domingo, 26 de março de 2017

CONTANDO NOSSO DINHEIRO - PARASHIÓT VAYAKEL E PEKUDEI 5777


"Rafael, nos seus quase oito anos, já tinha adquirido um hábito nada saudável. Tudo para ele se resumia em dinheiro. Queria saber o preço de tudo o que via e, se não custasse grande coisa, para ele não tinha valor algum. Rafael não entendia que há muitas coisas que o dinheiro não compra. E, dentre estas coisas, algumas são as melhores da vida.

Certo dia, no café da manhã, Rafael colocou cuidadosamente sobre o prato da sua mãe um papelzinho dobrado. Quando a mãe chegou, ela viu o bilhete, abriu e leu: "Mamãe, você me deve: Três reais por levar recados. Dois reais por tirar o lixo. Dois reais por varrer o chão. Dois reais por arrumar a cama. Total da dívida: Nove reais".

A mãe espantou-se em um primeiro momento. Depois sorriu, guardou o bilhetinho no bolso do avental e não disse nada. O garoto foi para a escola e retornou faminto. Correu para a mesa do almoço e viu, sobre o seu prato, o seu bilhetinho com nove reais em cima. Os seus olhinhos brilharam. Enfiou depressa o dinheiro no bolso e ficou imaginando o que compraria com aquele dinheiro. Foi então que ele percebeu que havia outro papel ao lado do seu prato, igualzinho ao seu e bem dobrado. Curioso, abriu e leu. Era um bilhete escrito pela sua mãe: "Meu querido filhinho, você me deve: Por cuidar da sua catapora e das suas gripes: nada. Pelas roupas, calçados e brinquedos: nada. Pelas três refeições diárias e pelo lindo quarto: nada. Total que você me deve: nada, pois tudo o que eu faço para você, eu faço por amor".

Rafael ficou sentado, lendo e relendo a sua conta. Não conseguia dizer nenhuma palavra. Depois se levantou, pegou os nove reais e os colocou na mão da sua mãe. A partir daquele dia, Rafael passou a ajudar sua mãe por amor."

Não é apenas com as crianças que isto ocorre. Infelizmente, pelo amor aos nossos bens e o desejo de sempre termos mais, nos desconectamos da nossa espiritualidade e nos tornamos pessoas mal agradecidas.

Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Vayakel (literalmente "E reuniu") e Pekudei (literalmente "Contas"). Apesar de a Torá ter dado detalhadas instruções sobre a construção do Mishkan (Templo Móvel) nas Parashiót anteriores (Terumá, Tetsavê e Ki Tissá), nas duas Parashiót desta semana a Torá repete os detalhes construtivos do Mishkan, porém desta vez não apenas como uma ordem de D'us, e sim como a efetiva execução.

A Parashá Pekudei começa com um detalhe interessante. Moshé prestou contas de todos os materiais que foram doados, como está escrito: "Estas são as contas do Mishkan, o Mishkan do Testemunho, que foram contadas sob o comando de Moshé" (Shemot 38:21). Apesar de ser uma pessoa acima de qualquer suspeita, Moshé achou que era importante para o povo a comprovação de que toda a doação havia sido efetivamente utilizada na construção do Mishkan. Não se tratavam de materiais simples e baratos, como tijolos e cimento, e sim materiais caros, como ouro, prata, pedras preciosas, tecidos e couros. Nada havia sido desviado para usos particulares.

O Midrash (parte da Torá Oral) conecta este versículo sobre a prestação de contas de Moshé com outro versículo, ensinado por Shlomo Hamelech (Rei Salomão): "Um homem de confiança terá muitas Brachót (bênçãos)" (Mishlei 28:20). Isto quer dizer que justamente pelo fato de uma pessoa ser confiável é que virá para ela uma abundância de Brachót. O Midrash diz que este versículo de Mishlei se refere a Moshé Rabeinu, que se tornou uma pessoa de integridade inigualável e, por isso, foi apontado como o tesoureiro responsável pela contabilidade de todas as doações feitas pelo povo para a construção do Mishkan. Para trazer um apoio de que o versículo de Mishlei se refere a Moshé, o Midrash traz outro versículo: "Não é assim Meu servo Moshé. Ele é confiável em toda a Minha casa" (Bamidbar 12:7). Mas qual é a conexão entre ser uma pessoa confiável e receber uma abundância de Brachót? E por que o versículo "Ele é confiável em toda a Minha casa" é utilizado para atestar a integridade financeira de Moshé, se o versículo se refere à singularidade da profecia de Moshé, única e inigualável, e não à sua honestidade? E por que Moshé era a única pessoa confiável para este cargo? Não havia outras pessoas honestas em sua geração?

Outro questionamento surge ao analisarmos um ensinamento do Talmud (Taanit 8b), que afirma que as Brachót somente repousam sobre as coisas que estão escondidas dos nossos olhos. A partir do momento que algo é contado, o seu potencial de Brachá se perde. Mas se este conceito do Talmud é verdadeiro, então por que a nossa Parashá começa justamente apresentando a contabilidade dos materiais doados para a construção do Mishkan? Se contar as coisas tira o seu potencial de Brachá, não é uma enorme contradição os materiais do Mishkan terem sido contados?

De acordo com o Zohar (parte mística da Torá), pelo fato desta contagem ter um propósito sagrado, então neste caso a contagem era permitida, como também ocorre, por exemplo, na contagem dos rebanhos para a retirada do "Maasser" (dízimo). Porém, como podemos entender este conceito do Talmud, de que algo deve ficar oculto dos nossos olhos para que receba Brachá, mas que isto não se aplica se a contagem é feita por motivos sagrados?

Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta está em outro interessante ensinamento do Talmud (Baba Metsia 21b). Quando uma pessoa encontra na rua um objeto perdido sem nenhum tipo de sinal que o identifique, mesmo assim a pessoa ainda não tem a permissão de pegar para si este objeto, a não ser que tenha certeza que já passou bastante tempo desde o momento da perda, o suficiente para que o dono do objeto já tenha sentido sua falta e já tenha desistido dele. Entretanto, o Talmud afirma que se o objeto encontrado for dinheiro e não houver no dinheiro nenhum sinal de identificação, então a pessoa pode imediatamente ficar com ele. Porém, como podemos ter a certeza de que a pessoa já percebeu que perdeu o dinheiro? Responde o Talmud que "a pessoa constantemente checa seus bolsos para se certificar que seu dinheiro ainda está lá". Isto quer dizer que, quando encontramos dinheiro sem sinal de identificação, sempre podemos ter a certeza de que a pessoa que perdeu já está ciente de sua perda e já desistiu de procurar seu dinheiro e, por isso, podemos ficar com o dinheiro.

O Talmud não está apenas nos ensinando uma Halachá (lei) em relação a objetos perdidos, mas também está nos ensinando algo incrível sobre a psicologia do ser humano. É inerente a qualquer ser humano a insegurança em relação às suas posses, algo que se manifesta através da necessidade que o ser humano tem de sentir o domínio sobre todas as suas propriedades. Ficar constantemente mexendo nos bolsos para checar se o dinheiro ainda está lá é um exemplo da necessidade que o ser humano tem de se sentir conectado às suas posses. Para atender esta necessidade de domínio, a pessoa fica constantemente contando o que tem, pois contar o que é seu traz ao ser humano um forte senso de domínio e posse. Algumas pessoas chegam ao absurdo de checar várias vezes no dia quanto dinheiro elas têm na conta ou na carteira, enquanto outros abrem o dia inteiro as notícias para saber o valor do dólar e das bolsas.

A palavra Brachá, que significa "Benção", vem da mesma raiz da palavra "Breichá", que significa "Reservatório, Fonte". As Brachót são uma conexão com a nossa Fonte de existência, isto é, D'us. Se uma planta está conectada à terra, que é sua fonte, então ela se desenvolve e floresce. D'us é a fonte de toda a vitalidade. Quando o ser humano conecta algo à sua Fonte, ele recebe Brachá. Por outro lado, quando um ser humano quer demonstrar sua dominação sobre certo objeto, ele está separando este objeto de sua Fonte e, portanto, a Brachá é perdida. É por isso que a Brachá somente repousa sobre os objetos que estão escondidos dos nossos olhos, isto é, que não foram contados pelo ser humano, pois a contagem é uma maneira de demonstrar sua dominação sobre o objeto.

Esta é a diferença entre alguém que conta para si mesmo, de uma maneira dominadora, e alguém que conta "Leshem Shamaim" (em nome de D'us). Quando a contagem é para cumprir uma Mitzvá, então o próprio ato de contar conecta o objeto a D'us. Mas não adianta apenas o ato ser voltado a cumprir a vontade de D'us, pois mesmo quando uma pessoa recolhe e conta doações feitas para uma Mitzvá, como ocorreu na construção do Mishkan, existe o perigo do responsável por esta função sentir uma dominação ou uma conexão mais forte com estes fundos coletados. É por isso que o responsável por coletar as doações do Mishkan precisava ser alguém espiritualmente elevado. Moshé estava muito conectado com D'us, o que é atestado pelo versículo no qual D'us afirma que o nível de profecia dele era algo único e inigualável. Moshé estava tão elevado que é considerado como se ele estivesse na "casa de D'us". Por isso Moshé era a pessoa mais adequada para ser o tesoureiro responsável por coletar e contar as doações que o povo judeu fez ao Mishkan, pois seus atos eram completamente puros e direcionavam todos os objetos doados diretamente para D'us, a Fonte de toda a Brachá.

Assim conseguimos entender a explicação do versículo "um homem de confiança terá muitas Brachót". Aquele que é honesto, que faz tudo "Leshem Shamaim", sem motivações pessoais, se torna uma pessoa completamente íntegra. Desta maneira, ele conecta todo o fruto dos seus esforços a D'us, a Fonte de toda a vitalidade, e pode florescer e crescer abundantemente, como uma planta conectada à terra que lhe dá os nutrientes necessários ao seu crescimento.

Desta explicação do Rav Yohanan Zweig fica um ensinamento muito importante e atual. Vivemos em uma sociedade completamente conectada aos valores materiais. O valor das pessoas é medido de acordo com a quantidade de bens que elas têm. Isto faz com que as pessoas se tornem conectadas aos bens materiais de uma maneira negativa, de uma forma dominadora, se desconectando da sua espiritualidade e da Fonte de vida, D'us. Para termos Brachá na vida, é preciso usar o mundo material de forma que ele seja canalizado para nossa espiritualidade. Quando colocamos no coração que tudo vem de D'us, quando somos honestos nos negócios, quando utilizamos o que temos para também ajudar os outros e quando valorizamos as pessoas pelos que ela são e não pelo que elas têm, certamente isto nos traz muitas Brachót na vida.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 35:1-38:20, 1 Rs 7:13-26, 40-50 e Ex. 38:21-40:38, I Rs 7:51-8:21
É costume, após a leitura da última Parashá de cada Livro (Gn., Ex., Lv., Nm. e Dt.), dizer-se: CHAZÁK, CHAZÁK, VENITCHAZÊK! – FORÇA, FORÇA, E QUE SEJAMOS FORTALECIDOS!


sábado, 18 de março de 2017

NÃO SEJA PRECIPITADO - PARASHÁ KI TISSÁ 5777

"Rubens chegou cedo à sinagoga na manhã de Shabat. Ele estava apenas de passagem por aquela pequena cidade e era a primeira vez que ia àquela sinagoga. A reza ia bem até que chegou o momento da leitura da Torá, quando Rubens começou a achar tudo muito estranho. O Cohen e o Levi chamados para as duas primeiras leituras foram escolhidos entre as pessoas que se sentavam no fundo da sinagoga. Para as próximas três leituras foram escolhidos frequentadores que se sentavam na parte direita da sinagoga, enquanto para as últimas duas leituras foram escolhidos frequentadores que se sentavam na parte esquerda da sinagoga.

