sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

EQUILÍBRIO - PARASHÁ TERUMÁ 5774


“O Rebe Avraham Mordechai Alter, mais conhecido como Imrei Emes (Polônia, 1866 - Israel, 1948), estava certa vez na sinagoga quando um dos frequentadores se aproximou e pediu a ele um Tefilin emprestado, pois havia perdido o seu e levaria algum tempo até que pudesse comprar um novo. O Rebe, sem pensar duas vezes, emprestou a ele um Tefilin. Mas não era um Tefilin qualquer, era um Tefilin extremamente valioso, que havia pertencido ao pai do Imrei Emes, o Rebe Yehudah Aryeh Leib Alter, mais conhecido como Sfas Emes (Polônia, 1847-1905), um homem de muita santidade. Aquele Tefilin tinha um valor inestimável, e as pessoas sabiam o quanto o Rebe era cuidadoso com ele. Um dos seus alunos, ao ver que o Rebe havia emprestado aquele Tefilin tão valioso, questionou por que ele não havia emprestado um Tefilin mais simples. O Rebe explicou:

- Está escrito na Torá: “Este é o meu D’us e eu farei para Ele uma Morada” (Shemot 15:2). Deste versículo aprendemos que quando fazemos uma Mitzvá, devemos fazê-la da melhor maneira possível. Este conceito não se aplica apenas nas Mitzvót diretamente relacionadas com D’us, mas também nas Mitzvót relacionadas com o próximo. Isto inclui o Chessed (bondade) que fazemos aos outros e, portanto, devemos fazê-lo da melhor maneira possível. Foi por isso que eu não emprestei a ele um Tefilin qualquer, eu fiz questão de emprestar o meu Tefilin mais valioso.”

O Imrei Emes entendeu que o conceito de embelezar as Mitzvót também se aplica no nosso relacionamento com o próximo. Da mesma maneira que queremos ser cuidadosos no nosso relacionamento com D’us, para que tudo seja feito da maneira mais adequada e minuciosa possível, assim também devemos ser cuidadosos no nosso relacionamento com as outras pessoas.

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Nesta semana lemos a Parashá Terumá, que nos ensina sobre os detalhes do Mishkan (Templo Móvel), uma construção com uma função muito nobre: ser o local de repouso da Presença Divina. Apesar de D’us estar presente em todos os lugares, o Mishkan era o lugar físico onde a Presença Divina podia ser sentida de uma maneira mais palpável. A Parashá descreve tanto a estrutura do Mishkan quanto seus utensílios, como a Menorá, a Shulchan (mesa de ouro) e o Mizbeach (altar de oferendas).

A estrutura do Mishkan era composta por tábuas de madeira apoiadas em bases de prata. As tábuas eram mantidas unidas por barras de madeira de acácia, como está escrito: “E a barra central passará por dentro das tábuas, de uma extremidade à outra” (Shemot 26:28). Esta barra central era de extrema importância, pois ajudava a dar estabilidade para toda a estrutura do Mishkan.

Explica o Targum Yonathan (tradução da Torá para o aramaico, de autoria do Rav Yonathan Ben Uziel, que viveu no 1º século da era comum) que esta barra central foi feita com a madeira da árvore que Avraham Avinu havia plantado para fazer bondade com as pessoas, como está escrito: “E plantou (Avraham) uma “Eshel” em Beer Sheva” (Bereshit 21:33). Por que esta árvore que Avraham plantou recebeu um papel tão importante no Mishkan, dando estabilidade para toda a estrutura? Qual a mensagem que a Torá está nos transmitindo?

Explica o Rav Nosson Tzvi Finkel, mais conhecido como Alter MiSlobodka (Lituânia, 1849 - Israel, 1927), que muitas vezes, mesmo querendo chegar à perfeição, o ser humano faz sua Avodat Hashem (Serviço Divino) de uma maneira desequilibrada, e isto o afasta do seu objetivo. Onde está este desequilíbrio? Normalmente damos atenção às Mitzvót que são “Bein Adam LaMakom” (entre o homem e D’us), mas acabamos esquecendo de dar a devida importância para as Mitzvót “Bein Adam LeHaveiró” (entre o homem e seu semelhante), e este desequilíbrio pode nos custar caro. O Alter Mi Slobodka adverte que no momento em que uma pessoa está cumprindo uma Mitzvá Bein Adam LaMakom, ela deve ser extremamente cuidadosa para não causar nenhum dano ou constrangimento às outras pessoas, pois se causar qualquer aborrecimento aos outros por falta de sensibilidade, ela corre o risco de perder mais do que ganhou com a Mitzvá.

Infelizmente existem muitas situações onde isto acontece, até mesmo dentro da sinagoga. Por exemplo, após a leitura pública da Torá, quando o Sefer Torá é reconduzido ao Aron Hakodesh, temos o costume de beijá-lo, como uma forma de dar Kavód (honra) e mostrar o quanto a Torá é querida para nós. Porém, pessoas que estão distantes do Sefer Torá acabam empurrando os outros para conseguirem chegar perto. Nossos sábios afirmam que este é um grande erro, pois evitar machucar e incomodar outras pessoas certamente se sobrepõe ao ato de beijar o Sefer Torá. Enquanto dar um beijo no Sefer Torá é apenas um embelezamento da Mitzvá, causar danos à outra pessoa é uma grave transgressão. Outro exemplo é a pessoa que, no momento de vestir seu Talit, não se importa com a pessoa de trás. Quando a pessoa joga o Talit para trás, os longos fios se transformam em um verdadeiro chicote, podendo machucar. É muito bonito ver como há pessoas preocupadas em cumprir a Mitzvá de vestir o Talit com Kavaná (intenção), mas nunca podemos esquecer, mesmo quando estamos cumprindo uma Mitzvá importante, que há outras pessoas à nossa volta.

