sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

INTEIRO, E NÃO PELA METADE - PARASHAT VAIECHI 5776

O Rav Israel Salanter zt"l (Lituânia, 1810 - Prússia, 1883) foi um dos maiores rabinos de sua geração. Ele se destacou não apenas na grandeza de seu conhecimento de Torá, mas principalmente no trabalho que ele fazia, consigo mesmo e com seus alunos, para atingir a excelência nos traços de caráter. Ele instituiu em sua Yeshivá (centro de estudo de Torá) que, além do estudo do Talmud, os alunos também deveriam dedicar parte do dia ao estudo de Mussar (estudo que ajuda a pessoa a se tornar um ser humano melhor). Ele incentivava mesmo seus melhores alunos, aqueles que mais se destacavam no estudo do Talmud, a também estudarem Mussar.

Certa vez, alguém que não concordava com os métodos de ensino do Rav Salanter questionou a permissão de interromper o estudo de Talmud para estudar Mussar, alegando que isso provavelmente comprometeria a grandeza no estudo de Torá dos alunos dele. O Rav Salanter respondeu que havia aprendido isto de uma Halachá (Lei Judaica) em relação às Brachót que fazemos antes de comer algo. Ao ver a expressão de dúvida no rosto da pessoa que havia questionado, o Rav Salanter explicou:

- Existe uma série de prioridades para fazermos Brachót nos alimentos. Por exemplo, quando temos uma fruta completa e outra apenas pela metade, o correto é fazer a Brachá na fruta inteira. Já quando temos uma fruta pequena e outra grande, a prioridade é fazer a Brachá na fruta grande. Porém, o que fazemos quando temos uma fruta inteira e pequena, e outra que é grande mas não está inteira? Para qual das duas damos a preferência da Brachá?

- A Halachá ensina que a preferência é dada para a fruta inteira, mesmo que seja menor - respondeu o Rav Salanter - Isto significa que é mais importante a pessoa ser menor em Torá e completa do que grande em Torá e incompleta. Por isso, aquele que estuda Torá e também trabalha em seus traços de caráter, tornando-se alguém completo, está em um nível maior do que aquele que tem mais estudo de Torá e é menos refinado em seus traços de caráter. 
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Nesta semana lemos a Parashat Vaiechi, a última Parashat do livro de Bereshit, que descreve as Brachót eternas que Yaacov deu aos seus filhos antes de sua morte. Cada um dos filhos de Yaacov recebeu uma Brachá única e especial, sob medida para seus talentos e necessidades específicas. Depois desta Brachá individual, Yaacov deu a todos uma Brachá coletiva, como está escrito: "E isto é o que falou para eles seu pai, e os abençoou. Cada um de acordo com sua Brachá ele (Yaacov) os abençoou" (Bereshit 49:28).

Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, nos chama a atenção para dois pontos interessantes neste versículo. Em primeiro lugar, se Yaacov já havia abençoado cada um dos seus filhos individualmente, por que precisou dar uma nova Brachá? Além disso, há um aparente erro de concordância neste versículo, pois deveria estar escrito "cada um de acordo com sua Brachá ele o abençoou". Mas por algum motivo o versículo termina no plural, "os abençoou". O que a Torá está nos ensinando ao mudar a concordância do versículo?

Explica Rashi que a Brachá individual que Yaacov deu para cada um de seus filhos não se aplicava aos outros. Por exemplo, Yehudá foi abençoado com a força de um leão, enquanto Biniamin foi abençoado com a capacidade de pilhagem do lobo. Portanto, Biniamin não teria a força do leão nem Yehudá teria a capacidade de pilhagem do lobo. O versículo diz que Yaacov deu uma nova Brachá aos seus filhos, e termina com o plural "os abençoou", para nos ensinar que, além da Brachá específica para cada um de seus filhos, Yaacov deu uma Brachá coletiva que incluía cada filhos nas Brachót dos outros filhos. Isto quer dizer que, com a Brachá coletiva de Yaacov, Biniamin também recebeu a força do leão e Yehudá também recebeu a capacidade de pilhagem do lobo. Porém, esta explicação de Rashi desperta outro questionamento. Se nesta Brachá coletiva Yaacov abençoou todos os filhos com todas as Brachót, então por que ele deu Brachót individuais? Não seria suficiente dar apenas as Brachót de forma coletiva, já incluindo todos os filhos em todas as Brachót?

Responde o Rav Yehuda Loew zt"l (Polônia, 1525 - República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, que apesar de cada filho também ter recebido as Brachót dos outros irmãos, isto não os igualou completamente, pois aquele que recebia a Brachá individualmente a recebia de maneira mais forte, enquanto os outros irmãos recebiam apenas parte daquela Brachá. Isto quer dizer que cada um dos irmãos recebeu apenas um aspecto da Brachá dada de forma específica aos outros irmãos. Por exemplo, Yehudá recebeu o maior nível de bravura e coragem, representado pela força do leão, enquanto seus irmãos receberam apenas certos elementos do traço de caráter da bravura, mas não a força completa. E assim foi com cada uma das Brachót.
Porém, ainda não fica claro qual foi o motivo de Yaacov ter dado para cada filho, além da Brachá específica, também alguns elementos da Brachá dada especificamente aos outros irmãos. Cada um não deveria ter ficado apenas com a sua Brachá específica, que ia de acordo com seus talentos e necessidades pessoais?

Explica o Rav Yehonasan Gefen que todos têm áreas na vida na qual se destacam. Porém, o ideal é a pessoa se esforçar para ser "completa", isto é, ela pode até mesmo se especializar em certa área, mas isto não a isenta de também buscar o aperfeiçoamento em outras áreas, mesmo naquelas que não são tão naturais para ela. Isto se aplica para várias áreas, tanto para o objetivo de vida da pessoa quanto para seus traços de caráter e seu estudo de Torá.

Em relação ao objetivo de vida, há muitas funções que devemos desempenhar. Por exemplo, devemos ser pais, cônjuges, amigos, professores, filhos, etc. Ao querer dar uma atenção especial a certa área, como a educação dos filhos, a pessoa pode acabar se desequilibrando. A educação dos filhos é realmente algo muito importante, fundamental para criarmos uma sociedade saudável, mas a pessoa não pode focar demasiadamente nesta área, pois isto ocorrerá à custa de outras áreas importantes da vida. É de vital importância que a pessoa se dedique para ser um bom pai, mas se é apenas isto que ela faz o tempo inteiro, outras funções na sua vida serão prejudicadas. O segredo do sucesso é o equilíbrio entre o trabalho, o tempo com a família, o estudo de Torá, os atos de Chessed (bondade) e as outras funções que um judeu deve cumprir. Um bom indicador de que uma área está superdimensionada é quando as outras áreas começam a demonstrar sinais de carência. Se a pessoa passa demasiadamente tempo com a família e por isso não consegue estabelecer tempos fixos de estudo de Torá, ou se passa tempo demais no trabalho e por isso não consegue dar atenção para a esposa e os filhos, então é sinal de que há algo errado.

Esta necessidade de sermos "completos" também se aplica na área dos nossos traços de caráter. As pessoas normalmente apresentam certas tendências naturais, como aquelas com mais propensão a fazer bondades e aquelas com mais propensão a buscar justiça. A tendência natural é focarmos nosso tempo e nossa energia nestes traços de caráter, em detrimentos de outras características. Por exemplo, uma pessoa que naturalmente faz Chessed pode passar horas ajudando outras pessoas, mas não dedica nem mesmo um minuto para melhorar sua autodisciplina. É natural e correto uma pessoa focar suas forças no que ela já tem um gosto ou uma facilidade natural, pois é certamente uma área onde ela terá mais chances de ter sucesso. Porém, grande parte da recompensa pelo crescimento de uma pessoa vem das conquistas em áreas que não são naturalmente fáceis para ela.

Uma demonstração do quanto isto é importante é observado em relação aos nossos patriarcas. Eles enfrentaram seus maiores testes na vida justamente nas áreas que eram opostas aos seus traços de caráter naturais. Por exemplo, Avraham chegou à excelência no traço de caráter de bondade e misericórdia, e enfrentou o incrível teste da "Akeidat Ytzchak", tendo que vencer sua característica de misericórdia e estar disposto a sacrificar seu próprio filho para cumprir a vontade de D'us. Já o maior desafio de Yaacov, que representa a característica da verdade, foi ter que enganar Reshaim (más pessoas) utilizando a característica da mentira, o oposto do traço de caráter da verdade.

O equilíbrio também é necessário na área do estudo da Torá, como ensinam nossos sábios: "Se não tem Torá, não tem "Derech Eretz" (bons modos). E se não tem Derech Eretz, não tem Torá" (Pirkei Avót 3:17). O Ramban zt"l (Nachmânides) (Espanha, 1194 - Israel, 1270) explica que estes dois aspectos, o estudo da Torá e o Derech Eretz, se complementam. Isto quer dizer que a pessoa não pode focar em demasia no seu estudo de Torá sem dar nenhuma ênfase ao conserto dos seus traços de caráter. E, da mesma maneira, não é possível que a pessoa conserte com sucesso seus traços de caráter sem estudar Torá, pois a Torá é o "Manual de Instruções" de como nos comportarmos em todas as áreas da vida.

É possível aprender muitas lições com as Brachót que Yaacov deu para cada um dos seus filhos. Mas uma das lições mais importantes é que, apesar de ser algo positivo a pessoa se especializar no que ela gosta e tem habilidades naturais, também temos a obrigação de sermos "completos", e isto inclui o esforço para conquistar as áreas que não sentimos uma facilidade ou um gosto natural por elas. Isto se assemelha a uma academia de ginástica, pois normalmente gostamos de fazer apenas os exercícios que são mais fáceis ou mais prazerosos. Porém, o correto é trabalhar todos os músculos, pois o corpo só funciona de maneira perfeita quando todas as suas partes foram devidamente trabalhadas. Assim também ocorre espiritualmente, o ideal é trabalharmos em todas as áreas, não apenas nas que são mais fáceis ou gostosas, mas também naquelas que são mais difíceis ou não nos agradam tanto.

Certamente trabalhar em áreas que não gostamos é uma tarefa difícil. Muitas vezes D'us nos manda testes para que possamos desenvolver estas áreas, como aconteceu com os patriarcas. Mas não precisamos esperar os testes, pois Yaacov abençoou seus filhos e seus descendentes justamente com a força necessária para que, com o devido esforço, consigamos atingir o objetivo de nos tornarmos seres humanos completos.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 47:28-50:26, 1 Rs. 2:1-12

domingo, 20 de dezembro de 2015

GOTAS DE ÓLEO - PARASHAT VAIGASH 5776

Num quarto de hospital, o doente precisava de silêncio e descanso. Mas as dobradiças da porta rangiam cada vez que alguém abria e fechava a porta. O barulho incomodava o doente, e até os familiares que estavam no quarto começaram a se irritar. Cada vez que entrava ou saia um médico, um enfermeiro ou uma visita, a porta fazia um irritante barulho.

As reações foram as mais diversas. Um quis dar explicações técnicas do porquê a porta rangia. Outro preferiu explicar os motivos pelos quais ele achava que a culpa do barulho era do hospital. O terceiro achou que não tinha nada a ver com o problema. Depois de várias horas de incômodo, chegou alguém para visitar o doente. Ao escutar o rangido, ele colocou algumas gotas de óleo na dobradiça e a porta silenciou, tranquila e obediente.