Rubens ficou muito irritado com o Gabai (pessoa responsável pela escolha das pessoas chamadas para cada leitura da Torá), pois não fazia sentido a ordem na qual ele havia escolhido as pessoas. Por que o Cohen e o Levi chamados eram pessoas do fundo da sinagoga e não pessoas que se sentavam na frente? E por que os outros três chamados foram da direita e não da esquerda? E por que os dois últimos foram da esquerda e não do fundo? Ele estava tão incomodado que começou a fazer suas reclamações em voz alta, incomodando os outros frequentadores. Então um senhor idoso muito sábio chegou perto dele e disse:

- Senhor, me desculpe, mas você veio nesta sinagoga apenas um único Shabat e já se acha no direito de reclamar da ordem na qual as pessoas foram chamadas na Torá? Se você estivesse aqui há alguns meses, acompanhando semana a semana o funcionamento da sinagoga, eu entenderia suas reclamações, mas não tem sentido você reclamar tendo pisado aqui apenas uma única vez! Se você tivesse vindo nas semanas anteriores, você teria entendido que a escolha segue uma ordem correta e bem planejada. Por exemplo, na semana passada já haviam dado a honra ao Cohen e ao Levi que se sentam na parte da frente da sinagoga e, por isso, desta vez foi chamado alguém da parte de trás. Os outros três chamados foram escolhidos da direita pois, na semana passada, os escolhidos haviam sido da parte da frente da sinagoga. E assim acontece todas as semanas, as pessoas que foram chamadas na semana anterior são puladas para dar oportunidade àquelas que ainda não tiveram o mérito de serem chamadas na Torá.

- O problema não está na ordem na qual as pessoas foram chamadas - concluiu o senhor idoso - O problema está na sua falta de paciência, no seu equívoco de achar que em apenas um único Shabat você já sabe o suficiente para criticar o Gabai. Na sua impaciência, você não conseguiu entender que ele leva em consideração muitos dados e detalhes para fazer a escolha da maneira mais justa possível, dando a devida honra a todos os frequentadores. 
Reuven se sentiu envergonhado por sua reclamação impetuosa. Daquele dia em diante, ele tentou ser mais paciente e não julgar mais nenhuma situação na vida de forma precipitada".

Explica o Rav Israel Meir HaCohen zt"l (Bielorússia, 1838 - Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, que nos comportamos exatamente da mesma maneira. Em poucos anos de vida neste mundo e com nosso intelecto completamente limitado, nos achamos no direito de questionar e criticar os atos perfeitos de D'us.

Nesta semana lemos a Parashá Ki Tissá (literalmente "Quando fizer o levantamento"), que descreve o terrível erro do bezerro de ouro. O povo judeu, ao se desesperar com o atraso de Moshé em descer do Monte Sinai, construiu um bezerro de ouro para que fosse, no lugar de Moshé, um novo intermediário entre o povo e D'us. Isto foi considerado um erro muito grave, a ponto de D'us decidir destruir todo o povo judeu e reiniciar um novo povo a partir de Moshé. Depois de muitas súplicas de Moshé, D'us decidiu revogar Seu decreto e perdoar o povo. D'us então chamou Moshé mais uma vez ao Monte Sinai e ensinou a ele os "13 Atributos de Misericórdia", para que o povo judeu utilizasse todas as vezes em que estivesse em situações delicadas e necessitando de Misericórdia Divina. Como Moshé entendeu que aquele era um momento especial de "Graça Divina", ele aproveitou para fazer um pedido especial para D'us: "Por favor, me mostre Seus caminhos" (Shemot 33:13). Porém, o que significou este pedido de Moshé?

Explica o Talmud (Brachót 7a) que Moshé estava fazendo a D'us uma pergunta que há milênios incomoda a humanidade: "Por que há pessoas boas que tem coisas ruins na vida e pessoas ruins que tem coisas boas na vida?". Em outras palavras, se D'us é bondoso e misericordioso, esperaríamos que as boas pessoas tivessem apenas alegrias e prazeres, enquanto as pessoas ruins tivessem apenas sofrimentos e tristezas. Porém, ao olharmos para o mundo, percebemos que muitas vezes o que ocorre é justamente o contrário. Vemos pessoas boas passando por muitos sofrimentos, enquanto pessoas ruins aproveitam a vida sem preocupações. Aparentemente estas situações contradizem a lógica humana e parecem negar a bondade de D'us.

Mas é permitido fazer este tipo de questionamento a D'us? Tudo depende da nossa intenção. O pedido de Moshé não se tratava de um questionamento em relação à bondade e a perfeição dos atos de D'us. Ele tinha uma Emuná (fé) completa e a certeza absoluta em seu coração de que tudo o que D'us faz é para o bem. Porém, Moshé queria um pouco mais do que esta certeza no coração. Ele queria que D'us mostrasse, de maneira lógica e racional, quais são os cálculos levados em consideração em cada decreto. Ele queria entender o que está por trás das situações nas quais a lógica humana não consegue entender a bondade de D'us.