Outra área em que vemos o desequilíbrio na Avodat Hashem é nas Chumrot (rigorosidades) que recebemos sobre nós. Em várias Mitzvót Bein Adam LaMakom a pessoa recebe sobre si vários níveis de rigorosidade. Um exemplo clássico é na área de Kashrut, na qual muitas pessoas decidem ser extremamente rigorosas, para se afastar de qualquer tipo de dúvida ou risco de comer algo que não seja Kasher. Esta é certamente uma atitude muito louvável, uma demonstração de temor a D’us. Mas será que esta pessoa também recebe sobre si as mesmas rigorosidades em relação às Mitzvót Bein Adam LeHaveiró? Ela verifica muito bem o que vai entrar na sua boca, mas será que ela verifica muito bem o que vai sair da sua boca? Será que ela pensa muitas vezes antes de dizer algo, para checar se não dirá nada que possa ofender ou machucar os outros?

Há um importante comentário do Ramban (Nachmânides, Espanha, 1194 - Israel, 1270), e muito conhecido por todos, sobre o versículo “Sejam sagrados” (Vayikrá 19:2). Ele ensina que daqui aprendemos que não é suficiente apenas cumprir as Mitzvót “ao pé da letra”. Para fazermos a nossa Avodat Hashem da maneira correta, devemos nos esforçar para atingir cada vez níveis maiores de proximidade com D’us, tentando melhorar a cada dia nossos atos. Mesmo as Mitzvót que nós já cumprimos, podemos tentar fazer um pouco melhor e de forma um pouco mais cuidadosa. Mas há outro comentário do Ramban que, apesar de ser igualmente importante, não é tão conhecido. Ele aprende do versículo “E você deve fazer o que é correto e bom aos olhos de D’us” (Devarim 6:18) que também no nosso relacionamento com as outras pessoas não devemos apenas cumprir a lei “ao pé da letra”, e sim fazer até mais do que é exigido de nós. Portanto, segundo o Ramban, para a pessoa realmente fazer a sua Avodat Hashem da maneira correta, antes de tudo ela deve perceber que D’us espera de nós que possamos tratar as pessoas com o máximo nível de sensibilidade.

Explica o Rav Zelig Pliskin que D’us exigiu que parte importante da sustentação do Mishkan fosse feita com as madeiras que Avraham Avinu plantou por bondade para nos lembrar de que, mesmo quando estamos fazendo nossa Avodat Hashem com o máximo empenho, mesmo que seja uma Mitzvá tão especial e sagrada quanto a construção do Mishkan, a Morada de D’us, não podemos esquecer de ter compaixão pelas outras pessoas, que foram criadas à imagem e semelhança Dele. A barra central do Mishkan é um lembrete eterno de que há dois pilares na nossa Avodat Hashem: Bein Adam LaMakom e Bein Adam LeHaveiró. O segredo para alcançar a perfeição é o equilíbrio, isto é, mesmo nos momentos de maior devoção a D’us, não se esquecer das nossas obrigações com as outras pessoas.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Ex. 25:1-27:19, 1 Re. 5:12 -6:13

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

AJUDANDO A ALIVIAR O PESO - PARASHÁ MISHPATIM 5774

Muitos estudantes da Yeshivá de Ponovitch, na cidade de Bnei Brak, estavam se preparando para ir ao casamento de um amigo em Jerusalém. Para facilitar, eles chamaram vários táxis e se dividiram em pequenos grupos. Um dos alunos convidou o Rav Elazar Man Shach (Lituânia, 1899 - Israel, 2001), o Rosh Yeshivá (Diretor espiritual), para ir com ele em um dos taxis. Quando o Rav Shach escutou que ainda havia mais um lugar sobrando, pediu que Yossi, um novo aluno da Yeshivá, também fosse convidado. Yossi, que havia vindo de fora de Israel, ainda não conhecia ninguém na Yeshivá e estava visivelmente deslocado.

Durante a viagem, que levou cerca de uma hora, o Rav Shach foi mostrando para Yossi vários pontos turísticos famosos, como a fábrica de cimento, a estrada velha e Latrun (Museu dos tanques de guerra). Um dos estudantes que estava no táxi, sabendo quanto o Rav Shach dava importância para o seu estudo de Torá, ficou incomodado de vê-lo “gastando tempo” sendo um guia turístico e decidiu fazer uma pergunta sobre o tratado do Talmud (Torá Oral) que eles estavam estudando na Yeshivá. O estudante achou que o Rav Shach ficaria muito agradecido por estar sendo “salvo” daquela perda de tempo. Porém, para sua surpresa, o Rav Shach respondeu:

- Me desculpe, você pode conversar comigo sobre o Talmud todos os dias na Yeshivá, mas neste exato momento eu prefiro que não, pois estou cumprindo a Mitzvá de “Achnassat Orchim” (receber um convidado). Este rapaz é novo na Yeshivá, ainda não conhece ninguém e, por isso, é nossa obrigação fazer de tudo para deixá-lo à vontade” (Retirado do livro “Major Impact”, de autoria de Dovid Kaplan).

O aluno do Rav Shach realmente conhecia o quanto ele dava valor para cada segundo de estudo de Torá. Mas talvez o que ele não conhecia era a grandeza do Rav Shach em se preocupar com os outros, mesmo nos pequenos detalhes. Foi isto o que fez do Rav Shach o maior rabino da geração.