A lição é simples, mas importante. Em muitas ocasiões há discussões dentro dos nossos lares, no ambiente de trabalho ou em qualquer outro ambiente social. São as dobradiças dos relacionamentos fazendo um barulho inconveniente. São problemas, conflitos e mágoas que ficaram. Na maioria dos casos nós podemos fazer a nossa parte para acabar com as discórdias, basta nos lembrar do recurso infalível de algumas gotas de compreensão, e toda a situação muda. Algumas gotas de perdão acabam de imediato com o chiado das discussões mais acaloradas. Gotas de paciência no momento oportuno podem evitar grandes dissabores. Poucas gotas de carinho penetram até nas barreiras mais sólidas e produzem efeitos duradouros. Nas relações interpessoais, algumas gotas de afeição são suficientes para lubrificar as engrenagens e evitar os ruídos da discórdia e da intolerância.

Dessa forma, sempre que você perceber que as dobradiças dos relacionamentos estão fazendo um barulho inconveniente, não espere que os outros venham solucionar o problema. Lembre-se que você poderá silenciar qualquer discórdia utilizando um pouco do óleo do entendimento. Não é necessário ter grandes virtudes para alcançar o sucesso nessa empreitada, basta agir com sabedoria e bom senso. Às vezes são necessárias apenas algumas gotas de silêncio para conter o ruído desagradável de uma discussão infeliz. E se você é daqueles que pensa que os pequenos gestos nada significam, lembre-se de que as grandes montanhas são constituídas de pequenos grãos de areia. 
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Nesta semana lemos a Parashat Vaigash, que descreve o momento em que Yossef não aguentou mais esconder sua identidade e se revelou aos seus irmãos. Yossef instruiu seus irmãos a voltarem para Eretz Israel para buscarem suas famílias e seu pai, Yaacov, para que todos viessem morar no Egito e sobrevivessem à terrível fome que assolava o mundo. A Parashat ainda descreve o emocionante momento do reencontro entre Yossef e seu pai, depois de terem permanecido 22 anos afastados.

Quando os irmãos estavam se preparando para voltar e buscar suas famílias, Yossef deu um estranho conselho para eles: "E ele (Yossef) disse para eles: "Não se agitem no caminho" (Bereshit 45:24). O que Yossef quis dizer com estas palavras? Que tipo de conselho ele estava dando aos irmãos?

Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, traz três opiniões para explicar qual foi o conselho de Yossef. Citando o Talmud (Taanit 10b), ele ensina que percursos muito longos podem se tornar perigosos caso a pessoa não seja paciente e não tome os devidos cuidados. Por exemplo, a pessoa ansiosa pode querer viajar rápido demais ou continuar a viagem mesmo durante a noite. Yossef estava prevenindo seus irmãos que, em sua pressa de voltar para casa, eles precisavam tomar cuidado para não viajar de uma maneira que os colocasse em risco. De acordo com outra opinião, também baseada no Talmud (Taanit 10b), Yossef estava ensinando aos irmãos a não se envolverem em discussões de Halachá (Lei Judaica), para que o assunto não se tornasse tão envolvente a ponto deles errarem o caminho. E uma terceira opinião de Rashi vai de acordo com o entendimento mais simples do versículo, de que Yossef estava tentando evitar que seus irmãos entrassem em uma discussão acalorada, jogando uns nos outros a responsabilidade por sua venda, e por isso os advertiu para que não entrassem em nenhum tipo de discussão.

Ao refletir sobre estas três opiniões trazidas por Rashi, surge um questionamento. É entendível que depois da revelação de Yossef era importante advertir os irmãos a viajarem de uma maneira mais segura, pois a empolgação de voltar para casa com as novidades poderia fazer com que eles se comportassem de maneira descuidada. Também é compreensível que Yossef estivesse preocupado com o surgimento de uma briga entre os irmãos, pois depois de se reencontrarem com Yossef, seria natural um querer jogar a culpa no outro. Porém, o terceiro motivo, de que Yossef estava preocupado que seus irmãos poderiam se envolver em discussões de Halachá a ponto de errarem o caminho, não é facilmente entendido. Na Torá não há nenhuma proibição de se envolver com o estudo da Torá durante uma viagem. Ao contrário, a Torá nos comanda a estudarmos mesmo quando estamos viajando, como está escrito: "E falará delas quando se sentar na sua casa e quando estiver andando no caminho" (Devarim 6:7). Além disso, há um Midrash (parte da Torá Oral) que afirma que Yossef insistiu aos irmãos para que eles não deixassem de estudar Torá durante o caminho, algo que aparentemente é muito contraditório com a explicação dada pelo Talmud. Como entender esta contradição?

Explica o Rav Yohanan Zweig que é muito comum, por algum desentendimento, que uma pessoa acabe guardando profundo rancor em relação à outra pessoa, mas que consiga socialmente se comportar de maneira civilizada. Porém, se surgir entre elas uma nova disputa, mesmo que não tenha absolutamente nenhuma conexão com o desentendimento anterior, ela será utilizada como veículo para descarregar a raiva que estava contida. Isto pode acontecer inclusive quando a questão utilizada como veículo para descarregar a raiva for algo de natureza espiritual. Por exemplo, uma discussão acalorada entre duas pessoas em relação à Halachá (Lei Judaica) pode esconder uma disputa anterior, alguma mágoa pendente. E por se tratar de algo espiritual, a pessoa se sente à vontade de entrar em uma discussão muito mais acalorada, pois como sente que está brigando "em nome da verdade", acredita que não tem limites.

Parece exagero, mais foi exatamente o que aconteceu com Cain e Hevel (Abel). O versículo que descreve o assassinato de Hevel é um pouco enigmático: "E Cain falou com o seu irmão Hevel, e enquanto eles estavam no campo, Cain se levantou contra o seu irmão Hevel e o matou" (
Bereshit 4:8). Mas afinal, o que eles conversaram? E qual a relação entre esta conversa e o posterior assassinato?

Explicam os nossos sábios que Cain e Hevel entraram em uma profunda discussão filosófica: será que D'us tem controle sobre tudo o que ocorre no mundo ou Ele tem apenas um controle limitado? Hevel defendia a visão óbvia de que D'us controla tudo com Supervisão Particular, enquanto Cain defendia a visão equivocada de que D'us tem apenas um controle limitado. A discussão filosófica foi ficando cada vez mais acalorada até que Cain, no auge da discussão, se levantou e matou seu irmão.

Porém, se a conversa entre eles foi algo tão importante, uma discussão filosófica tão fundamental, por que a Torá não escreveu explicitamente o teor da conversa? Explicam os nossos sábios que Cain foi o primeiro a ter a ideia de fazer oferendas para D'us. Mas Cain não se esforçou em oferecer do melhor que tinha, e por isso sua oferenda não foi aceita por D'us. Hevel gostou da ideia de seu irmão e também fez uma oferenda para D'us, mas com o melhor do que tinha, e por isso sua oferenda foi aceita. Cain ficou profundamente decepcionado com o fato da oferenda de seu irmão ter sido aceita enquanto a sua ter sido recusada. Este rancor ficou em seu coração, e ele procurou apenas uma desculpa para poder se levantar contra seu irmão. Por isso a Torá nem mesmo registrou qual foi o assunto da discussão, pois na realidade o assunto era irrelevante, era apenas uma desculpa para Cain descarregar a sua raiva.

Com este conceito conseguimos entender as palavras de Yossef para os seus irmãos. Ele estava ciente de que seus irmãos haviam guardado rancor uns dos outros por causa da sua venda, mas mesmo assim eles conseguiam se comportar com respeito entre eles. Porém, Yossef teve medo que se eles entrassem em algum outro tipo de discussão, mesmo que fosse sobre algo espiritual, isto seria apenas um veículo para descarregar os rancores antigos e uma desculpa para jogar a culpa uns sobre os outros. A possibilidade disto acontecer era algo que preocupava muito Yossef, pois poderia se tornar uma discussão tão acalorada que os faria se perder no caminho, colocando suas vidas em perigo.

O Talmud está nos ensinando que Yossef não estava instruindo seus irmãos a não estudarem Torá no caminho, ao contrário, estava incentivando-os a estudar, mas ele os advertiu para que não fugissem do foco verdadeiro do estudo, para que não acabassem caindo na armadilha de utilizar o estudo da Torá apenas como um veículo para descarregar nos outros suas frustrações.
Deste ensinamento da Parashat aprendemos algo precioso para nossas vidas, que pode nos salvar de discussões. Muitas vezes entramos em discussões com pessoas que nos fazem questionamentos, pois queremos provar que estamos com a razão. Porém, aprendemos que nem sempre os questionamentos são para tirar dúvidas, algumas vezes são apenas uma forma de ataque, uma desculpa que a pessoa está utilizando para resolver outras mágoas. Precisamos ter a sensibilidade de perceber a diferença entre um questionamento e um ataque. Pois para acabar com um questionamento, nada como uma boa resposta. Mas para acabar com um ataque, que pode estar escondendo alguma mágoa, nada melhor que uma boa conversa. Pois não apenas as dobradiças das portas rangem, algumas vezes as pessoas também rangem, e ao invés de tentar consertar com explicações técnicas, nada como um pouco do óleo do entendimento.
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 44:18-47:27, Ez. 37:15-28

sábado, 12 de dezembro de 2015

ULTRAPASSANDO OS LIMITES - PARASHAT MIKETZ E CHÁNUKA II 5776

Shimon Waisberg (nome fictício) era um judeu israelense afastado. Conhecia pouco das Halachót (Leis Judaicas) e não sabia cumprir nem mesmo as Mitzvót mais básicas. Certo Shabat ele estava circulando de carro em um bairro religioso, onde normalmente não circulam carros no Shabat, quando de repente viu uma criança que, vinda do nada, atravessou correndo a rua bem na frente do carro dele, sem olhar para os lados. Apesar de ter freado, Shimon não conseguiu evitar a forte colisão. A criança voou longe e, gravemente ferida, foi levada às pressas ao hospital. Em poucos dias Shimon foi julgado e absolvido, pois o juiz considerou que a culpa foi exclusivamente da criança. Porém, apesar da absolvição legal, a consciência de Shimon não o deixava tranquilo, e ele ficava o tempo todo pensando no pobre menino e em sua família. Sem conseguir dormir nem comer direito, ele decidiu ir ao hospital visitar a criança e oferecer ajuda à família. Chegando lá, ele entrou no quarto e viu a criança na cama, em condições críticas. A mãe, muito abatida, estava sentada ao lado da cama, rezando pela recuperação do filho. Shimon, muito emocionado e envergonhado, disse em voz baixa:

- Sinto muito pelo seu filho, não foi minha culpa. Há algo que eu posso fazer por vocês?

- Sim - respondeu a mãe do garoto - Por favor, a partir de hoje comece a guardar o Shabat.