Porém, precisamos tomar muito cuidado para não questionar "Por que boas pessoas sofrem e pessoas ruins tem tranquilidade na vida?" com intenções não tão puras quanto as de Moshé, pois algumas vezes acabamos realmente questionando a bondade de D'us. Normalmente isto acontece quando estamos passando por situações de sofrimento ou quando ficamos inconformados com situações nas quais pessoas ruins parecem estar se dando bem, apesar de estarem agindo de forma desonesta. Portanto, o primeiro passo é entender que estes questionamentos são provenientes das nossas limitações e da nossa falta de Emuná (fé). Somos muito imediatistas e acabamos decidindo as coisas de forma precipitada.

Quando questionamos "Por que coisas ruins acontecem com boas pessoas?", o que é considerado algo bom e o que é considerado algo ruim? Por exemplo, ganhar na loteria é necessariamente algo bom? Muitos ganhadores de loteria descrevem que suas vidas se transformaram em verdadeiros infernos depois de receberem quantias muito grandes de dinheiro. E sentir dor é necessariamente algo ruim? Existe uma doença chamada "Síndrome de Riley-Day", na qual a pessoa não tem sensibilidade à dor. Em uma análise superficial, parece um paraíso viver sem dor, mas normalmente quem sofre desta doença morre jovem, de maneiras até banais. Quando encostamos sem querer a mão no fogo, a dor aciona imediatamente nosso sistema nervoso e um ato reflexo nos faz tirar a mão do fogo quase imediatamente, evitando consequências mais graves. Porém, pessoas com esta síndrome somente percebem que a mão estava sobre o fogo quando grande parte do corpo já está completamente queimada.

Isto significa que somos muito precipitados quando questionamos D'us. Vivemos neste mundo por apenas poucos momentos e mesmo assim queremos respostas para todos os nossos questionamentos. Por que esta pessoa nasceu rica enquanto aquela outra pessoa nasceu pobre? Por que esta pessoa é saudável enquanto aquela outra pessoa é doente? Se a pessoa tivesse vivido centenas de anos, teria visto a história completa. Por exemplo, teria visto que aquele rico em outra vida foi um pobre, enquanto aquele pobre foi um rico. Cada um deles havia passado por um tipo específico de teste, sendo que um precisou vencer o teste da riqueza, de não se tornar mesquinho, egoísta e desconectado de D'us, enquanto o outro precisou vencer o teste da pobreza, de não questionar os caminhos de D'us e não chegar ao nível de roubar. Porém, depois dos dois vencerem seus testes em vidas anteriores, a situação foi invertida, para que aquele que venceu o teste da riqueza possa vencer o teste da pobreza e vice-versa.

Pelo fato do tempo de vida do ser humano ser tão curto, estamos sempre vendo a história de maneira muito limitada, sem conseguir enxergar as coisas de forma completa. Podemos chamar este fenômeno de "síndrome do buraco da fechadura", pois se assemelha a uma pessoa que quer entender tudo o que acontece dentro de uma casa, com toda a sua dinâmica complexa, apenas observando por alguns instantes através do buraco da fechadura. Enquanto a pessoa não abrir a porta para enxergar o quadro completo, é óbvio que ela estará sempre chegando a conclusões precipitadas, sem o mínimo de dados para tomar decisões racionais e equilibradas. Vemos o mundo de forma limitada e, portanto, distorcida, mas pensamos que é a realidade. E isto se conecta com o outro assunto da Parashá, que foi a construção do bezerro de ouro. A fonte deste erro tão grave foi justamente a precipitação do povo judeu, a pressa de querer entender tudo em um único instante, a falta de Emuná de que tudo o que D'us faz é para o bem.

David Hamelech também nos ensinou este conceito: "Cântico dos degraus: Quando D'us trouxer de volta a Tzion os retornados, seremos como sonhadores. Então nossas bocas se encherão de riso e nossas línguas de alegria" (Salmos 126:1,2). O que significa "seremos como sonhadores"? Na época da vinda do Mashiach, quando D'us se revelar e "acender a luz" deste mundo de tanta escuridão, perceberemos que tudo não passou de uma ilusão de ótica, apenas para nos dar livre arbítrio. Enxergaremos o quadro completo e nos alegraremos de verdade, a alegria imensa de entender os motivos pelos quais passamos por todas as dificuldades e sofrimentos na vida. Será a alegria de finalmente encontrar a resposta de "Por que pessoas boas sofrem enquanto pessoas ruins tem sucesso na vida?".

Quando D'us faz decretos, Ele leva em consideração muitos dados. Por exemplo, nossos atos durante vidas passadas, nosso objetivo nesta vida e o objetivo da humanidade como um todo. Diante de D'us está o passado, o presente e o futuro. Portanto, somente Ele sabe de verdade o que é o melhor para nós. Além disso, todos os nossos atos nesta vida são levados em consideração, pois nos esquecemos de muitas coisas que fizemos, mas D'us nunca se esquece de nada. Por isso, precisamos ter Emuná e a certeza de que tudo é para o bem e que tudo é decretado através de cálculos precisos e corretos. 
"Se agora nós entendermos que não podemos entender tudo, então teremos entendido tudo"
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 30:11-34:35, 1Rs. 18:1-39

sábado, 11 de março de 2017

MÃO OCULTA DE D'US - PARASHÁ TETZAVÊ, PARASHÁ ZACHOR E PURIM

Um enterro foi realizado em São Paulo, no cemitério judaico do Embu. Era uma segunda-feira de tarde e parecia um enterro normal, como qualquer outro. Mas a história por trás deste enterro é incrível.