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Nesta semana lemos a Parashá Mishpatim, que nos ensina muitas Mitzvót “Bein Adam Le Haveiró” (entre o homem e seu semelhante), como as leis sobre compensação de danos, a preocupação com os indefesos e abandonados e as leis que regulamentam o empréstimo de dinheiro. Estes ensinamentos são muito importantes, pois na maioria das vezes achamos que a espiritualidade é medida através de grandes atos de devoção a D’us, como fazer Mikvê (mergulho ritual) em águas congelantes, extensos jejuns e longos retiros espirituais. Mas a Parashá nos ensina que a espiritualidade é medida através dos pequenos atos do nosso cotidiano, em especial a forma como nos comportamos em relação aos nossos semelhantes.

Um dos ensinamentos mais impressionantes está no final da Parashá. D’us chamou Moshé, Aharon, os filhos mais velhos de Aharon (Nadav e Avihu) e 70 anciões do povo judeu, e se revelou a eles de uma maneira mais explícita, através de uma visão profética, como está escrito: “E eles visionaram o D’us de Israel, e debaixo de Seus pés havia como uma obra de tijolos de safira, tão límpida quanto a visão dos céus” (Shemot 24:10). Mas o que significa esta visão? Por que sob os pés de D’us havia tijolos de safira? E por que a visão termina falando sobre um céu límpido?

É importante lembrar que D’us é infinito e, portanto, não tem nenhuma forma física limitada, e não pode ser representado através de nenhuma imagem. Todas as vezes que a Torá atribui a D’us características físicas é apenas para que possamos aprender com os atos Dele e nos comportarmos como Ele. Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que o chão feito de tijolos de safira estava diante de D’us no momento da escravidão do Egito, para que Ele se lembrasse do sofrimento pelo qual passavam os judeus, em especial quando carregavam nas costas pesados tijolos durante os trabalhos forçados.

Porém, uma das premissas do judaísmo é que D’us é Onisciente. Ele precisava deixar tijolos para lembrar-se do sofrimento do povo judeu? Explica o Rav Yerucham Leibovitz (Bielorússia, 1873 – Israel, 1936) que D’us está nos ensinando que não é suficiente para uma pessoa apenas refletir e imaginar o sofrimento do seu companheiro. Ele quer que sejamos “Nossê Be Ól Haveiró” (carregar o peso junto com nosso companheiro), isto é, quando vemos alguém em dificuldade, devemos nos esforçar para ativamente aliviar seu sofrimento. E uma das pessoas que conseguiu aprimorar muito esta característica foi Moshé Rabeinu. Ele foi criado por Batia, filha do Faraó, e cresceu no palácio real, cercado por todos os tipos de luxo e comodidade, mas mesmo assim não se esqueceu dos seus irmãos, que estavam escravizados, como diz o versículo: “E cresceu Moshé, e foi ter com seus irmãos, e viu o sofrimento deles” (Shemot 2:11). Não era suficiente Moshé ter ficado em casa, imaginando os terríveis sofrimentos pelos quais seus irmãos estavam passando? Rashi explica que Moshé usou seus olhos e seu coração para sofrer junto com eles. Ele não ficou somente imaginando as dificuldades pelas quais eles passavam, ele saiu para vê-los e sentir a dor que eles sentiam.

Mas como explicou Rashi, somente os olhos não são suficientes para sentir de verdade a dor do próximo, é preciso usar o coração. Vemos pobres dormindo na rua, se alimentando de restos de lixo, e sentimos muito dó, mas continuamos nossas vidas como se nada estivesse acontecendo, pois apenas utilizamos nossos olhos, não nosso coração. Aquele que pensa que cumpre sua obrigação de “Nossê Be Ól Haveiró” apenas vendo uma pessoa sofrendo, sem se esforçar para sentir também o mesmo sofrimento, está apenas se enganando. Após Moshé ter usado seus olhos e seu coração, ele se uniu no sofrimento dos seus irmãos. O Midrash (parte da Torá Oral) diz que quando Moshé via algum judeu carregando uma carga muito pesada, ele oferecia seu ombro para dividir com ele o peso. Ele não fazia isso apenas para aliviar seu companheiro do peso que carregava, mas também para sentir na pele o sofrimento que seus irmãos sentiam. Moshé não ficou apenas olhando, seus olhos e seu coração o levaram a atitudes de bondade.

Explica o Rav Yerucham que mais difícil do que sentir o sofrimento do próximo é sentir de verdade a alegria do próximo. Por que a visão de D’us termina com as seguintes palavras: “límpida como a visão dos céus”? Quando D’us se revelou para este seleto grupo de judeus, isto causou uma alegria muito grande neles, como está escrito: “E eles viram D’us, e comeram e beberam” (Shemot 21:11). Segundo Unkelos (Roma, 35ec - Israel, 120ec), que traduziu toda a Torá para o aramaico, estas palavras significam que para eles a visão de D’us trouxe tanto prazer quanto os mais deliciosos prazeres físicos. D’us quis então demonstrar que estava feliz junto com eles, e fez isto através de uma visão iluminada, como um dia claro e cheio de luz, nos ensinando como é importante nos alegrarmos com as alegrias dos outros.

Estamos acostumados a ir a uma festa e ver os convidados felicitando o dono da festa com um sonoro “Mazal Tov”. À primeira vista parece que todos estão felizes, com um contagiante sorriso no rosto. Mas será que esta alegria externa das pessoas realmente reflete o que elas sentem de verdade em seus corações? Não é tão simples assim chegar ao nível de se alegrar com a alegria dos outros como se fosse a nossa própria alegria. Muitas vezes, mesmo de forma inconsciente, nossa alegria se mistura com um pouco de inveja, uma sensação de que aquela alegria poderia estar acontecendo conosco e não com o outro. Será que aquele “Mazal Tov” não é uma alegria apenas da boca para fora? Cada um de nós precisa ser sincero consigo mesmo, para saber o quanto conseguimos de verdade sentir a alegria do próximo, e o quanto ainda precisamos nos esforçar para melhorar nesta área.

