e no Mundo Vindouro.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
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Ex. 18:1-20:26, Is. 6:1-7:6; 9:6-7, Mt. 5:17-32, Hb. 12: 18-24