Shimon ficou chocado. Aquela mulher, mesmo diante de uma situação tão difícil, vendo seu filho entre a vida e a morte, conseguia estar conectada com sua espiritualidade. Ela poderia ter exigido uma compensação financeira, poderia ter respondido de maneira ríspida e grosseira. Mas, ao contrário do que Shimon esperava, ela foi gentil e se preocupou com a espiritualidade dele. Shimon se interessou em conhecer o que havia de especial dentro do judaísmo que dava forças tão incríveis para aquela mulher. Em pouco tempo ele se tornou um "Baal Teshuvá" (pessoa que retorna ao cumprimento da Torá e das Mitzvót). Em seu casamento, que seguiu cada detalhe da Halachá, todos da família daquela criança atropelada, que felizmente já havia se recuperado completamente, foram os convidados de honra. (História Real) 
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Nesta semana lemos a Parashat Miketz, que continua contando a história de Yossef, em especial a mudança repentina que ocorreu em sua vida, quando ele passou de um simples prisioneiro a vice-rei do Egito. Apesar de Yossef ser muito bonito e muito poderoso, e apesar de estar em um lugar espiritualmente baixo, de materialismo e promiscuidade, ele nunca se corrompeu. É por isso que, entre todos os nossos antepassados, foi ele que recebeu o "apelido" de Yossef "Hatzadik" (o Justo), em especial por seu autocontrole diante de tantos testes e desafios. Também neste Shabat continuamos a comemoração da Festa de Chánuka. Como esta característica de Yossef, de ter um autocontrole acima do normal, se conecta com a Festa de Chánuka?

A resposta começa com uma Mishná (parte da Torá Oral) que afirma: "Há três coroas (no povo judeu): Keter Torá (coroa da Torá), Keter Kehuná (coroa do Sacerdócio) e Keter Malchut (coroa do Reinado), mas o Keter Shem Tov (coroa do bom nome) está acima de todas" (Pirkei Avót 4:13). Porém, esta Mishná apresenta algumas dificuldades. Em primeiro lugar, o que significa a "coroa do bom nome"? Além disso, se a Mishná afirmou que há três coroas, por que listou quatro?

Há um paralelo destas três coroas com os utensílios do Beit Hamikdash (Templo Sagrado) que ficavam no "Kodesh", a parte mais sagrada. O Talmud (Yoma 72b) nos ensina que três utensílios tinham um "Zer", que literalmente significa "borda". É como se os utensílios tivessem em sua borda uma coroa, e as coroas destes três utensílios representam as três coroas mencionadas na Mishná. O Aron Hakodesh (Arca Sagrada) ostenta a coroa da Torá, o Mizbeach HaZahav (Altar de incenso) ostenta a coroa do Sacerdócio e a Shulchan (Mesa dos Pães) ostenta a coroa do Reinado.

Porém, a verdade é que no Kodesh havia quatro utensílios, não apenas três, pois lá também ficava a Menorá de ouro. O Midrash (parte da Torá Oral) explica que a Menorá ostenta a quarta coroa trazida no Pirkei Avót: a coroa do bom nome. Mas se olharmos os detalhes da Menorá, perceberemos que ela era diferente dos outros três utensílios, pois ela não tinha nenhuma coroa. Na verdade a Menorá não tinha nem mesmo bordas delimitadas como nos outros utensílios. Então como a Menorá pode representar a coroa do bom nome se ela não tinha fisicamente nenhuma coroa?
Explica o Rav Yehuda Loew zt"l (Polônia, 1525 - República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, que embora a Menorá não tivesse nenhuma borda física que pudesse conter uma coroa, sua coroa era representada pelas chamas das lâmpadas que a delineavam. Isto significa que os três utensílios anteriores tinham uma borda limitada, enquanto a chama da Menorá era uma borda sem limites. Portanto, a coroa da Menorá reflete o conceito de que o bom nome é superior às outras três qualidades citadas anteriormente. Mas ainda fica a dúvida de qual é o real entendimento do conceito de "coroa do bom nome". Além disso, sabemos que a Menorá é o símbolo da Festa de Chánuka. Então qual é a relação entre Chánuka e a coroa do bom nome?

Se prestarmos atenção, perceberemos que há uma diferença intrínseca entre as quatro coroas citadas no Pirkei Avót. Enquanto as três primeiras coroas são qualidades que dependem da própria pessoa (Torá, Sacerdócio e Reinado), o bom nome é algo que não depende da própria pessoa, e sim de como os outros a percebem. Mas ficar se esforçando apenas para encontrar apreciação aos olhos dos outros é algo elevado e saudável para o ser humano? É isto que significa construir um bom nome, algo que está acima das outras qualidades?

A resposta está em um incrível ensinamento do Talmud (Yoma 35b), que afirma que o comprometimento com o estudo de Torá do grande sábio Hilel, que vivia nas mais severas condições de miséria, obriga todos aqueles que são pobres a estudarem Torá. Já o estudo de Torá do Rav Elazar ben Charsum, o homem mais rico da época, obriga todos aqueles que são milionários a estudarem Torá de uma forma fixa e séria, apesar das preocupações com os negócios. E Yossef HaTzadik, cuja beleza e poder chamavam a atenção de toda as mulheres no Egito, ao demonstrar um incrível poder de autocontrole e retidão ao recusar as insistentes investidas da esposa do Potifar, uma mulher extremamente atraente, obriga todos a controlarem seus impulsos e demonstrarem autocontrole mesmo nas situações mais difíceis.

Mas qual é a mensagem transmitida por este ensinamento do Talmud? Já não estamos obrigados a fixar nosso tempo de estudo de Torá diariamente, independente do nosso status financeiro? Não temos de qualquer maneira a obrigação de controlar os nossos impulsos e evitar qualquer tipo de prazer proibido na vida? Então por que o Talmud traz estes três exemplos como se fossem a fonte da nossa obrigação?

Existe algo interessante na psicologia do ser humano. As pessoas normalmente estão cientes de suas responsabilidades e obrigações na vida, porém também estão cientes de que há situações que estão além do seu controle e que, nestes casos, elas não podem ser responsabilizadas por seus atos. Este conceito de "força maior", isto é, se deparar com situações que estão fora do nosso controle, acaba tornando-se uma desculpa para os nossos comportamentos. Por exemplo, quando a pessoa tem trabalho demais no escritório e se sente impedida de ir para a sinagoga estudar Torá, ou quando a pessoa está presa em uma situação da qual ela não consegue se libertar, ela se sente completamente isenta de responsabilidades, pois considera que nestas condições todos os seus atos são justificáveis.

Porém, como medimos as situações de dificuldade para decidirmos se são realmente situações de "força maior" ou não? Não fazemos isso de acordo com os nossos próprios acertos e erros, e sim comparando com os acertos e erros dos outros. Baseados em padrões criados por outras pessoas nós determinamos se certa situação com a qual nos confrontamos está além do nosso controle. Se nós vemos outros tropeçando em certas dificuldades que nós também estamos enfrentando, sentimos imediatamente um alívio, pois consideramos que é algo que está além da nossa capacidade de controle.

Este é o grande louvor que o Talmud traz para os três grandes Tzadikim citados, Hilel, Rav Elazar e Yossef. Qualquer pobre poderia argumentar que suas dificuldades financeiras são uma "força maior" que o isentam de suas obrigações no estudo da Torá e em outras Mitzvót. O mesmo ocorreria para pessoas muito ricas ou muito bonitas. Mas a grande realização destes três Tzadikim foi que eles estabeleceram novos padrões, e assim elevaram nossos modelos de comparação, ensinando que mesmo em situações muito difíceis ainda somos plenamente responsáveis por nossos atos. Eles se enxergaram como sendo independentes dos padrões estabelecidos pelos que estavam em sua volta. Foi justamente por isso que conseguiram transcender os padrões e estabelecer novos limites. Eles demonstraram que é humanamente possível atingir estes limites, e que tudo depende do nosso próprio esforço. Depois das conquistas deles, colocar a culpa na quantidade de trabalho ou nas dificuldades financeiras tornaram-se apenas desculpas.

É justamente esta habilidade de criar uma nova realidade, através da qual as pessoas precisam comparar os seus esforços com os esforços das pessoas que alcançaram níveis mais altos, é o que os nossos sábios chamam de "bom nome". Na realidade o bom nome não é uma quarta coroa, e sim o título conferido àqueles que estabeleceram novos padrões de excelência nas três coroas anteriores. É por isso que a Mishná diz que a "quarta" coroa está acima das três anteriores, pois é a coroa daqueles que superaram os limites e se tornaram novos modelos do povo judeu.

Isto também nos remete diretamente à Festa de Chánuka, simbolizada pela Menorá. O clima na época da dominação grega era de tristeza e submissão. Mas os Chashmonaim, um pequeno grupo de Cohanim, se levantaram com coragem e enfrentaram o poderoso exército grego. Eles também decidiriam que não queriam acender a Menorá com óleo impuro, apesar de ser permitido pela Halachá (Lei). Através destes esforços eles definiram novos padrões de pureza e de "Messirut Nefesh" (comprometimento com os valores judaicos, independente do custo). Por isso o conceito de "Shem" (nome) é encontrado em vários símbolos de Chánuka: no "Shemen" (óleo), na quantidade de dias que o milagre durou (Shemone=oito), nos Cohanim que ajudaram a libertar o povo judeu (Chashemonaim), e finalmente na Menorá, que carrega a coroa do bom nome.

Podemos nos contentar em ficar dentro dos limites estabelecidos pelos outros à nossa volta, ou podemos decidir que queremos ultrapassar estes limites. No judaísmo o número 7 representa o natural, enquanto o número 8 representa o sobrenatural. É por isso que Chánuka representa o potencial do povo judeu de transcender. Que possamos utilizar a força espiritual de Chánuka para vencer nossas dificuldades, derrotar o comodismo e superar os nossos limites.
SHABAT SHALOM e CHÁNUKA SAMEACH
Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 41:1-44:17, 1 Rs. 3:15-4:1

sábado, 5 de dezembro de 2015

DEMONSTRANDO CARINHO - PARASHAT VAIESHEV E CHÁNUKA 5776

Rogério Kaufman (nome fictício) era um experiente alpinista, mas em uma de suas escaladas na Cordilheira dos Andes ele acabou se perdendo do resto do grupo. Em pouco tempo ele estava sem provisões, sem água e quase congelando. Desesperado, começou a sentir que a morte se aproximava. Seu celular já estava com pouca bateria e ele tentou chamar o socorro, mas não havia mais créditos.

Preparando-se para o seu fim, Rogério escutou seu celular tocar.  Era a telefonista da empresa de celular, informando que a empresa tinha uma excelente promoção e queria saber se ele estava interessado em adquirir um novo plano de ligações. Rogério aproveitou aquele "milagre" e começou a pedir ajuda para a telefonista. Ele levou cerca de meia hora para convencê-la de que aquilo não era um trote. Em seguida, ele levou mais seis horas para guiar o helicóptero de resgate até onde ele estava. Sua bateria não terminou durante todo aquele longo tempo de uso pois a temperatura congelante fez com que ela durasse muito mais" (História real)

A pessoa que quer ver a Supervisão Particular de D'us pode enxergá-la em cada pequeno acontecimento de nossas vidas. Pode ser na promoção especial da companhia de celular ou no tempo frio que faz a bateria durar mais. O importante é nunca esquecer que tudo isto aconteceu somente porque D'us decidiu manter Rogério vivo. Quem presta atenção nos detalhes percebe quanto amor recebemos de D'us a cada momento.
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Nesta semana lemos a Parashat Vaieshev, que começa a descrever a história dos filhos de Yaacov, em especial a saga de Yossef, que foi vendido como escravo por seus próprios irmãos, foi levado ao Egito acorrentado e acabou se tornando o vice-rei, a segunda pessoa mais poderosa do Império Egípcio. O que motivou a venda de Yossef foi a inveja dos seus irmãos, pelo fato de Yaacov sentir um amor especial por Yossef. E este amor especial de Yaacov por Yossef nos remete à próxima festa do calendário judaico: Chánuka.