Há alguns anos, na Santa Casa de São Paulo, faleceu um homem chamado Samuel Fishman. O hospital procurou por parentes e familiares, mas não encontrou ninguém. Eles então anunciaram sua morte em um jornal por seis meses, mas infelizmente ninguém veio para reivindicar o corpo. O hospital então solicitou à justiça permissão legal para utilizar o corpo na faculdade da Santa Casa e recebeu a permissão. O corpo foi colocado em um freezer, aguardando o momento em que seria dissecado e utilizado para estudos de medicina.

Certo dia, quase um ano e meio depois, uma mulher judia foi ao mercado para comprar bananas. Quando ela chegou em casa, olhou sem querer para o jornal no qual as bananas haviam sido embrulhadas. Era um jornal bem antigo, mas um pequeno anúncio chamou sua atenção. Era o anúncio do hospital à procura da família de Samuel Fishman. Sem nem sequer saber quem era Samuel Fishman, ela foi ao hospital e começou a fazer perguntas para obter mais informações. Ela foi informada que o corpo estava congelado e aguardando para ser utilizado em estudos. Desesperada, ela acionou o Chevra Kadisha de São Paulo para que se envolvesse no caso e fizesse os trâmites legais necessários para liberar o corpo. O Chevra Kadisha apelou aos tribunais para que o corpo fosse liberado e, após três meses de esforços incansáveis, conseguiu liberá-lo para o sepultamento no cemitério judaico.

Voluntários do Chevrah Kadisha participaram da purificação do corpo do Sr. Samuel Fishman na véspera de Tishá Be Av. Eles ficaram surpresos ao perceber que, por um ano e meio, o corpo havia permanecido intacto e nenhum estudo havia sido feito.

Esta história mostra como D'us faz as coisas acontecerem sem mostrar a Sua "face". Uma mulher passou para comprar bananas, naquele horário, naquele dia, com aquele vendedor, envoltas naquele velho jornal. Tudo para que Samuel Fishman z"l pudesse ter um enterro digno em um cemitério judaico.

Nesta semana lemos a Parashá Tetzavê (literalmente "Ordene"), que começa descrevendo as maravilhosas roupas que os Cohanim (sacerdotes) utilizavam para realizar os serviços do Mishkan (Templo Móvel). Já no final da Parashá, a Torá também fala sobre um dos principais serviços espirituais feitos no Mishkan: a oferenda dos Korbanót (sacrifícios). A palavra "Korban" vem da raiz "Karov", que significa "perto, próximo". Os Korbanót eram uma maneira de nos aproximarmos espiritualmente de D'us. Por exemplo, quando alguém comete uma transgressão, isto causa um imediato afastamento espiritual. Quando ainda existiam os Templos, a pessoa se arrependia e oferecia um Korban, reconstruindo assim seu relacionamento com D'us.

E ao final deste Shabat (11 de março) começamos a reviver Purim, uma festa muito alegre na qual recordamos o grande milagre da salvação do povo judeu das mãos dos nossos inimigos durante o Exílio Persa. O povo judeu estava se assimilando e começando a se afastar cada vez mais de seus objetivos espirituais. Foi neste cenário que Haman, um terrível Rashá (malvado), odiador dos judeus, começou a crescer e se tornou o principal ministro do rei Achashverosh. Haman aproveitou-se de sua influência e de seu poder para decretar a morte de todos os judeus. O decreto de morte, com data marcada para ocorrer no dia 13 de Adar, sacudiu o povo judeu de sua apatia espiritual. Eles entenderam seu desvio, se arrependeram de seus erros, rezaram e foram perdoados. A desgraça iminente se transformou em salvação e a tristeza se transformou em uma alegre comemoração da vitória do povo judeu sobre os seus inimigos. Normalmente a festa de Purim cai junto com a Parashá Tetzavê. Qual é a conexão entre as duas?

Logo no início do reinado do rei Achashverosh, ele quis demonstrar seu poder dando um enorme banquete, aberto a todos os súditos. Esta festa, na qual as conversas giravam em torno de promiscuidades e futilidades, certamente não era o ambiente adequado ao povo judeu. Mas apesar da proibição de Mordechai, o líder espiritual dos judeus, eles participaram desta festa e não escutaram o grande sábio da geração, deixando D'us aborrecido. Todo o decreto de morte foi uma consequência do mau comportamento do povo judeu. Quando os judeus se arrependeram, o decreto Celestial foi revogado e, como consequência, o decreto físico de morte dos judeus também foi revogado.

Porém, algo nos chama a atenção ao refletirmos sobre os detalhes da história de Purim. Por que foi necessário que D'us elevasse Haman a um cargo tão alto e desse a ele tanta honra e poder, como está escrito: "Depois destas coisas o rei Achashverosh engrandeceu Haman, o elevou e colocou sua cadeira acima de todos os ministros que estavam com ele" (Ester 3:1)? Se o propósito era apenas despertar o povo judeu, não era necessário elevar Haman, D'us poderia ter feito com que o próprio rei Achashverosh fizesse o decreto! Como a elevação de Haman, um completo Rashá, um homem que apenas buscava honra, poder e prazeres, está conectada com a salvação do povo judeu?

Explica o livro "Meam Loez", escrito por vários autores por volta do ano de 1730, que era necessário elevar Haman por um tempo limitado para que o povo judeu fizesse Teshuvá (se arrependesse e consertasse seus maus atos), e somente depois derrubá-lo e salvar os judeus. O Meam Loez está explicando dois aspectos interessantes sobre o crescimento meteórico de Haman. O primeiro aspecto é que D'us eleva os Reshaim antes de derrubá-los, como diz Shlomo HaMelech: "Antes da quebra, a grandeza" (Mishlei 16:18). De acordo com o Rav David Altshuler zt"l (século 18), mais conhecido por sua obra "Metsudat David", o Rashá é elevado e recebe honrarias e poder para que assim sua posterior queda seja muito mais dolorosa, como diz o ditado: "Quanto mais alto, maior é a queda".