Quando um comerciante se encontra com outro comerciante depois dos negócios, podem ocorrer três situações: se ele lucra e seu companheiro perde, ele fica muito feliz. Se os dois lucram ou perdem igualmente, ele fica triste. E se ele perde e seu companheiro lucra, ele fica imerso em terríveis sofrimentos. O Rav Yerucham nos ensina que, infelizmente, não há muita diferença entre o comportamento dos comerciantes e das pessoas que estão em um salão de festas. A alegria de uma pessoa é medida, portanto, de acordo com quanto ela ganha e quanto seu companheiro perde. Por isso é tão difícil sentir alegria de verdade quando é nosso companheiro, e não nós, que tem motivos para festejar.

Esta triste constatação é consequência da queda espiritual do ser humano. O maior problema é que nos enganamos e não sabemos o quanto chegamos a sentir até mesmo ódio no nosso coração por pessoas que achamos que nós amamos. O primeiro passo para melhorarmos é despertar e perceber o quanto estamos ainda longe do que D’us espera de nós. Precisamos superar o nosso egoísmo e nos alegrar com o que os outros têm, pois cada um recebe de D’us exatamente o que precisa para cumprir seu trabalho espiritual neste mundo. Precisamos usar mais o nosso coração para sentir a dor dos outros e ajudar no que for possível, para tentar ao menos aliviar um pouco a dor do próximo. Somente assim, através de um esforço constante, chegaremos ao nível verdadeiro de dividir com o próximo seus sofrimentos e suas alegrias.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
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Ex. 21:1-24:18, Je 34:8-22, 33:25-26
 
 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

ABRINDO OS OUVIDOS - PARASHÁ ITRÓ 5774


"Fábio era uma boa pessoa, tentava melhorar em todas as áreas da vida, mas havia algo que ele não conseguia mudar: seu egoísmo. Isto atrapalhava muito seus amigos e familiares, a ponto de muitos irem se queixar com o rabino da cidade sobre o seu comportamento. Após quebrar muito a cabeça, o rabino teve uma ideia de como ajudar Fábio a mudar sem deixá-lo chateado. Ele preparou um discurso inteiro falando das vantagens de fazer bondades com o próximo e o quanto era negativo ser uma pessoa egoísta. Mudando os nomes e alguns detalhes, o rabino queria ilustrar o discurso com as próprias situações que as pessoas haviam se queixado sobre Fábio, para ver se assim ele percebia que o discurso era para ele.

Quando chegou o Shabat, a sinagoga estava lotada. O rabino procurou e reconheceu Fábio sentado em uma das primeiras fileiras. Então ele começou seu discurso cheio de energia, emocionando as pessoas. Ele citou os exemplos de problemas que o egoísmo causa, e constantemente olhava para Fábio, tentando perceber se ele esboçava algum tipo de reação. E ele ficou muito contente ao perceber que Fábio escutava suas palavras com muito interesse. Para aumentar a sua felicidade, quando ele terminou o discurso, Fábio imediatamente se levantou e caminhou em sua direção. O rabino ficou esperançoso que Fábio havia entendido o recado e o estava procurando para pedir ajuda para mudar. Mas o que Fábio disse quase fez o rabino desmaiar. Com um grande sorriso no rosto, ele falou:

- Rabino, que belas palavras você falou hoje. Que discurso inspirado, me tocou profundamente. Coitado daqueles que são egoístas. Foi uma grande pena, pois um amigo meu, que era quem realmente precisava ter escutado estas palavras, infelizmente não pôde vir hoje. Rabino, acho bom você repetir este discurso para ele, pois ele é egoísta e precisa melhorar muito..."

Enquanto não aprendermos a escutar as críticas, enquanto sempre procurarmos os defeitos nos outros, esquecendo que primeiro devemos procurar em nós mesmos, estaremos perdendo excelentes oportunidades de melhorar e crescer espiritualmente.

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Nesta semana lemos a Parashá Itró, que traz dois assuntos muito importantes. O primeiro assunto é o reencontro de Moshé Rabeinu com seu sogro Itró no meio do deserto. Mas por que Itró foi procurar Moshé? A Parashá começa com as seguintes palavras: "E escutou Itró". Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que Itró escutou os eventos milagrosos da abertura do Mar Vermelho e da guerra contra o povo de Amalek, e por isso decidiu unir-se ao povo judeu. O segundo assunto é a entrega da Torá no Monte Sinai, que ocorreu depois da revelação de D'us diante de todo o povo judeu.

A entrega da Torá foi um evento que mudou o curso da história da humanidade, foi o que deu sentido para a criação do ser humano. Será que este evento tão grandioso não merecia uma Parashá inteira somente para ele? Por que o reencontro de Itró com Moshé precisou ser escrito na mesma Parashá da entrega da Torá? Além disso, segundo Rashi, Itró se uniu ao povo judeu somente depois da entrega da Torá. Então por que foi importante a Torá mencionar a vinda dele antes da entrega da Torá?

Explica o Rav Zev Leff que a conexão entre os dois assuntos nos ensina uma importante preparação para o recebimento da Torá. Há dois motivos pelos quais foi importante relatar a vinda de Itró antes da entrega da Torá. Em primeiro lugar, quando está escrito na Torá "E escutou Itró", parece que apenas ele escutou. Mas o Zohar (parte mística da Torá) afirma que todas as nações do mundo também escutaram sobre a abertura do mar e a guerra contra Amalek. Então qual foi a diferença entre Itró e o resto do mundo? Todas as pessoas escutaram o que aconteceu, mas continuaram suas vidas sem nenhum tipo de mudança ou busca pela verdade, enquanto Itró ouviu e internalizou as informações. Ele refletiu, procurou a verdade, e finalmente concluiu que deveria buscar a Torá.