No anoitecer deste próximo domingo (06/12) acenderemos a primeira vela de Chánuka, recordando os enormes milagres que D'us fez aos nossos antepassados na época da dominação grega. O Talmud (Shabat 21b) afirma que o motivo pelo qual nossos sábios fixaram esta festa para todas as gerações é a recordação do milagre do óleo. Os gregos haviam dominado os judeus e proibido os Serviços do Beit Hamikdash (Templo Sagrado). Quando os judeus conseguiram finalmente expulsar os gregos, quiseram imediatamente recomeçar os Serviços do Beit Hamikdash, entre eles o acendimento diário da Menorá. Porém, um único pote de óleo foi encontrado intacto e lacrado, e isto era suficiente para acender a Menorá por apenas um dia, mas ela ardeu milagrosamente por 8 dias, o tempo suficiente para que mais óleo puro fosse produzido.

Porém, este comentário do Talmud desperta um grande questionamento. Na realidade, em Chánuka aconteceram dois grandes milagres, pois além do milagre do óleo também aconteceu o milagre da batalha. O pequeno exército dos Chashmonaim, um grupo de Cohanim (sacerdotes), se revoltou contra o poderoso exército grego, o mesmo exército que havia alcançado vitórias militares no mundo inteiro. Os Chashmonaim, através da tática de guerrilhas, conseguiram expulsar os gregos, um milagre impressionante se compararmos o poderio militar do exército grego e a insignificância do exército dos Chashmonaim. Além do milagre da batalha ter sido algo gigantesco, certamente foi muito mais importante do que o milagre do óleo, pois a vitória militar possibilitou a derrubada da hegemonia grega e abriu o caminho para a retomada do cumprimento das Mitzvót, que haviam sido proibidas pelos gregos, enquanto o milagre do óleo não teve absolutamente nenhuma participação na libertação do povo judeu. Então por que a Festa de Chánuka foi estabelecida em recordação ao milagre do óleo, ao invés de ter sido estabelecida em recordação ao incrível milagre da vitória militar?

Explica o Rav Chaim Shmulevitz zt"l (Lituânia, 1902 - Israel, 1979) que D'us faz dois tipos de milagre. Um tipo de milagre são aqueles essenciais, que tem uma necessidade absoluta de acontecer. Por exemplo, o milagre do "Man" que caiu no deserto e alimentou todo o povo judeu durante os 40 anos em que eles permaneceram no deserto foi um milagre extremamente necessário, pois possibilitou que os judeus ficassem vivos e bem alimentados mesmo em um ambiente tão inóspito como o deserto. Porém, há outro tipo de milagre, que são aqueles não essenciais. Mas se o milagre é "desnecessário", então para que D'us o faz? Pois a principal função deste tipo de milagre "desnecessário" é mostrar o amor de D'us por aquele que o recebe.

Há na Torá diversos exemplos deste segundo tipo de milagre. Quando David Hamelech matou seu oponente Goliat (Golias) com uma pedrada, o impacto deveria ter derrubado Goliat para trás, mas de maneira milagrosa ele caiu para frente. Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que D'us fez este milagre apenas para que David tivesse que dar menos passos quando foi cortar a cabeça de Goliat. Este é claramente um milagre que não era necessário, mas que D'us fez para demonstrar Seu amor por David.

Também com Avraham percebemos o mesmo tipo de milagre. Quando D'us mostrou para Avraham a Terra de Israel e prometeu que seus descendentes herdariam aquela terra para sempre, está escrito: "Por favor, levante seus olhos e veja, a partir do lugar em que você se encontra, norte, sul, leste e oeste" (Bereshit 13:14). De acordo com o Rav Chaim ben Atar zt"l (Marrocos, 1696 - Israel, 1743), mais conhecido como Or HaChaim, as palavras "a partir do lugar em que você se encontra" parecem desnecessárias. Ele explica que estas palavras escondem um grande milagre que D'us fez para Avraham. A partir do lugar onde Avraham se encontrava, sem nem mesmo precisar virar a cabeça, ele conseguiu ver a Terra de Israel inteira, em todas as direções. Novamente um milagre que não tinha necessidade de acontecer, mas que ocorreu como uma demonstração do amor de D'us por Avraham. Estes dois exemplos de milagres ocorreram como uma expressão do amor infinito de D'us por aqueles que O servem com dedicação. Na realidade, quanto menor a necessidade de um milagre, maior a demonstração do amor de D'us pela pessoa que recebe.

Neste contexto nós conseguimos entender a enorme importância do milagre do óleo. Enquanto os milagres que levaram à incrível vitória militar foram essenciais para a continuidade do povo judeu, o milagre do óleo não tinha uma necessidade fundamental de acontecer. E é justamente por esta pouca necessidade que o milagre do óleo representa uma demonstração de amor muito maior de D'us. Justamente por ter sido um milagre "desnecessário", demonstrou a afeição enorme de D'us pelos Chashmonaim.

Mas este conceito desperta outro questionamento. De acordo com os exemplos citados anteriormente, vemos que D'us somente realiza milagres "desnecessários" para grandes Tzadikim (Justos), como Avraham Avinu e David HaMelech, pessoas que andavam de forma muito reta nos caminhos de D'us. Por que no caso do óleo D'us também escolheu mudar a natureza e fazer um milagre "desnecessário" para os Chashmonaim?

A resposta está em um importante conceito espiritual, de que D'us se comporta "Midá Kenegued Midá" (medida por medida), isto é, Ele se comporta de acordo com o nosso comportamento. Quando os Chashmonaim conseguiram finalmente expulsar os gregos e retomar o Beit Hamikdash, eles quiseram imediatamente reiniciar os Serviços Divinos que haviam sido interrompidos. Um dos Serviços que eles queriam retomar imediatamente era justamente o acendimento da Menorá, mas somente um pote de óleo lacrado foi encontrado, o que seria suficiente para manter a Menorá acesa por um único dia. Porém, levaria mais 7 dias para que mais óleo puro fosse produzido. Nossos sábios explicam que, naquelas condições nas quais o povo judeu se encontrava, seria tecnicamente permitido até mesmo utilizar óleo impuro, mas os Chashmonaim quiseram embelezar a Mitzvá do acendimento da Menorá, se esforçando para fazê-la da melhor forma possível, como um sinal do grande amor que sentiam por D'us e por Suas Mitzvót. Como eles estavam dispostos a ir além da lei, então também D'us se comportou com eles "além da lei", quebrando as leis da natureza e fazendo um grande milagre "desnecessário", como demonstração do Seu amor por eles.

Isto nos ajuda a entender também uma das Halachót (Leis) de acendimento da Chanukiá. De acordo com a Halachá, para cumprirmos a Mitzvá do acendimento das velas de Chánuka da forma mais básica é suficiente que cada pessoa acenda uma única vela em cada uma das noites de Chánuka. Mas o costume adotado por todo o povo judeu é de se esforçar e fazer além do básico, cumprindo a Mitzvá da maneira mais completa e bonita possível, acrescentando uma vela a cada dia de Chánuka. Isto é uma lembrança do esforço dos Chashmonaim para embelezar a Mitzvá do acendimento da Menorá, e do fato de D'us ter "embelezado" Seu ato, medida por medida, fazendo um milagre "desnecessário" pelo povo judeu.

Chánuka é uma festa única e incrível, na qual revivemos o milagre do óleo e o amor mútuo que existe entre o povo judeu e D'us. E um dos ensinamentos de Chánuka que também devemos trazer e aplicar aos nossos dias é tentar cumprir cada Mitzvá da forma mais completa e bonita possível, pois isto é uma grande demonstração do nosso amor por D'us. E quanto mais nos aproximarmos dos caminhos dos nossos antepassados, que viviam de forma correta e justa, mais traremos para nós mesmos, e para o mundo inteiro, o amor recíproco de D'us.
SHABAT SHALOM e CHÁNUKA SAMEACH
Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 37:1-40:23, Am. 2:6-3:8

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

APRENDENDO COM O MAL - PARASHAT VAISHLACH 5776

"Um grupo de doze alunos americanos que estudavam em uma Yeshivá em Israel estava certo dia reunido durante o almoço relembrando sobre as delícias da gastronomia americana. Eles queriam muito comer uma boa refeição e sentiam saudades da boa comida americana, mas não encontravam em Israel um lugar que saciasse essa vontade.

Durante o período de férias eles tiveram uma incrível ideia. Coletaram cerca de cinquenta dólares de cada um dos alunos, o suficiente para comprar uma passagem aérea de ida e volta aos Estados Unidos. Um dos alunos então embarcou, em uma jornada de um dia e meio de viagem, com o único propósito de trazer comida de um restaurante famoso dos Estados Unidos. O rapaz foi em um dia e voltou, triunfante, no dia seguinte, com a deliciosa comida dentro de sua mala" (História Real, retirada do livro "Impact!", de autoria de Dovid Kaplan).

Aprendemos dos nossos desejos que, quando consideramos algo realmente importante, nos esforçamos no limite para alcança-lo. Por que não fazemos o mesmo em relação ao nosso crescimento espiritual? Estaríamos dispostos a fazer os mesmos esforços se fosse para ir aos Estados Unidos comprar um livro ou escutar uma aula de Torá? 

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A Parashat desta semana, Vaishlach, começa com a volta de Yaacov Avinu depois de mais de 30 anos longe de casa, dos quais 20 anos foram passados na casa de seu tio Lavan, trabalhando para ele. Como o principal motivo da viagem de Yaacov havia sido para fugir da fúria de seu irmão Essav, que queria matá-lo, a primeira providência de Yaacov foi enviar mensagens apaziguadoras para seu irmão, na tentativa de promover um reencontro amigável. Ele começou com a seguinte mensagem: "Com Lavan eu vivi, e permaneci até agora" (Bereshit 32:5). Rashi (França, 1040 - 1105) explica que as palavras de Yaacov tinham um duplo sentido, pois a palavra "vivi" em hebraico é "גרתי", que de maneira rearranjada forma a palavra "תריג", equivalente ao valor númerico 613, o número de Mitzvót da Torá. De acordo com Rashi, Yaacov estava dizendo para seu irmão Essav: "Apesar de ter passado tanto tempo com Lavan, uma pessoa completamente desonesta e trapaceira, mesmo assim eu cumpri as 613 Mitzvót da Torá e não aprendi com os maus atos dele".

Porém, esta explicação do Rashi é difícil de ser entendida, pois esta não parece ser uma mensagem de conciliação. Ao contrário, aparentemente a intenção de Yaacov era intimidar seu irmão Essav, mostrando que ele era uma pessoa íntegra e, por isso, certamente D'us o protegeria em um possível confronto. Portanto, se o propósito era uma tentativa de apaziguar seu irmão, como entender as palavras aparentemente intimidadoras de Yaacov?

O Rav Isroel Meir HaCohen zt"l (Bielorússia, 1838 - Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, explica as palavras de Yaacov de uma maneira interessante. Ele afirma que Yaacov não estava atacando Essav com esta afirmação, ao contrário, estava tranquilizando-o. Quando Yaacov disse que cumpriu as Mitzvót e não havia aprendido com os atos de Lavan, ele estava fazendo uma grande autocrítica, e por isso estava comunicando a Essav que não havia nada a temer.