Outro aspecto importante apontado pelo Meam Loez é o fato do povo judeu ter feito Teshuvá com a ascensão de Haman ao poder. Haman já era um conhecido odiador do povo judeu. O susto que foi causado aos judeus pelo fato de alguém tão perverso ter chegado a um cargo tão alto, com tanto poder e honra, certamente ajudou a despertar o coração adormecido deles. Em outras palavras, Haman foi apenas um fantoche, um instrumento nas mãos de D'us para trazer de volta o povo judeu que havia se desviado.

Há uma terceira e surpreendente resposta trazida pelo Rav Alexander Ziskind (Bielorússia, falecido em 1794), em sua famosa obra "Iessod VeShoresh Haavodá". Ele explica que podemos colocar no coração uma alegria especial ao refletirmos sobre o crescimento de Haman, pois estava de acordo com os decretos e a Supervisão Particular de D'us. E por que D'us fez isto? Para que o futuro milagre da salvação do povo judeu fosse ainda maior e mais divulgado no mundo inteiro. Através da elevação do grande inimigo e opressor do povo judeu, o Nome de D'us, que protege o povo judeu como um pastor que protege sua ovelha do ataque de 70 lobos, foi santificado entre todos os povos do mundo. Quanto mais Haman se elevou, quanto mais poder ele conseguiu, mais o Nome de D'us foi santificado. Toda a grandeza e honra alcançadas por Haman se voltou contra ele, pois a queda de Haman fez com que fosse sabido e difundido entre todos que realmente Haman não tinha nenhum poder verdadeiro e que é D'us o único que tem controle sobre tudo o que acontece.

Este ensinamento também nos foi transmitido por David Hamelech (Rei David): "O homem simplório não saberá nem o tolo entenderá isso. Quando os Reshaim desabrocham como grama e florescem aqueles que fazem o mal, é somente para destruí-los para sempre. E Você permanece para sempre nas alturas" (Tehilim 92:7-9). David Hamelech está nos ensinando que os tolos não conseguem perceber que D'us tem controle sobre tudo o que ocorre no mundo. Mesmo quando parece que os Reshaim têm sucesso, mesmo quando aparentemente eles têm poder e honra, é apenas uma preparação de D'us para destruí-los, não apenas no Mundo Vindouro, mas também neste mundo. E quando isto acontece, D'us eleva Seu nome. Portanto, quanto mais o Rashá se eleva, mais sua queda causa uma santificação do Nome de D'us.

Se pararmos para refletir sobre os acontecimentos da Meguilá, perceberemos que a subida meteórica de Haman teve ainda outro desenrolar importante para o povo judeu. Assim diz a Meguilá: "E o rei tirou o seu anel que tinha tirado de Haman e deu-o a Mordechai, e Ester deu a Mordechai o comando da casa de Haman" (Meguilat Esther 8:2). Mordechai foi elevado a ministro do rei e assumiu exatamente o mesmo posto de Haman. Isto quer dizer que, quanto mais Haman subiu, maior foi a "herança" recebida por Mordechai. O Midrash (parte da Torá Oral) explica, no versículo "Depois destas coisas, o rei Achashverosh engrandeceu Haman", que ao dar grandeza a Haman, D'us pensou: "Virá Haman, e o Rashá (malvado) apenas preparará, mas será o Tzadik (Justo) que vestirá. Virá Mordechai e pegará tudo dele e construirá o Beit Hamikdash". Justamente a grandeza dada a Mordechai após a morte de Haman fez com que ele fosse muito respeitado, trazendo aos judeus uma época de muita tranquilidade e liberdade.

Um dos motivos que normalmente Purim cai junto com a Parashá Tetzavê é que a Parashá termina falando sobre os Korbanót. D'us quer que Seu povo esteja sempre conectado com Ele. Infelizmente, se não nos conectamos através das Mitzvót e da nossa Avodat Hashem (Serviço Divino), D'us tem outras maneiras de nos despertar e de nos trazer de volta. Muitos dos sofrimentos que passamos na vida poderiam ter sido evitados se nos comportássemos da maneira correta. D'us quer a nossa proximidade e está sempre cuidando de nós com um carinho especial.

A história de Purim se repete constantemente. Em todas as gerações Reshaim se levantam para destruir o povo judeu, mas D'us sempre nos salva de todos eles. E D'us nos protege sem que Sua mão possa ser vista abertamente. Porém, quem procura nas entrelinhas da história encontra D'us manejando tudo o quer acontece a cada instante. Mesmo nas situações nas quais parece que os Reshaim estão crescendo, devemos confiar em D'us, pois tudo faz parte dos Seus planos. Até mesmo um pequeno detalhe, como o enterro honroso de um simples judeu, não passa despercebido pelos Seus olhos. E D'us tem muitos intermediários para cumprir a Sua vontade, como falamos todos os dias na nossa Tefilá (reza): "Muitos são os pensamentos no coração do homem, mas é a vontade de D'us que sempre se cumpre". Esta é a essência de Purim.
SHABAT SHALOM E PURIM SAMEACH

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

Ex. 27:20-30:10, Ez.43:10-27

sexta-feira, 3 de março de 2017

VENCENDO A PREGUIÇA - PARASHÁ TERUMÁ 5777

"Era uma vez um grande palheiro que ficava perto de uma aldeia. Vários animais de pequeno porte haviam construído suas casas naquele palheiro e ali habitavam de forma harmoniosa, sem serem molestados pelos seres humanos. Entre os habitantes daquele palheiro estavam três grandes amigos: o jabuti, a tartaruga e o esquilo. O esquilo era agitado e ágil, enquanto o jabuti e a tartaruga eram muito lentos e preguiçosos.