Outro motivo para ensinar sobre a vinda de Itró está relacionado com a crítica que ele fez sobre o sistema que Moshé utilizava para julgar o povo. Moshé julgava sozinho o povo todo, cansando a si mesmo e as pessoas, que precisavam passar o dia esperando para serem atendidas. Itró sugeriu que Moshé não deveria ficar com todo o peso do julgamento sobre suas costas, ele deveria distribuir os julgamentos em tribunais menores, e somente os casos mais difíceis chegariam até ele. Moshé sabia que o sistema que ele utilizava era pesado para ele e para o povo, mas ele queria fazer com que as pessoas o procurassem quando houvesse alguma disputa, e assim ele aproveitaria o contato com as pessoas para ensinar a elas um pouco mais de Torá. Apesar de Itró ser um homem muito sábio, com uma grande bagagem acumulada com as buscas pela verdade que havia feito na vida, ele não chegava aos pés de Moshé. Além disso, Itró nunca havia sido exposto à sabedoria da Torá. Moshé poderia simplesmente ter escutado a sugestão de Itró e depois ter educadamente rejeitado, sem nem mesmo levá-la em consideração. Mas Moshé demonstrou sua grandeza ao escutar com atenção as palavras de Itró, que o levaram a uma reflexão mais profunda e à conclusão de que seu sogro estava certo. No final, Moshé Rabeinu acabou acatando a sugestão de Itró e mudou todo o sistema de justiça do povo judeu, cumprindo o que está escrito: "Quem é o sábio? Aquele que aprende de todas as pessoas" (Pirkei Avót 4:1).

Isto quer dizer que o motivo da Torá ter antecipado a vinda de Itró foi para nos ensinar uma das características mais importantes para que uma pessoa possa crescer espiritualmente: a capacidade de escutar o que os outros têm para dizer, principalmente se for uma crítica, algo que pode ser melhorado. Tanto Itró quanto Moshé demonstraram que seu crescimento espiritual somente foi possível pela capacidade que eles adquiriram de escutar de verdade.

Este mesmo ensinamento é repetido durante a entrega da Torá. Entre os milagres que aconteceram no Monte Sinai, um deles foi que os sentidos físicos das pessoas se alteraram, como está escrito: "E o povo inteiro viu os sons" (Shemot 20:15). Mas para que foi necessário este milagre? Explica o Rav Zev Leff que a audição não necessita de nenhuma preparação, pois os sons de todas as direções são recebidos pelo ouvido sem a necessidade de focar ou se virar para a direção de onde vem o som. Já a visão é mais seletiva, pois vemos apenas se abrimos os olhos e focamos em algum objeto ou paisagem. Quando D'us nos permitiu ver os sons, Ele estava nos ensinando uma preciosa lição: devemos escutar com o mesmo foco que utilizamos na visão. Muitos sons chegam aos nossos ouvidos, mas apenas aquele que aprende a focar sua audição consegue absorver as mensagens contidas em cada coisa que escutamos.

Uma das qualidades mais importantes para uma pessoa que quer crescer espiritualmente é saber escutar o que é dito para ela, principalmente em relação às críticas. Em geral temos a tendência de nos esquivar das críticas, atribuindo o que está sendo dito a outras pessoas. O próprio formato do ouvido nos ensina esta importante lição. A parte externa do ouvido tem o formato de um funil, e tem a função de trazer para a parte interna do ouvido os sons captados externamente. Isto nos ensina que quando escutamos uma crítica, devemos escutar como se tivesse sido dito diretamente para nós.

A Torá traz um exemplo das graves consequências de não querer escutar. Cain e Hevel (Abel) protagonizaram o primeiro assassinato da história da humanidade. Motivado pela inveja, Cain se levantou e matou seu irmão Hevel. Antes do assassinato, Cain e Hevel se encontraram no campo e conversaram, mas a Torá não conta qual foi o conteúdo da conversa. Ibn Ezra (Espanha, 1089 -1167), comentarista da Torá, explica que D'us havia dado uma bronca em Cain, como está escrito: "Se você melhorar, então você será perdoado, mas se não, o pecado estará na entrada, e sobre você estará o desejo, mas você pode controlá-lo" (Bereshit 4:7). Como a grande maioria das pessoas, ao invés de Cain escutar a bronca de D'us, ele achou que era para os outros, não para ele. Como só havia Hevel, ele entendeu então que a bronca era para Hevel, e repetiu-a para ele. Uma discussão se iniciou e terminou com o primeiro assassinato da história. Tudo porque Cain, ao invés de escutar a crítica, preferiu achar que ela era para os outros.

Temos uma tendência natural de achar que estamos sempre certos, e ficamos cegos em relação ao que não condiz com nossa opinião. Moshé, Itró e todos os outros que chegaram à grandeza espiritual certamente adquiriram a capacidade de escutar. O Midrash (parte da Torá Oral) afirma que há aqueles que escutam e perdem, e há aqueles que escutam e lucram. Escutar corretamente as coisas é a chave para o sucesso. Antes mesmo de escutarmos no Monte Sinai "E disse D'us", a Torá nos ensinou o que significa escutar. Pois a menos que haja um ouvido que escute, mesmo as mensagens mais poderosas, vindas diretamente de D'us, acabarão se perdendo para sempre.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 18:1-20:26, Is. 6:1-7:6; 9:6-7
 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A FORÇA DE UM BOM ATO - PARASHÁ BESHALACH 5774