Mas qual foi exatamente a autocrítica de Yaacov? Nossos sábios explicam que Lavan era uma pessoa extremamente ágil em cometer maldades e trapaças. Quando permitiu que suas filhas se casassem com Yaacov, cobrou muito caro pelo dote, fazendo com que Yaacov tivesse que trabalhar 7 anos por cada filha, um tempo absurdo. Além disso, ele trocou as filhas no momento do casamento, não cumprindo sua palavra. E para completar, Lavan trocava as condições do salário de Yaacov a todo instante, sempre buscando formas de levar vantagem. Yaacov estava dizendo para Essav que, apesar de ter cumprido as 613 Mitzvót durante todos aqueles anos, ele não havia feito com o mesmo fervor que Lavan cometia as suas transgressões. Yaacov estava reconhecendo que não havia aprendido a ter agilidade nos seus bons atos no mesmo nível que Lavan tinha nos seus maus atos.

Desta explicação do Chafetz Chaim aprendemos uma incrível lição: nosso cumprimento de bons atos é julgado em comparação com a forma como os Reshaim (malvados) cometem suas transgressões. Se os Reshaim fazem seus maus atos com mais entusiasmo do que nós cumprimos nossos bons atos, isto se transforma em uma grande acusação espiritual contra nós. Por isso temos que tomar muito cuidado para sempre fazermos as Mitzvót com agilidade, alegria e fervor, pois é assim que infelizmente os Rashaim cometem as suas inúmeras transgressões.

Este conceito também é trazido pela Torá em outro episódio que teve grande importância para o povo judeu. Quando Bilaam, o grande profeta dos outros povos, partiu para amaldiçoar o povo judeu, a Torá descreve que ele se levantou cedo de manhã, utilizando a linguagem "Vaiakam" (se levantou). O Midrash (parte da Torá Oral) nos descreve que quando D'us viu esta agilidade de Bilaam para fazer a enorme transgressão de amaldiçoar um povo inteiro, Ele exclamou: "Seu Rashá (malvado)! Avraham, o patriarca deles, já te superou!", pois está escrito (em relação ao episódio do sacrifício de Ytzchak): "E (Avraham) madrugou ("Vaiashkem")" (Bamidbar 22:21). Apesar de a linguagem "Vaiakam", que está escrita em relação a Bilaam, se referir a acordar cedo, a linguagem "Vaiashkem", que está escrita em relação a Avraham, se refere a acordar ainda mais cedo. Portanto, D'us estava informando a Bilaam que Avraham, em sua vontade de cumprir a vontade de D'us e sacrificar seu filho, havia se levantado mais cedo do que Bilaam se levantou quando tentou amaldiçoar o povo judeu. Mas que mensagem o Midrash está nos ensinando? Na prática o que importa qual dos dois acordou mais cedo?

Explica o Rav Yehonasan Gefen que a grande força de maldição de Bilaam era mostrar para D'us falhas nas pessoas ou povos, e com isso despertar um Julgamento Celestial mais rigoroso sobre seus inimigos. Foi justamente isto que ele tentou fazer contra o povo judeu. Bilaam queria retratar o povo judeu de uma maneira negativa ao mostrar que ele fazia seus atos de maldade com muito mais agilidade e fervor do que o povo judeu cumpria suas Mitzvót. Isto realmente teria se transformado em uma grande acusação espiritual contra o povo judeu e teria trazido consequências trágicas. Porém, D'us respondeu para Bilaam que o patriarca do povo judeu, Avraham, já havia demonstrado um nível ainda maior de agilidade e fervor no cumprimento das Mitzvót do que Bilaam havia demonstrado quando cometeu suas maldades. O que protegeu o povo judeu da enorme acusação espiritual que surgiria naquele momento foi que os descendentes de Avraham herdaram dele esta característica de agilidade nas Mitzvót, e por isso possuíam suficientes méritos para vencer a acusação de Bilaam.

No "Shemá Israel", que nós repetimos duas vezes todos os dias, dizemos: "E amarás a Hashem, teu D'us, com todo teu coração" (Devarim 6:5). A palavra "coração" está escrita de uma maneira diferente, "לבבך", e não como seria esperado, "לבך". O Talmud (Brachót 54a) aprende do fato de a letra "ב" estar escrita duas vezes que devemos amar a D'us com nossos dois "Yetzer", com o nosso "Yetzer Hatov" (boa inclinação) e também com o nosso "Yetzer Hará" (má inclinação). Mas como podemos utilizar nossa má inclinação para servir a D'us?

Uma das maneiras é observando a agilidade e fervor que utilizamos para ir atrás dos nossos desejos e tentar aplicar esta mesma agilidade em relação ao nosso Yetzer Hatov. Para preencher nosso desejo de comer algo ou de obter algum outro prazer material nós estamos dispostos a incríveis esforços e sacrifícios. Se aprendermos com a força da nossa má inclinação, poderemos utilizá-la como modelo e canalizá-la para o nosso lado espiritual. Atualmente as pessoas dedicam incontáveis horas para satisfazer seus desejos por dinheiro e honra. Muitos chegam a passar noites sem dormir para atingir seus objetivos. Algumas empresas mantêm turnos de madrugada para aqueles que passam a noite trabalhando no escritório. Por que não utilizar este mesmo potencial para manter a quantidade de horas de estudo de Torá diária que definimos para nós, ao invés de estarmos sempre procurando desculpas para justificar a nossa "falta de tempo" com os nossos compromissos espirituais?

O Rav Noach Weinberg zt"l, que dedicou a vida a trazer judeus afastados de volta ao judaísmo, dizia que aprendia muito com a forma de atuação dos nazistas, e incentivava que fosse utilizada como modelo para nosso Serviço Divino. Os nazistas matavam os judeus de forma metódica e sistemática. Investiam muito tempo e pensamento para desenvolver técnicas para matar cada vez mais judeus utilizando cada vez menos dinheiro. Desta maneira eles conseguiram exterminar 6 milhões de judeu na Europa. Será quer nos organizamos e nos motivamos como os nazistas em nossos esforços para trazer os judeus afastados de volta ao judaísmo? Investimos em maneiras de trazer cada vez mais judeus? Se indo contra D'us os nazistas mataram 6 milhões de pessoas, certamente poderíamos salvar muito mais do que 6 milhões de judeus se se nos esforçássemos e nos organizássemos para fazer o bem da mesma maneira que os nazistas se esforçaram para fazer o mal. Se utilizarmos como modelo aqueles que fazem o mal, para aprender suas estratégias e ferramentas, além do seu nível de comprometimento e dedicação, certamente venceremos os atuais desafios do povo judeu.

Não é necessário nem mesmo procurar nos atos dos Reshaim inspiração para o nosso crescimento espiritual. Se procurarmos em nossos próprios atos, certamente encontraremos áreas nas quais sentimos mais entusiasmo e fervor do que no nosso Serviço Divino. Pode ser com comida, com trabalho, com esporte ou qualquer outra área. Então temos que tentar internalizar que racionalmente o cumprimento das Mitzvót certamente traz muito mais satisfação do que qualquer outro prazer material, e com isso poderemos tentar atingir em nossa espiritualidade a mesma alegria e entusiasmo. Pois se os Reshaim podem fazer muito, mesmo indo contra D'us, imagine o verdadeiro potencial dos que caminham junto com Ele.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Gn. 32:3 -36:43, Ob.1:1-21

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

BONDADE E SENSIBILIDADE - PARASHAT VAIETZE 5776

Shifra era a filha mais velha da família Greenbaum (nome fictício). Quando chegou a hora de começar a "sair de Shiduch" (procurar um noivo), ela recusou todas as propostas que surgiram, mesmo após a insistência dos pais. Com o passar do tempo sua mãe começou a ficar extremamente preocupada, pois os irmãos mais novos de Shifra também já haviam chegado à  idade de se casar e ela não queria que seus filhos mais novos se casassem antes de Shifra. Mas Shifra incentivou que os irmãos saíssem de Shiduch e afirmou que não se importaria se eles se casassem antes dela.

Anos se passaram. Todos os irmãos mais novos de Shifra já haviam casado e ela já estava com trinta e dois anos de idade. Então um dia a mãe de Shifra falou para ela, com muita dor e sofrimento:

- Não entendo sua atitude. Por que você despreza todos os bons pretendentes que são apresentados para você? Quero te dizer uma coisa: você está me causando tanta dor que eu preferia estar morta!

Ao ouvir isso, Shifra decidiu começar imediatamente a procurar alguém para casar. Dentro de pouco tempo ela já estava noiva de um excelente rapaz, um estudioso de Torá. No dia do casamento todos estavam muito felizes. Assim que a "Chupá" terminou, a mãe de Shifra virou-se para um familiar e disse: "Este é o dia mais feliz da minha vida". Essas foram suas últimas palavras, pois logo depois ela teve um colapso, caiu e faleceu.

Nos dias de "Shiva" (7 dias de luto após o falecimento) todos procuraram Shifra para pedir explicações sobre o que havia acontecido. Ela então contou, muito emocionada:

- Há alguns anos minha mãe estava muito doente. Ela procurou um Tzadik (Justo), que deu a ela uma grande Brachá: ela viveria para casar todos os filhos. Eu entendi que isso significava que, enquanto todos os filhos não estivessem casados, ela ainda estaria viva. Foi por isso que eu decidi que não iria me casar, e assim poderia dar a ela muitos anos de vida. Mas no dia em que ela me disse que preferia estar morta a me ver solteira, eu percebi que naquele momento eu estava fazendo a ela mais mal do que bem ao recusar as propostas de casamento. Então eu imediatamente concordei em me casar, e foi isso o que aconteceu. (História Real, retirada do livro "Major Impact!", de autoria de Dovid Kaplan).
 

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A Parashat desta semana, Vaietze, começa contando sobre a viagem de Yaacov para a casa de seu tio Lavan, que ocorreu por dois motivos: para fugir da fúria de seu irmão Essav, que queria matá-lo, e para procurar uma esposa entre os familiares de sua mãe, Rivka. A Torá então descreve um estranho incidente que ocorreu quando Yaacov chegou em Haran, a cidade dos arameus onde sua mãe havia nascido. Ele foi diretamente para o poço de água da cidade e viu que, apesar de ainda ser início da tarde, os pastores já haviam parado de trabalhar. Yaacov então deu uma grande bronca neles em relação à falta de ética no trabalho: "Ele disse: 'Vejam, o dia ainda é longo; ainda não é hora de juntar o rebanho; deem água ao rebanho e voltem a pastorear'" (Bereshit 29:7). Em outras palavras, Yaacov disse: "Se as ovelhas não são de vocês, então vocês estão sendo negligentes na sua responsabilidade com seus patrões. E se são de vocês, então vocês são preguiçosos".

Este incidente relatado pela Torá levanta dois questionamentos. Em primeiro lugar, sabemos que a Torá é muito concisa e somente escreve eventos que são realmente relevantes. Então por que escrever este incidente aparentemente sem nenhuma importância? Além disso, o ato de Yaacov de censurar os pastores da cidade parece uma atitude um pouco arrogante, por se tratar de um estranho recém-chegado à cidade. Por que ele achou importante dar esta bronca nos pastores de Haran?

A Torá, quando fala sobre Lavan, o descreve como um "Ramai", que significa "trapaceiro", e não como um ladrão. Um ladrão não demonstra gostar da sua vítima, ele mostra abertamente que sua única intenção é prejudica-la. Ao contrário do ladrão, o Ramai se apresenta como alguém confiável, demonstrando querer o bem estar da vítima, e somente depois acaba causando danos sem que ela perceba. É isto o que percebemos quando observamos atentamente os atos de Lavan. Ele prometeu que Yaacov se casaria com sua filha Rachel após trabalhar sete anos por ela, mas no dia do casamento Lavan trocou Rachel por sua outra filha, Lea, e ainda justificou seu ato indecente dizendo que naquela região ninguém casava a filha mais nova antes da mais velha. Seu nome Lavan, que literalmente significa "branco", demonstra que por fora ele transmitia ser alguém puro e correto, alguém de confiança, mas por dentro era uma pessoa egoísta e desonesta.