Certo dia, os três estavam conversando animadamente no palheiro quando, de repente, ouviram pessoas gritando: "Fogo! Fogo!". Muitos animais ficaram assustados e começaram a correr para salvar suas vidas. O jabuti não se incomodou, afirmando que estava tranquilo porque sabia mais de cem maneiras de lidar com o fogo. A tartaruga também não se preocupou e disse que sabia mais de mil maneiras de como acabar com um incêndio. Somente o esquilo percebeu o real perigo e, após tentar convencer seus amigos, fugiu para salvar sua vida. Enquanto todos os animais corriam, o jabuti e a tartaruga ficaram ali, discutindo e comparando seus conhecimentos sobre combate a incêndios.


Infelizmente, dos três amigos, o esquilo foi o único que sobreviveu ao incêndio."
Esta pequena fábula ilustra a terrível influência da preguiça em nossas vidas. O preguiçoso, mesmo diante de um terrível fogo, não toma atitudes. Ao invés de correr, de se movimentar, o preguiçoso procura justificativas lógicas para continuar parado. E é por isso que o preguiçoso acaba se queimando tanto na vida.

A Parashá desta semana, Terumá (literalmente "Porção"), descreve uma das realizações mais incríveis do povo judeu: a construção do Mishkan, o Templo Móvel que funcionava como "residência" da Presença Divina no meio do povo no deserto. O Mishkan foi construído com materiais nobres, que foram prontamente doados pelo povo, como está escrito: "E esta é a porção que você pegará deles: ouro, prata e cobre; lã turquesa, lã púrpura e lã escarlate; linho e pelo de cabra; couro de carneiro tingido de vermelho; couro de Tachash (animal multicolorido, já extinto); madeira de acácia; óleo para a iluminação, especiarias para o óleo da unção e para o incenso aromático; pedras de Shoham e pedras de preenchimento, para o Avental e para o Peitoral" (Shemot 25:3-7).

Há algo nesta lista que nos chama muito a atenção. Aparentemente a ordem dos materiais listados está de acordo com o seu valor monetário, começando com os metais mais preciosos e terminando com o óleo. Porém, no final da lista aparecem as pedras de Shoam e as pedras de preenchimento, que eram pedras preciosas de valor inestimável. Então por que, se tinham um valor tão alto, elas apareciam apenas no final da lista, como se fossem materiais sem valor?

Responde o Rav Chaim ben Atar zt"l (Marrocos, 1696 - Israel, 1743), mais conhecido como Ohr HaChaim Hakadosh, que os Nessiim, príncipes das tribos, as pessoas mais influentes e ricas do povo judeu, ao escutarem que o Mishkan seria construído com as doações do povo, disseram: "Deixe o povo doar o que eles puderem e tudo o que faltar nós completaremos". Porém, no final o plano deles deu errado, pois o povo doou com tanta alegria e entusiasmo que Moshé precisou até mesmo pedir para que as doações parassem de ser trazidas. Quando os Nessiim perceberam, todos os materiais já haviam sido doados e eles acabaram ficando de fora. D'us ficou muito aborrecido com o comportamento deles e castigou-os, fazendo com que a palavra "Nessiim", normalmente escrita com a letra "Iud", fosse escrita incompleta, sem a letra "Iud" (ver Shemot 35:27). Porém, ao perceber que os Nessiim estavam arrependidos do seu erro, D'us permitiu que eles trouxessem as pedras preciosas do Avental e do Peitoral, que faziam parte das roupas do Cohen Gadol (Sumo Sacerdote). Pelo fato da doação das pedras preciosas envolver algum tipo de transgressão, elas são mencionadas por último na lista de materiais doados ao Mishkan, pois apesar de seu grande valor material, a imperfeição espiritual da doação causou com que as pedras preciosas fossem inferiores aos outros materiais da lista.

Porém, ainda não está claro qual foi exatamente o erro dos Nessiim. Qualquer pessoa responsável pela captação de fundos de uma sinagoga ou de uma instituição filantrópica sonharia em escutar este tipo de oferta. Um doador que se dispõe a cobrir tudo o que falta parece ser uma pessoa muito caridosa, um verdadeiro Tzadik (Justo). Se o aborrecimento de D'us foi com o atraso das doações dos Nessiim, aparentemente eles adiaram suas doações com motivações nobres e compreensíveis. Qual foi exatamente o erro que eles cometeram? E se foi apenas um pequeno deslize, por que eles foram punidos de maneira tão dura por D'us.

Rashi (França, 1040 - 1105), no versículo no qual a palavra Nessiim aparece faltando o "Iud", nos traz a seguinte explicação: "Pelo fato dos Nessiim terem sido preguiçosos no início, eles perderam um "Yud" no seu nome". Rashi está trazendo uma explicação incrível, que demonstra que D'us vê inclusive os pensamentos mais íntimos do coração de cada ser humano. D'us revelou que, mesmo revestido por justificativas corretas, o argumento dos Nessiim era, na verdade, apenas uma desculpa. Embora os Nessiim estivessem justificando que não estavam levando imediatamente suas doações por motivos nobres, D'us sabia que no fundo o motivo era a preguiça.