Daniel certa vez procurou seu rabino para fazer uma pergunta que o incomodava muito. Ele queria saber por que valia a pena se esforçar tanto para fazer boas ações, se mais cedo ou mais tarde acabaria fazendo alguma transgressão e colocaria tudo a perder. O rabino respondeu com uma interessante comparação:
- Meu querido Daniel, imagine se você estivesse em um lugar onde há uma paisagem de tirar o fôlego. Então você não resiste e tira uma bela fotografia, que depois é colocada em uma linda moldura. Se você fosse ao mercado vender, quanto você acha que conseguiria por ela? Talvez uns 30 ou 40 reais no máximo.
- Porém o que aconteceria - continuou o rabino - se você fosse ao mesmo lugar, visse a mesma paisagem, mas ao invés de fotografa-la, você pegasse uma tela, passasse o mês inteiro pintando a cena de forma artística e depois emoldurasse. Se você fosse ao mercado, poderia vender esta tela por mais de mil reais. Porém, não é estranha esta diferença de valores? A fotografia é muito mais perfeita, contém cada pequeno detalhe da paisagem, enquanto a pintura, apesar da beleza, capta apenas algumas partes da cena. Sabe por que esta diferença de valores? Pois na verdade é o esforço que conta.
- Esta é a resposta para sua pergunta - concluiu o rabino - os anjos têm a perfeição da fotografia, nunca cometem transgressões. Mas a perfeição deles não tem tanto valor aos olhos de D'us, pois vem sem esforço. Já os seres humanos são imperfeitos. Apesar das coisas boas que fazemos, ocasionalmente também cometemos erros, mas é o nosso esforço para melhorar que nos torna tão preciosos aos olhos de D'us.
Daniel saiu de lá feliz. Ele entendeu que as transgressões, apesar de serem graves, não apagavam os méritos de seus bons atos. Por isso valia a pena se esforçar para crescer um pouco mais a cada dia.

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Na Parashá desta semana, Beshalach, após a praga que matou todos os primogênitos egípcios, o povo judeu finalmente saiu do Egito, como está escrito: "E eis que, quando o Faraó enviou o povo (judeu)" (Shemot 13:17). Mas sabemos que o povo judeu foi libertado diretamente por D'us, e não pelo Faraó. Então por que está escrito "quando o Faraó enviou", como se o Faraó tivesse feito um ato de bondade conosco?

Responde o Midrash (parte da Torá Oral) que o Faraó, no momento em que os judeus estavam saindo do Egito, deu alguns passos para acompanhá-los. O Midrash vai além e afirma que, por estes poucos passos, além do mérito de ter sido escrito na Torá que foi o Faraó que enviou o povo judeu para a liberdade, os egípcios também meritaram a Mitzvá de "Não abominarás o egípcio, pois você foi um estrangeiro na terra dele" (Devarim 23:8).

Mas este Midrash desperta muitos questionamentos. Aquele mesmo Faraó havia negado D'us ao dizer "Quem é Hashem para que eu escute Sua voz?" (Shemot 5:2). Ele também havia endurecido seu coração mesmo com as terríveis pragas que D'us mandou sobre o Egito. Além disso, ele havia permitido a saída do povo judeu somente motivado pelo medo de morrer, já que ele também era um primogênito. Como pode ser que uma pessoa assim tão ruim conseguiu causar um "ruído" tão grande nos mundos espirituais, a ponto da Torá gravar para sempre o mérito dele ter acompanhado o povo judeu na saída do Egito? E mais ainda, como pode ser que, por ter dado alguns passos, o Faraó tenha meritado uma Mitzvá na Torá, apesar de todas as maldades que ele fez?

Responde o Rav Yehuda Leib Chassman (Lituânia,1869 - Israel, 1935) que este Midrash está nos ensinando um importante fundamento, que nos ajuda a perceber como cada pequeno ato pode ter consequências espirituais muito grandes em nossas vidas. Na criação do ser humano está escrito: "E D'us criou o ser humano do pó da terra, e soprou em seu nariz uma alma de vida" (Bereshit 2:7). Este versículo não quer dizer apenas que o ser humano é composto de duas forças, uma espiritual, representada pela alma soprada por D'us, e uma material, representada pelo pó da terra. O versículo também nos ensina que cada ato e cada pensamento do ser humano contém estas duas forças, isto é, uma parte física e uma parte espiritual. A nossa alma é parte de D'us, e da mesma forma que Ele é ilimitado e eterno, a alma que Ele soprou dentro de nós também é ilimitada e eterna. Apesar de não conseguirmos captar com o nosso entendimento limitado o conceito de "eternidade", uma vez que o mundo material tem fim e limite, de qualquer maneira este conceito existe no mundo espiritual.

Explica o Rav Chassman que quando uma pessoa faz um ato, este ato sobe aos mundos espirituais e é dividido em incontáveis pedaços, para que D'us possa indicar quais partes do ato são mais elevadas e pertencem à alma e quais partes são mais baixas e pertencem ao corpo. Apenas D'us, em Sua sabedoria ilimitada, pode fazer este tipo de avaliação, tão precisa e minuciosa. Nenhum detalhe passa em branco, nenhuma informação é perdida.

Portanto, até mesmo um Rashá (malvado) como o Faraó, que endureceu seu coração e não queria libertar o povo judeu, quando surgiu em seu coração uma pequena faísca de bondade e ele quis libertar o povo judeu, a ponto de até mesmo acompanhá-los com alguns passos, isto revelou um pequeno pedaço de bondade escondida dentro de incontáveis partes de maldade absoluta. E mesmo este ínfimo pedaço não passou despercebido aos olhos de D'us, pois por ser uma parcela espiritual e eterna, este pedaço cresceu e aumentou até que seu brilho fez com que as palavras "o Faraó enviou o povo" fossem gravadas para sempre na Torá, e também trouxe méritos para que D'us nos ordenasse a Mitzvá de "Não abominarás o egípcio". Como o Faraó despertou em seu coração uma fagulha espiritual eterna, então ele meritou, Midá Kenegued Midá (medida por medida), uma recompensa eterna.