Na realidade, esta era uma característica não apenas de Lavan, mas de todos os arameus, pois a palavra "Arami" (arameu) tem exatamente as mesmas letras de "Ramai", demonstrando que esta era uma característica presente em todos os moradores daquela região. Porém, esta informação desperta um grande questionamento. Não podemos esquecer que muitos dos nossos patriarcas vieram justamente daquela região. Avraham, Sara, Rivka, Rachel e Lea eram descendentes dos arameus. Então por que nós não vemos neles este traço de caráter tão negativo, se era algo inerente daquela região?

Explicam os nossos sábios que a palavra "Midót", que significa "traços de caráter", também significa "medidas". Se perguntarmos a um cozinheiro se o sal é algo bom ou ruim na comida, ele nos responderá que depende, pois se for utilizado sal demais isto certamente estragará a comida, mas se for utilizado pouco sal a comida ficará sem gosto. Para o sal ser algo bom, deve ser utilizado na medida certa. Ensina o Rav Yohanan Zweig que o mesmo ocorre em relação aos nossos traços de caráter, pois nenhum deles é essencialmente positivo ou negativo, dependem da maneira como são utilizados. Mesmo os melhores traços de caráter podem ser mal utilizados, e mesmo os piores traços de caráter podem ser canalizados e utilizados de maneira produtiva.

O traço de caráter de ser um "Ramai", apesar de normalmente ser utilizado para enganar e levar vantagem sobre os outros, não é necessariamente algo negativo. O Ramai atua baseado no desejo natural do ser humano de querer sempre levar vantagem sobre os outros. O trapaceiro engana suas vítimas fazendo-as acreditar que elas estão levando a melhor na negociação, e quando as vítimas percebem que foram enganadas já é tarde demais. Mas apesar de ser algo negativo, o que está por trás desta característica é um grau muito elevado de sensibilidade. Para ser um trapaceiro de sucesso a pessoa precisa perceber as necessidades e desejos de seu companheiro. O trapaceiro usa sua sensibilidade aguçada para deixar sua vítima em desvantagem. Mas se ele conseguir utilizar esta sensibilidade de maneira positiva, pode trazer muitos benefícios ao mundo. Nossos patriarcas que vieram de Haran se destacaram muito no atributo de Chessed (bondade) justamente pois canalizaram o lado negativo da trapaça para algo positivo. Eles aproveitaram a enorme sensibilidade, a capacidade de sentir o que o outro realmente precisa, para fazer o bem. Normalmente fazer Chessed, para a maioria das pessoas, significa dar ao próximo o que nós achamos que ele precisa. Mas o Chessed verdadeiro é tentar realmente perceber o que o outro está sentindo e o que ele necessita.

Por outro lado, esta sensibilidade aguçada pode ser um grande desafio. Um dos nossos maiores testes na vida é termos ética no trabalho. Normalmente nos comportamos muito diferente quando nosso chefe não está olhando. É muito tentador encontrar maneiras de enganar o chefe e fingir que estamos trabalhando enquanto na verdade estamos cuidando das nossas próprias necessidades, como aquele que finge estar digitando no computador um relatório do escritório enquanto está na realidade navegando nas redes sociais. Quanto mais sensibilidade alguém tem, quanto mais consegue entender a cabeça do outro, mais consegue enganar e manipular, fazendo com que o outro pense que ele é um funcionário exemplar.

Somos descendentes daqueles que conseguiram se sobressair justamente na característica de sensibilidade. Isto significa que precisamos nos proteger do tropeço de querer utilizar negativamente esta sensibilidade. Uma das maneiras é criar uma forte ética no trabalho, tentando fazer jus a tudo o que recebemos e trabalhando o tempo inteiro como se o chefe estivesse ao nosso lado acompanhando cada atitude. Devemos enraizar em nossa essência que somente aceitaremos os ganhos pelos quais nós trabalhamos e merecemos de verdade, e devemos sentir repulsa de querer tirar proveito de algo que nós não merecemos. Somente assim estaremos garantindo que nunca nos tornaremos pessoas desonestas e trapaceiras.

Yaacov tinha total consciência de que os arameus tinham o traço de caráter de serem "Ramaim". Ao ver os pastores descansando ao lado do poço de água no meio do dia, ficou evidente que eles estavam utilizando este traço de caráter de maneira negativa, pois uma das consequências deste traço de caráter mal utilizado é a preguiça e a busca de caminhos mais curtos e fáceis na vida. Quando Yaacov viu isso, censurou-os com a intenção de despertá-los, para ensinar que se eles fossem mais éticos no trabalho, poderiam canalizar este traço de caráter para fazer bondades e ter mais sensibilidade com as necessidades dos outros.

Este é um grande teste que temos na vida. Mas se nos esforçarmos, conseguiremos usar nossa herança espiritual da maneira correta. O importante é sermos muito honestos em qualquer situação, cada um começando consigo mesmo, pois é negativo enganar os outros, mas pior ainda é enganar a si mesmo. 

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Gn. 28:10-32:2, Os.11:7-14:9

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O PARADOXO DO NOSSO TEMPO - PARASHAT TOLDOT 5776

"O paradoxo do nosso tempo é que temos edifícios mais altos, mas pavios mais curtos; estradas mais largas, mas pontos de vista mais estreitos; gastamos mais, mas temos menos; compramos mais, mas desfrutamos menos; temos casas maiores e famílias menores; mais graus acadêmicos, mas menos bom senso; mais conhecimento e menos poder de julgamento; mais medicina, mas menos saúde.
 Bebemos demais, fumamos demais, gastamos demais e dirigimos rápido demais. Multiplicamos nossas posses, mas reduzimos nossos valores; adicionamos anos à extensão de nossas vidas, mas não vida à extensão dos nossos anos; já fomos à Lua procurar vida, mas não conseguimos enxergar a vida que existe na Terra; enxergamos outras galáxias, mas não vemos o mendigo que dorme na rua em que caminhamos.
 Conquistamos o espaço exterior, mas não nosso espaço interior; nos preocupamos com a limpeza do ar, mas não com a poluição da nossa alma; quebramos o átomo, mas não nossos preconceitos; temos maiores rendimentos, mas menor padrão moral; as pessoas estão cada vez mais altas, mas o caráter cada vez mais baixo; almejamos a paz mundial, mas não superamos as discórdias nem dentro dos nossos lares; temos maior variedade de comidas, mas menos nutrição; temos residências mais belas, mas lares quebrados.
 É um tempo no qual as fraldas e a moralidade são descartáveis; em que há muito na vitrine e nada no estoque. Um tempo em que sabemos de cor o objetivo das nossas empresas, mas não sabemos nem mesmo qual é o objetivo da nossa vida. E tudo isso ocorre pois, na nossa ânsia de controlar o mundo, acabamos esquecendo de controlar a nós mesmos"

É um tempo difícil este que nós vivemos. E é justamente nestes momentos de dificuldade e escuridão espiritual que o brilho da nossa Torá se ressalta ainda mais, ao nos ensinar que a maior das nossas conquistas é dominar os nossos próprios desejos e inclinações. 
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Na Parashat desta semana, Toldot, a Torá descreve o nascimento dos irmãos Yaacov e Essav. Mas apesar de serem gêmeos, quando eles cresceram tomaram rumos completamente diferentes na vida. Enquanto Yaacov se dedicou ao estudo da Torá e teve um comportamento exemplar e digno, Essav se dedicou à caça e se desviou completamente do caminho correto, chegando ao nível de cometer as piores transgressões.

Apesar de Essav ter se desviado tanto do caminho, há um versículo que descreve seu relacionamento com seu pai, Ytzchak, e que nos chama a atenção: "Ytzchak amava Essav por causa da caça que estava na sua boca, e Rivka amava Yaacov" (Bereshit 25:28). Aparentemente o versículo descreve que Ytzchak tinha uma preferência por seu filho Essav em relação ao seu filho Yaacov. Porém, como alguém tão reto e íntegro como Ytzchak pôde se enganar tanto a ponto de pensar que Essav era alguém virtuoso? Será que Ytzchak não enxergava a diferença entre a má indole de Essav e a boa índole de Yaacov?

Responde o Rav Yosef Tzvi Salant zt"l (1885 - 1981) que há dois tipos de Tzadikim (Justos): um é aquele cujos traços de caráter já são naturalmente refinados e puros, enquanto o outro é aquele cujas tendências naturais são negativas e ele precisa trabalhar muito para derrotar seu Yetzer Hará (má inclinação). Certamente o segundo tipo de Tzadik tem muito mais méritos do que o primeiro, pois alcançar o nível de retidão exigiu dele um esforço muito maior.

Ytzchak acreditava que seus dois filhos eram Tzadikim. Entretanto, ele pensava que cada um era Tzadik de um tipo diferente. Ele imaginava que Yaacov era aquele tipo de Tzadik que nasceu com inclinações naturais para ter bons traços de caráter, enquanto Essav era um exemplo de Tzadik que havia superado através de muito esforço seu Yetzer Hará. O engano de Ytzchak foi ter pensado que Essav havia dominado seus maus instintos, enquanto a verdade era justamente o contrário, isto é, seus maus instintos o haviam dominado e o levaram à sua destruição espiritual.

Mas qual foi a fonte do erro no julgamento de Ytzchak? Ele reconheceu em Essav as características de "vermelhidão" (Essav tinha todos os pelos do corpo ruivos), o que de acordo com o Talmud (Shabat 156a) é indicação de uma natureza sanguinária. O Talmud ensina que quem nasce com este tipo de influência normalmente canaliza suas energias para alguma atividade relacionada com o derramamento de sangue. Se ele utilizar suas energias de forma positiva, pode se tornar um Shochet (pessoa que faz o abate Kasher dos animais) ou um Mohel (pessoa que faz o Brit Milá), mas se utilizar suas energias de maneira negativa, poderá se tornar um assassino.

Quando Ytzchak viu que Essav havia escolhido ser caçador, o que seria comparado com a função de um Shochet, ele pensou que esta havia sido a forma escolhida por Essav para canalizar de forma positiva suas tendências violentas. Além disso, Essav usava suas habilidades de caça para cumprir a Mitzvá de "Kibud Av ve Em" (Honrar os pais), pois ele sempre servia a comida caçada ao seu pai. Desta maneira, Ytzchak acreditou que Essav havia atingido o status de Tzadik, e em um nível ainda mais alto do que Yaacov.

É possível desenvolver um pouco mais o conceito de Ytzchak ter dado preferência a Essav. Explicam os nossos sábios que cada um dos patriarcas se sobressaiu em um traço de caráter específico. Avraham se sobressaiu em "Chessed" (bondade), Ytzchak em "Guevurá" (força) e Yaacov em "Emet" (verdade). Quando Ytzchak viu que Essav também tinha inclinações para a Guevurá, achou que ele utilizaria este traço de caráter para vencer seus maus instintos. Porém, o erro de Ytzchak foi não perceber que realmente Essav tinha o traço de caráter de Guevurá, mas estava utilizando esta característica de maneira completamente equivocada.