O Rav Moshe Chaim Luzzatto zt"l (Itália, 1707 - Israel, 1746) explica em seu livro "Messilat Yesharim" (Caminho dos Justos) que mesmo os motivos aparentemente mais válidos para não assumirmos responsabilidades na vida normalmente não passam de desculpas que encobrem nossa preguiça e nosso desejo de não sair do lugar. Um exemplo impressionante que ilustra esta força do nosso Yetser Hará (mau instinto) é o livro "Chovot Halevavot" (Deveres do coração), uma das maiores obras de Mussar (Ética) já escritas, que certamente já teve uma incrível influência espiritual sobre dezenas de gerações de judeus. O Rav Bahya ibn Paquda (Espanha, início do século 11), autor do "Chovot Halevavot", detalhou na introdução do seu livro quantas dificuldades ele venceu para escrevê-lo. Uma das principais dificuldades foi que, depois de ter decidido escrever o livro, ele acabou mudando de ideia, baseando-se em uma série de motivos lógicos e aparentemente racionais. Por exemplo, ele imaginava que não tinha força nem entendimento suficientes para captar profundamente os ensinamentos da Torá e transmiti-los em um livro. Além disso, o livro deveria ser escrito em árabe, a língua que a grande maioria dos judeus falava na região em que ele vivia, porém ele não dominava um estilo elegante da escrita árabe. Ele também tinha medo de assumir a responsabilidade de uma difícil tarefa cuja consequência poderia ser a exposição pública de seus próprios defeitos e limitações. Por estes e outros motivos, o Rav Bahya decidiu abandonar o projeto. Os judeus de todas as gerações teriam perdido uma incrível fonte de ensinamentos espirituais.

O que levou o Rav Bahya a mudar de ideia e novamente investir em sua obra? Ele parou para refletir sobre sua decisão e chegou à conclusão que talvez suas motivações não estavam sendo completamente puras. Ele começou a suspeitar que havia escolhido a opção mais confortável, buscando apenas tranquilidade na vida. Ele chegou à conclusão que, por trás das razões aparentemente racionais, o que realmente havia motivado o cancelamento do projeto era o desejo de ficar parado na vida. Para o eterno benefício do povo judeu, ele acabou juntando forças, teve a coragem de encarar os desafios e, apesar das dificuldades, escreveu o "Chovot Halevavot". Não podemos nem imaginar o povo judeu desprovido das incríveis orientações espirituais contidas neste livro.

As razões do Rav Bahya para não escrever o livro pareciam realmente corretas e lógicas, mas ele conseguiu reconhecer, em sua grandeza espiritual, que eram razões "manchadas" pelo desejo de conforto na vida. Se alguém grande como o Rav Bahya estava sujeito às influências das nossas características negativas, em especial a preguiça, muito mais nós, em nosso nível espiritual tão baixo, devemos nos preocupar com os riscos de cairmos nas armadilhas da preguiça, um traço de caráter destruidor. Cada um de nós sempre tem razões aparentemente válidas e corretas para ignorar possíveis caminhos de melhoria na vida, mas devemos estar conscientes que, na grande maioria das vezes, é apenas a preguiça nos convencendo a ficarmos parados.

O Yetser Hará da preguiça é tão astuto que pode vir disfarçado de traços de caráter admiráveis, como a humildade. O Rav Moshe Feinstein zt"l (Lituânia, 1895 - EUA, 1986) nos ensina que temos a tendência comum de subestimarmos o nosso potencial, argumentando que temos poucos talentos e que não estamos destinados à grandeza espiritual. Mas o que parece humildade é, na verdade, o nosso Yetser Hará querendo nos enganar. Esta tendência de subestimar o nosso potencial vem da nossa preguiça, uma manifestação do nosso desejo por conforto. Atingir a grandeza espiritual requer muito esforço e disposição para encarar contratempos e até mesmo fracassos. Isto não é uma tarefa fácil, o que torna ainda mais tentador para a pessoa "se liberar" de suas responsabilidades na vida e escolher os caminhos mais fáceis e cômodos. Muitas "almas de ouro" do povo judeu podem simplesmente ter se apagado por terem se acomodado na vida.

Constantemente surgem oportunidades de crescimento e melhoria. Estas oportunidades servem para podermos crescer no nosso nível espiritual e também para influenciarmos positivamente outras pessoas em volta. A dura lição aprendida pelos Nessiim é eterna e também serve para cada um de nós. Talvez o mais poderoso fator que pode nos impedir de atingir a grandeza espiritual é o desejo pelo conforto, que deriva da preguiça. Isto faz com que a pessoa crie inúmeras razões para justificar a sua inabilidade de crescer tudo o que poderia. Foi por isso que D'us castigou os Nessiim de forma tão dura, para mostrar o quanto esta característica da preguiça é terrível e pode nos impedir de crescer e de cumprir o nosso objetivo na vida. O livro "Messilat Yesharim" nos ensina a identificar estas razões e justificativas como sendo "conselhos do Yetser Hará". Devemos, portanto, ignorá-las e continuar os nossos esforços para alcançar os nossos objetivos. Para vencer este terrível Yetser Hará, cada um precisa se esforçar, antes de tudo, para ser sincero consigo mesmo. Precisamos refletir e saber identificar quando realmente nossos argumentos são verdadeiros e quando são apenas desculpas para nos manter parados.

Viemos ao mundo material justamente para crescer, mas não há crescimento sem esforço. Fracassos são parte da vida, ninguém chega ao sucesso sem tropeços e dificuldades. Quando tentamos fazer nosso trabalho espiritual e surgem dificuldades, isto é um sinal de que estamos indo no caminho correto, pois o Yetser Hará está tentando nos impedir de alcançar nosso objetivo. Quando alguém está cavando em busca de um tesouro e bate com a pá em algo duro, é um sinal de que o tesouro está perto. O mesmo vale para a nossa vida, pois quando surgem grandes desafios e dificuldades, isto é um sinal de que o sucesso está muito perto.
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 25:1-27:19, 1 Rs. 5:12 -6:13