Daqui aprendemos a força espiritual de um bom ato ou um bom pensamento. Se apenas uma fagulha de bondade no coração do Faraó conseguiu despertar uma força espiritual tão grandiosa, qual será então a recompensa de uma pessoa que dedica sua vida a fazer bons atos e a cumprir a vontade de D'us? Apesar de não podermos captar a real dimensão do que ocorrerá nos mundos espirituais, fica claro, através deste ensinamento da Parashá, o quanto vale a pena nos esforçarmos para melhorar um pouco mais a cada dia, aperfeiçoando nossos atos e nossas características. Até mesmo a vontade e o esforço de fazer o que é correto, apesar das dificuldades, é levado em consideração.

Por outro lado, temos um potencial tão grande que, se não aproveitado, pode ter consequências desastrosas. No final da Parashá está descrito o primeiro encontro do povo judeu com Amalek, nosso maior inimigo, o povo descendente de Essav. A maldade de Amalek é tanta que temos uma Mitzvá especial de apagar do mundo qualquer lembrança sua, como está escrito: "Eu vou certamente apagar a lembrança de Amalek sob os céus... D'us mantém uma guerra contra Amalek, de geração em geração" (Shemot 17:14,16). Por que um castigo tão duro para o povo de Amalek, uma guerra eterna contra eles?

D'us escreveu sobre Amalek justamente nesta Parashá, onde está descrita a recompensa eterna do Faraó, para nos ensinar que, diferente do Faraó, que conseguiu despertar no seu coração pelo menos uma fagulha de bondade, os Amalekim representam a total falta de boas características e de Emuná (fé). Seus atos são tão baixos, tão negativos, tão destrutivos, que não resta nem mesmo uma fagulha de espiritualidade. Pelo fato do povo de Amalek tentar apagar do mundo a espiritualidade, que é eterna, então D'us castigou-o, Midá Kenegued Midá, com a Mitzvá de apagar a memória de Amalek e guerrear contra ele para sempre. Ao trazer o assunto de Amalek a Torá quis ressaltar que, apesar de todo o potencial de bondade que o ser humano tem, o mau uso do nosso livre arbítrio pode nos fazer afundar em maldades e aumentar nossas transgressões a ponto de destruir qualquer espiritualidade nos nossos atos, apagando a luz da nossa alma.

D'us não despreza nenhum bom ato, nem mesmo um bom pensamento. Ele vê as nossas dificuldades e o nosso esforço. Mesmo quando fracassamos, Ele sabe quando tentamos de verdade. Por isso, não podemos desistir, apesar de às vezes o trabalho parecer difícil demais. Se ao menos tentarmos, com todas as nossas forças, assim estaremos garantindo que, mesmo dentro de um fracasso, haverá muitos sucessos.

SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 13:17-17:16, Jz. 4:4-5:31

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O VALOR DE CADA UM - PARASHÁ BÔ 5774


"O Rav Shlomo Heimann (Bielorússia, 1892 – EUA, 1945) era um dos professores da Yeshivá Torá Vadaat, nos Estados Unidos, e dava diariamente aula para um grupo enorme de alunos, com mais de cem estudantes. Ele era muito conhecido pela sua energia e entusiasmo, conseguindo prender a atenção de todos os alunos, mesmo com a sala de aula completamente lotada.

Certo dia, uma pesada nevasca caiu na cidade, bloqueando as ruas e impossibilitando as pessoas de se locomoverem. Somente quatro alunos conseguiram vencer a neve e chegar à Yeshivá. Apesar disso, o Rav Heimann deu sua aula com a mesma energia e entusiasmo de sempre, como se a sala estivesse com uma centena de alunos escutando. Um dos seus alunos, ao final da aula, perguntou:


- Rav, se você estava dando aula para apenas quatro alunos, por que precisou gastar tantas energias, gritando e gesticulando como se estivesse diante de centenas de alunos?

- Não estava dando aula para apenas quatro alunos – respondeu o Rav Heimann – Mas para vocês, seus filhos, netos, e todos os futuros descendentes e alunos que sairão de vocês. Por isso, a sala não estava vazia, ao contrário, ela estava bem cheia..."

O valor de uma pessoa não é medido apenas por ela mesma, mas também por todos os descendentes que virão futuramente. Portanto, cada um faz muita diferença, como ensinam nossos sábios: "Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro"

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Na Parashá desta semana, Bô, D'us mandou as últimas três pragas, devastando completamente o Egito e acabando de vez com a resistência do Faraó, que finalmente concordou em libertar o povo judeu. As pragas atingiram somente os egípcios e seus bens, mas os judeus, que viviam na cidade de Goshen, não foram atingidos, como está escrito: "Havia uma escuridão espessa em toda a terra do Egito por três dias... E para os Filhos de Israel havia luz em suas moradias". (Shemot 10:22,23).

Porém, nossos sábios ensinam que a praga da escuridão sim afetou de certa maneira o povo judeu. Rashi (França, 1040 - 1105), citando um Midrash (parte da Torá Oral), afirma que apenas um quinto do povo judeu saiu do Egito, conforme está escrito no versículo "Os filhos de Israel estavam armados quando saíram do Egito" (Shemot 13:18). A palavra "armados", que em hebraico é "chamushim", também significa "um quinto". O que aconteceu com os outros quatro quintos do povo? Morreram e foram enterrados durante a praga da escuridão, para que os egípcios não percebessem e não achassem que os judeus também estavam sendo atingidos pelas pragas.