Antes de tudo precisamos entender o que significa o conceito de "Guevurá". O primeiro pensamento que nos vem à cabeça está relacionado com o uso da força física. Mas nos atos de Ytzchak descritos pela Torá não vemos que ele participou de sangrentas batalhas, conquistou reinados ou derrotou fortes oponentes. Então onde estava a Guevurá de Ytzchak? Sua grande força estava em sua habilidade de conquistar qualquer inclinação negativa que surgisse e de anular seus desejos e necessidades egoístas. Isto resultou em um alto nível de autodisciplina e pureza, através do qual ele conseguiu que toda sua essência se transformasse em cumprir a vontade de D'us. Ytzchak viu em Essav o potencial de também se sobressair neste traço de caráter e atingir níveis até mesmo maiores do que o seu próprio nível. Apesar de estar claro para Ytzchak que Essav era puxado por fortes inclinações negativas, ele acreditava que se Essav utilizasse sua Guevurá da maneira correta, poderia vencer suas inclinações.

Mas Essav acabou direcionando sua Guevurá para propósitos egoístas. Ao invés de usar sua enorme força para controlar a si mesmo, Essav usou para controlar os outros. Ao invés de buscar a autodisciplina, ele canalizou sua força para dominar e subjugar outras pessoas. Isto fica claro através da profissão que ele escolheu: ser um caçador, atividade que envolvia dominar poderosos animais. Mas Essav não se limitou a usar sua força apenas contra os animais, ele também direcionou suas forças contra os seres humanos e tornou-se um assassino. Ao invés de investir em seu autocontrole, ele se deixou levar por todos os seus desejos, a ponto de se tornar uma pessoa extremamente imoral.

Percebemos que estes traços negativos de Essav foram transmitidos aos seus descendentes. Os romanos, por exemplo, deram continuidade ao mau uso que Essav fez da Guevurá. Eles se tornaram uma nação empenhada em conquistar o mundo apenas com o propósito de obter poder. Além disso, eles também não se importaram em se esforçar para ter autocontrole, preferindo adotar um estilo de vida imoral. E a nossa Cultura Ocidental, que também faz parte da descendência espiritual de Essav, atribui grande importância ao uso externo da força, ao invés do seu uso interno. Não apenas o uso da força física, mas também o uso da força do dinheiro para influenciar e dominar outras pessoas. Ao invés de investir no autocontrole, atualmente o objetivo de vida das pessoas tornou-se obter o máximo de poder e prazer pessoal.

A visão da Torá sobre o uso correto da Guevurá é exatamente o oposto da forma como Essav a utilizou. A ênfase da força é em seu uso interno, na busca de autocontrole, e não no seu uso externo, como ensinam nossos sábios: "Quem é forte? Aquele que domina suas inclinações, como está escrito: "Aquele que é devagar em se irritar é melhor do que o homem forte, e aquele que domina seus desejos é melhor do que aquele que conquista uma cidade" (Pirkei Avót 4:1). Quando a Torá nos ensina que Ytzchak se sobressaiu na Guevurá, significa a Guevurá interna, o poder de controlar as suas inclinações naturais, para cumprir sempre a vontade de D'us. É esta forma de poder, e não a exercida por Essav, que nós devemos aspirar. Aquele que domina os outros ainda assim continua escravo dos seus próprios desejos, e satisfazer seus desejos nunca trará um preenchimento verdadeiro. Por outro lado, aquele que adquiriu o autocontrole é a pessoa verdadeiramente livre e, portanto, a que detêm o verdadeiro poder. 
SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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Gn. 25:19-28:9, Ml. 1:1-2:7

sábado, 7 de novembro de 2015

RESPEITO AOS IDOSOS - PARASHAT CHAIEI SARA 5776

"Um frágil e velho senhor ficou viúvo e foi viver com seu filho, sua nora e seu neto de quatro anos. A família se reunia todos os dias para comer em uma bela mesa na sala de jantar. Porém, as mãos do velhinho tremiam e a vista dele já estava um pouco embaçada, o que tornava difícil o simples ato de comer. A todo instante a comida caía da sua colher, sujando todo o chão, e o leite derramava na toalha. A sujeira começou a irritar muito seu filho e sua nora:


- Nós precisamos fazer algo em relação ao meu pai - disse o filho, irritado - Já estou cheio do tanto leite derramado, de ouvir os ruídos que ele faz quando come e de toda a comida que ele derruba no chão.

O marido e a esposa decidiram preparar uma mesa pequena no canto da área de serviço. Lá o velhinho comia sozinho, abandonado, enquanto o resto da família continuava comendo na sala de jantar. Além disso, depois do velhinho ter quebrado um ou dois pratos, a comida dele passou a ser servida em uma tigela de madeira. Quando eles olhavam de relance na direção do velhinho, às vezes percebiam uma lágrima nos olhos dele. Ainda assim, as únicas palavras que o casal dirigia a ele eram duras broncas quando a colher caía com comida ou ele derramava o leite. O neto de quatro anos assistia tudo em silêncio. Uma noite, antes do jantar, o pai notou que a criança estava brincando no chão com sucatas de madeira. Perguntou docemente ao filho o que ele estava fazendo, e com um enorme sorriso o menino respondeu:

- Eu estou fabricando duas pequenas tigelas de madeira, para você e a mamãe poderem comer sua comida quando estiverem velhinhos.

As palavras do menino penetraram como uma faca afiada no coração dos pais. Lágrimas rolaram dos rostos deles. Não era preciso falar nada, eles sabiam o que precisava ser feito. Naquela noite o marido pegou a mão do pai e, com suavidade, conduziu-o de volta para a mesa da família. E daquele dia em diante, nem o marido nem a esposa pareciam se preocupar quando uma colher caia no chão, o leite era derramado ou quando a toalha da mesa tinha se sujado". 

A Torá nos ordena tratar os idosos com muito respeito. Acima de tudo é um reconhecimento pelo que eles já contribuíram, e certamente continuam contribuindo, com enorme sabedoria, na construção de um mundo melhor. 

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A Parashá desta semana, Chaiei Sara, fala sobre o final das vidas de Avraham e Sara. Avraham viveu muitos anos, como está escrito: "Avraham estava velho, com idade avançada, e D'us abençoou Avraham com tudo" (Bereshit 24:1). Apesar de muitos problemas e desafios que Avraham enfrentou durante sua longa vida, ele sempre soube olhar as situações de maneira positiva. E, acima de tudo, ele confiava plenamente em D'us.

Em relação a este versículo, o Talmud (Sanhedrin 107b) traz um incrível ensinamento. Até a época de Avraham não havia o conceito de envelhecimento. Como Ytzchak era muito parecido com Avraham, quando as pessoas iam falar com Avraham, acabavam falando por engano com Ytzchak, e quando iam falar com Ytzchak acabavam falando por engano com Avraham. Avraham então rezou e pediu para que D'us incluísse o envelhecimento no ciclo de vida do ser humano, para evitar este tipo de confusão, e D'us concordou com o pedido de Avraham.

Os comentaristas da Torá perguntam qual é o ensinamento presente nesta passagem do Talmud, pois desperta um grande questionamento. O Rav Ishaia MiTrani (Itália, 1180 - 1250), mais conhecido como Tossafot Rid, argumenta que existem diversas fontes que comprovam que o envelhecimento já existia até mesmo antes do nascimento de Ytzchak, tais como os versículo "Avraham e Sara estavam velhos" (Bereshit 18:11) e "Eu realmente terei um filho, agora que eu estou velha?" (Bereshit 18:13). Poderíamos explicar que os versículos se referem a um envelhecimento que não era fisicamente perceptível, e o pedido de Avraham foi justamente para que o envelhecimento se tornasse algo visivelmente reconhecido pelas pessoas, evitando confusões.

Porém, esta explicação apresenta algumas dificuldades. Em primeiro lugar, após o erro de Adam Harishon, a existência física do ser humano tornou-se finita e seu corpo foi fadado a um estado de decadência física. Por que D'us decretaria a morte do ser humano e não faria com que a proximidade do seu fim fosse visivelmente perceptível? Além disso, há versículos que comprovam que o ser humano já apresentava sinais de envelhecimento em seu corpo mesmo antes do nascimento de Ytzchak. Sara, quando escutou os anjos anunciando que ela ficaria grávida aos 90 anos, comentou: "Depois de estar tão enrugada, eu voltarei a ter uma pele delicada?" (Bereshit 18:12). Deste versículo fica claro que já havia sinais físicos de envelhecimento antes mesmo do pedido de Avraham. Então o que ele exatamente pediu para D'us em sua reza? E o que D'us concedeu à humanidade ao concordar com o pedido de Avraham?

Responde o Rav Yohanan Zweig que talvez o pedido de Avraham realmente não estava relacionado com o estado físico das pessoas. O que chamou a atenção de Avraham foi que as pessoas falavam com ele, um ancião com mais de 100 anos, exatamente da mesma maneira como falavam com seu filho Ytzchak, um rapaz ainda extremamente jovem. Isto significa que as pessoas não tinham nenhuma apreciação pela sabedoria dos idosos e não demonstravam o devido respeito a eles. Avraham queria que os idosos fossem respeitados e honrados pelos seus conhecimentos e por suas experiências de vida. Foi este tipo de apreciação pelos idosos que Avraham pediu para que D'us incutisse na humanidade, e D'us atendeu o seu pedido, como confirmam as palavras finais do versículo: "D'us abençoou Avraham com tudo".

Infelizmente, se olharmos o comportamento da nossa sociedade, perceberemos que esta apreciação dos idosos novamente está ausente. De acordo com a Cultura Ocidental, a velhice é uma deficiência do ser humano. A juventude é vista como referência nas mais diversas áreas: nos negócios, na medicina, nas tecnologias e até mesmo nos governos. As novas gerações insistem em "inovar e aprender com seus próprios erros", ao invés de construir a partir da experiência adquirida pelos mais velhos. Aos 50 anos uma pessoa é considerada alguém "no limite" de sua produtividade, e já começa a receber os primeiros avisos de que seu cargo estaria melhor preenchido por alguém 20 anos mais jovem. Em muitas empresas multinacionais a aposentadoria é obrigatória aos 60 anos, para que alguém de "sangue novo" possa assumir os novos desafios.

Portanto, nossa sociedade acaba forçando com que os últimos anos de vida de uma pessoa sejam de inatividade e decadência. Os mais velhos são tratados como se fossem inúteis, como se fossem um peso para a sociedade. A mensagem transmitida aos idosos é que o ideal seria se estivessem confinados em um asilo. Depois de décadas de conquistas e realizações, seus conhecimentos e talentos se tornam repentinamente sem valor. Depois de muitos anos de importantes contribuições, os idosos se tornam peças indesejáveis no jogo da vida.

Não podemos escapar da realidade de que a natureza do corpo humano aos 70 anos não é a mesma do que aos 30 anos. Mas o valor de uma pessoa é definido por suas proezas físicas? Se a força física de alguém diminuiu, mas suas capacidades intelectuais e sua sabedoria aumentaram, isto é considerado uma melhoria ou um declínio? Se o rendimento de uma pessoa diminui em quantidade, mas melhorou em qualidade, então seu valor aumentou ou diminuiu? A atitude da Cultura Ocidental em relação aos idosos reflete bem a noção dos seus valores: a ênfase está apenas na força física, enquanto a força intelectual é completamente desprezada.

Um jovem de 20 anos pode dançar por horas sem se cansar, enquanto um senhor de 75 anos provavelmente se cansará em poucos minutos. Mas o ser humano não foi criado para dançar. Ele foi criado para transformar a vida na Terra em algo mais puro, mais brilhante e mais sagrado do que era antes do seu aparecimento. Deste ponto de vista, a maturidade espiritual dos anciãos certamente compensa, e muito, sua diminuição física.

Esta é a visão da Torá. A velhice é uma virtude, é uma Brachá (benção). Em toda a Torá o conceito de "ancião" é sinônimo de sabedoria. O Talmud (Kidushin 33a) nos ordena respeitar os anciãos, independente de sua escolaridade, pois os vários desafios e experiências pelos quais eles passaram na vida resultam em uma sabedoria que até mesmo os mais talentosos entre os jovens não podem alcançar. Um dos segredos da imortalidade do judaísmo é justamente o respeito aos idosos. Pois uma sociedade que não sabe respeitar o passado é certamente uma sociedade que não terá futuro.
  

SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm

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Gn.23:1-25:18, 1Rs.1:1-31


sábado, 31 de outubro de 2015

QUANTO VALE UM BOM PENSAMENTO? - PARASHAT VAIERÁ 5776

"Há muitos anos, um rabino certa vez entrou em uma pequena loja de Tel Aviv e viu que havia dois jovens, vestidos com roupas de alunos de Yeshivá, atendendo clientes. O homem descobriu que os dois rapazes eram filhos do dono da loja, e como estavam de férias, aproveitavam para ajudar o pai. Eram extremamente educados e responsáveis, e o comportamento deles chamou a atenção do rabino. O rabino perguntou ao pai dos rapazes:

- Desculpe a curiosidade, mas que bom ato você fez para ter o mérito de ter filhos assim tão maravilhosos?

O homem respondeu que não se lembrava de nada especial, porém o rabino insistiu, dizendo que era impossível que ele tivesse filhos tão especiais sem nenhum mérito. O homem ficou pensativo por alguns instantes e depois disse:

- Lembrei-me de algo, mas acho que foi um ato pequeno. Quando eu era jovem e vivia na Rússia, certa vez consegui juntar uma quantia um pouco maior de dinheiro para Tzedaká. Perguntei para o rabino da cidade o que fazer com aquela soma, e ele me falou que havia dois estudantes que estavam começando a se destacar no estudo da Torá, e que ele gostaria de mandá-los para a Yeshivá de Slobodka, na Lituânia, onde eles poderiam crescer muito mais. Aquele dinheiro seria muito importante para eles se manterem lá por algum tempo e poderem se dedicar integralmente aos estudos. Então eu dei para o rabino o dinheiro, e depois escutei que os rapazes realmente tiveram sucesso nos estudos.

- Que interessante - falou o rabino - Mas você se lembra do nome dos dois rapazes que você ajudou?

- Os nomes eram Yaacov e Aharon. Se não me engano, as famílias eram Kamenetzki e Kotler..."

Simplesmente aquele homem havia ajudado dois jovens estudantes de Torá a se transformarem em dois dos maiores líderes espirituais da geração passada, o Rav Yaacov Kamenetzki zt"l e o Rav Aharon Kotler zt"l. Pequenos bons atos e boas intenções podem trazer para nós mesmos, e para todo o povo judeu, muitos bons frutos (História Real). 

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Nesta semana a Parashat Vaierá continua descrevendo os 10 testes de Avraham, até chegar ao teste mais difícil, a "Akeidat Itzchak", no qual Avraham teve que controlar suas emoções ao nível de estar pronto a sacrificar seu próprio filho. No final, apesar de toda a preparação de Avraham, o sacrifício não ocorreu, como está escrito: "Avraham construiu um altar, arrumou as madeiras, amarrou seu filho Itzchak e colocou-o sobre o altar... E Avraham estendeu sua mão e pegou a faca para sacrificar seu filho. E um anjo de D'us chamou-o dos céus... Então ele disse: "Não estenda sua mão contra o rapaz, não faça nada a ele, pois agora eu sei que você tem temor a D'us" (Bereshit 22:9-12).

Porém, destes versículos surge uma pergunta: por que o anjo repetiu o comando a Avraham? Se ele já havia dito "não estenda sua mão contra o rapaz", por que acrescentou "não faça nada a ele"? Explica Rashi (França, 1040 - 1105) que quando o anjo pediu a Avraham para que parasse, Avraham respondeu: "Então me deixe ao menos fazer um pequeno corte no meu filho Itzchak, para que minha vinda até aqui não tenha sido em vão". É por isso que o anjo acrescentou: "Não faça nada a ele", isto é, não faça nem um pequeno corte. Neste momento o anjo exclamou: "Agora eu sei que você tem temor a D'us", pois a reação de qualquer pessoa, ao receber o aviso de que não precisava mais sacrificar seu filho, seria pular de alegria. Mas Avraham estava mais preocupado com o comando de D'us do que com suas próprias emoções. Por isso o anjo declarou como era incrível o temor a D'us de Avraham.

Mas o que exatamente incomodou Avraham, que o levou a pedir ao anjo a permissão de fazer ao menos um pequeno corte em seu filho Itzchak? Responde o Rav Yechiel Tauber que todas as vezes que fazemos uma Mitzvá, recitamos uma Brachá imediatamente antes do seu cumprimento. Por exemplo, antes do acendimento das velas de Shabat recitamos "Lehadlik Ner Shel Shabat". Se Avraham estava sacrificando seu filho para cumprir um comando de D'us, e já estava com a faca na mão, então certamente já havia pronunciado a Brachá referente à oferenda de sacrifícios. E se o anjo interrompeu-o no meio, significa que Avraham pronunciou a Brachá mas não conseguiu finalizar o ato. Avraham tinha tanto temor a D'us que ficou desesperado com a possibilidade de ter feito a transgressão de pronunciar uma Brachá em vão. Por isso Avraham pediu para pelo menos fazer um pequeno corte em seu filho, para que a Brachá pudesse recair sobre algo e não fosse em vão. Mas se realmente havia o problema de uma Brachá em vão, então por que o anjo não salvou Avraham da transgressão, permitindo-o de fazer um pequeno corte em seu filho? A recompensa desta incrível Mitzvá de Avraham, de estar disposto a sacrificar seu próprio filho, foi uma transgressão?

Existe um conceito transmitido pelos nossos sábios de que todo aquele que morre "Al Kidush Hashem" (santificando o Nome de D'us) tem o mérito de ir diretamente para o Olam Habá (Mundo Vindouro). Algumas gerações do povo judeu foram confrontadas com a escolha de se converter para outra religião ou morrer, e muitos conseguiram vencer o teste. Isto também se aplica a um judeu que morre em um atentado terrorista, pois ele morreu pelo simples fato de ser judeu, e isto santifica o Nome de D'us.

Porém, sabemos que as Mitzvót precisam ser feitas com "Kavaná" (intenção). Alguém que cumpre uma Mitzvá "sem querer", sem saber que a está cumprindo, certamente não receberá recompensa por isso. Mas aparentemente este conceito não se aplica a todos os que morrem "Al Kidush Hashem". Por exemplo, nos casos em que terroristas suicidas entram em um ônibus lotado e matam muitos inocentes, todos os que faleceram estão incluídos entre os que santificaram o nome de D'us. Porém, quantos deles tinham realmente intenção de morrer em nome de D'us? Entendemos o mérito das pessoas que na Inquisição deram suas vidas por escolha, mas como isto se aplica àqueles que morreram em um atentado sem nenhuma intenção de dar suas vidas por D'us?

Explica o Rav Ezriel Tauber que a resposta está em um incrível conceito ensinado pelo Talmud (Kidushin 40a): "D'us junta uma boa intenção a um bom ato". Isto significa que, se uma pessoa tem boas intenções mas as circunstâncias não permitem que ela faça o que pretendia, então D'us pega esta boa intenção e conecta com outro ato para que ela possa receber o mérito. Na prática como isto funciona? Muitas vezes temos boas intenções, mas não conseguimos realizá-las por motivos alheios à nossa vontade. Por exemplo, uma pessoa vai visitar um doente no hospital, mas seu carro quebra no meio do caminho. Outras vezes fazemos bons atos, mas sem nenhuma intenção. Por exemplo, quando fazemos a nossa Tefilá (reza) pensando nos negócios ou planejando as férias. D'us, em Sua misericórdia infinita, pega aquela boa intenção que não estava associada a nenhum ato e conecta com algum ato que ficou sem a intenção apropriada, dando méritos para a pessoa.

Isto ocorre também a nível comunitário. O povo judeu inteiro está conectado entre si, como se fosse uma única entidade. Há uma conexão espiritual entre todos os judeus do mundo, fazendo com que os méritos dos bons atos de cada judeu também beneficiem outros judeus. Por exemplo, quando um judeu faz uma incrível doação de milhões de reais para a construção de uma sinagoga, mas exige que seu nome apareça com muito destaque, demonstra estar procurando apenas reconhecimento e honra pelo seu ato. Neste caso temos um incrível ato de doação, mas com uma intenção inadequada. Do outro lado do mundo, um judeu muito pobre está para comer seu prato de comida, que é tudo o que ele tem na vida, quando chega outra pessoa que não tem o que comer. Em um incrível ato de doação, o homem pobre divide seu prato com o outro pobre esfomeado. Neste caso foi feita uma doação pequena, de meio prato de comida, mas com uma intenção incrível, de alguém que doou metade de tudo o que tinha. Então D'us une os dois, o ato da doação da sinagoga com a intenção daquele que doou metade de tudo o que tinha, e o benefício de um grande ato com uma grande intenção vai para o povo judeu inteiro.

Com este incrível conceito espiritual podemos responder nosso questionamento. Quando Avraham foi sacrificar seu filho, ele tinha a intenção perfeita de cumprir a vontade de D'us, mesmo acima de suas próprias emoções. Cada pensamento, cada ato de preparação, cada palavra da Brachá que ele pronunciou antes de sacrificar seu filho não foram em vão. Eles ficaram guardados para sempre, para os seus descendentes. Avraham teve a intenção, mas no final faltou-lhe o ato. Então todo judeu que morre "Al Kidush Hashem", mesmo que não tenha nenhuma intenção, recebe aquela Brachá de Avraham, fazendo com que seu ato fique completo e sagrado. É como se o ato de Avraham, de sacrificar seu filho para D'us, tivesse realmente acontecido, mas com um lapso de tempo, durante toda a nossa história, se materializando em cada judeu que morre santificando o nome de D'us. Cada vez que um judeu dá a vida por D'us, é como se Itzchak estivesse sendo sacrificado por Avraham sobre o altar.

Aprendemos daqui o valor de cada bom ato, e mais do que isso, o valor de cada boa intenção. Podemos receber o benefício imediatamente, mas às vezes o mérito fica guardado para o futuro. Algumas vezes pode até mesmo beneficiar outras pessoas e não a nós mesmos. Um bom ato ou uma boa intenção nunca voltam vazios, sempre trazem consigo muita Brachá, para cada indivíduo ou para o povo judeu como um todo. A força dos bons atos e das boas intenções é tão grande que até hoje, quase 4 mil anos depois, ainda recebemos os benefícios dos atos de Avraham Avinu, que mesmo quando era submetido a difíceis testes, encontrava forças para cumprir a vontade de D'us. Da mesma maneira, se nos esforçarmos, nossos bons atos e intenções poderão iluminar o mundo inteiro.  

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Gn.18:1-22:24