Mas este Midrash citado pelo Rashi desperta muitos questionamentos. Em primeiro lugar, a Torá diz que havia 600 mil homens no Monte Sinai no momento da entrega da Torá. Considerando também as mulheres e as crianças, chegamos à conclusão de que mais de 3 milhões de judeus saíram do Egito. Segundo o Midrash, isto representava apenas 20% do povo e, portanto, havia mais de 15 milhões de judeus no Egito. A escravidão, que durou 210 anos, começou logo depois da morte dos filhos de Yaacov. Se Yaacov havia ido ao Egito com apenas 70 pessoas, como pode ser que em tão pouco tempo já havia 15 milhões de judeus no Egito? Além disso, se morreram 12 milhões de judeus durante a praga da escuridão, este evento teve consequências muito mais terríveis para o povo judeu do que todos os castigos que os egípcios receberam nas 10 pragas. Afinal, quem estava sendo castigado, o povo judeu ou os egípcios? E finalmente, se os judeus morreram durante a praga da escuridão justamente para que os egípcios não percebessem, será que adiantou? Os egípcios não notaram o sumiço repentino de 12 milhões de judeus, se sobraram apenas 3 milhões?

Responde o Rav Shimon Shwab que o Midrash não deve ser entendido de forma literal. Na verdade, durante a praga da escuridão, apenas um número pequeno de judeus morreu. Provavelmente eram judeus muito Reshaim (malvados), que não tinham o mérito para serem salvos do Egito e se tornarem parte do povo judeu, somente uma minoria. Mas então por que o Midrash diz que um número tão grande de judeus morreu? Pois o Midrash não está levando em conta apenas os poucos judeus que efetivamente morreram no Egito, mas também todos os seus descendentes, milhões de pessoas que sairiam deles nas futuras gerações.

Porém, se estes poucos que morreram eram pessoas tão ruins, que não mereciam nem mesmo fazer parte do povo judeu por estarem completamente afastados de D'us, então por que o Midrash dá tanta ênfase aos seus futuros descendentes? Para nos ensinar que a perda de cada judeu é causa de uma dor ilimitada para D'us, não importa o quanto este judeu esteja afastado dos caminhos corretos. Mais do que a dor pela perda da própria pessoa é a dor pela perda dos futuros Tzadikim (Justos) que estariam entre os descendentes desta pessoa, e que se perderam para sempre.

Este conceito também pode ser visto no primeiro assassinato da história. Após Cain ter matado seu irmão Hevel (Abel), D'us falou para ele: "O que você fez? As vozes dos sangues do seu irmão estão gritando por Mim a partir da terra" (Bereshit 4:10). Por que está escrito "as vozes dos sangues", ao invés de "a voz do sangue"? O Talmud (Sanhedrin 37a) responde que não apenas o sangue derramado de Hevel gritava por D'us, mas também o sangue de todos os seus potenciais descendentes, que nunca chegariam a viver. Isto quer dizer que o crime hediondo de Cain não foi apenas assassinar uma única pessoa, mas destruir o potencial dos milhões de descendentes que sairiam dele.

Moshé também conhecia bem este conceito. Quando ele viu um egípcio covardemente golpeando um judeu, com intenção de matá-lo, Moshé se levantou para protegeu a vida de seu irmão judeu. Ele então matou o egípcio, como está escrito: "Ele olhou para um lado e para o outro lado e não viu nenhum homem, e então ele golpeou o egípcio e o enterrou na areia" (Shemot 2:12). Rashi explica que as palavras "olhou para um lado e para o outro e não viu nenhum homem" significa que Moshé viu, através de seu elevado nível profético, que daquele egípcio não sairia nenhum descendente Tzadik. Isto quer dizer que se houvesse apenas um descendente Tzadik que sairia daquele egípcio, talvez Moshé teria poupado a vida dele.

É por isso que o Holocausto foi uma tragédia tão grande para o povo judeu, pois os nazistas não mataram apenas seis milhões de judeus, eles assassinaram incontáveis milhões de vidas inocentes, isto é, todos os potenciais descendentes dos judeus assassinados que nunca viverão.

O Rav Yonathan Guefen faz uma pergunta interessante: se o Midrash demonstra a dor que devemos sentir pela morte de alguns Reshaim, em especial pela destruição de suas futuras descendências, como devemos nos sentir com a situação atual do povo judeu, quando nosso inimigo não é mais um holocausto físico, mas um holocausto espiritual silencioso, chamado "assimilação"? Diferente do Egito, hoje praticamente não existem mais pessoas no nível de serem chamados de Reshaim, mas há milhões de judeus que, educados em casas completamente laicas, cresceram desconectados dos valores da Torá e acabaram perdendo a sua conexão com o judaísmo através de casamentos mistos. Não é apenas o próprio judaísmo da pessoa que se perde com a assimilação, mas também o judaísmo de todos os milhões de futuros descendentes que provavelmente não terão a oportunidade de se conectar com a Torá.

Muito dizem que não é necessário se preocupar com a assimilação, pois apesar das altíssimas taxas de casamentos mistos, que em alguns lugares chega a alarmantes 80%, está profetizado que o povo judeu sempre vai existir, em todas as épocas, até a chegada do Mashiach. Mas este é um pensamento completamente equivocado, pois apesar das profecias garantirem que o povo judeu será eterno, devemos chorar e nos enlutar por cada judeu que se perde, tanto por ele quanto por todos os seus potenciais descendentes que se perderão.

Da mesma forma que nem todo o povo judeu participou da redenção do Egito, infelizmente nem todos terão o mérito de participar da Redenção Final, nos dias do Mashiach. É por isso que cada alma importa muito, e não devemos medir esforços para ajudar a trazer de volta as pessoas mais afastadas do nosso povo. Qualquer esforço vale, nem que seja para trazer de volta apenas um único judeu.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Ex. 10:1-13:16, Je 46:13-28