sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

UM POUCO MAIS DE SENSIBILIDADE - PARASHÁ VAERÁ 5774


"Carlos era uma pessoa simples. Teve uma infância muito pobre, mas batalhou na vida e conseguiu dar boas condições para sua família. Apesar de nunca ter estudado, conseguiu mandar seu filho para uma boa universidade fora do país. Certo dia, chegou em seu escritório um telegrama do seu filho, mas como ele não sabia ler, pediu para que um dos seus funcionários lesse. O funcionário, que havia crescido em uma casa muito abastada, leu o telegrama sem nenhuma sensibilidade, quase aos gritos:

- Pai, terminou meu dinheiro!!! Não tenho dinheiro nem mais para comer ou comprar roupas!!! Preciso de dinheiro urgente!!!

Carlos ficou muito irritado com o descaramento do filho. Jogou o telegrama sobre a mesa e decidiu que não mandaria nem mesmo um centavo ao filho. Ele que aprendesse a ser mais educado.

No dia seguinte, sua esposa passou no escritório e viu o telegrama sobre a mesa. Ela, que também tinha tido uma infância dura, com muitas privações, começou a ler e se emocionou muito:

- Pai, terminou meu dinheiro – e começou a chorar – Não tenho dinheiro nem mais para comer ou comprar roupas – Parou mais uma vez para chorar e finalizou – Preciso de dinheiro urgente...

A mãe mal conseguiu terminar de ler a carta, de tão emocionada. Carlos, ao escutar, falou:

- Já que agora ele está pedindo de maneira tão educada, com certeza vou mandar tudo o que ele precisa..."


A piada pode ser engraçada, mas a falta de sensibilidade com as necessidades do próximo não tem graça nenhuma. Temos que trabalhar muito para desenvolver nossa sensibilidade, a ponto de conseguirmos sentir de verdade o que o outro precisa.


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Na Parashá desta semana, Vaerá, após o Faraó ter se recusado a deixar o povo judeu sair em liberdade, D'us começou a demonstrar a Sua força através das terríveis pragas que devastaram completamente o Egito. Mas D'us não falava diretamente com o Faraó, e sim através de intermediários, como está escrito: "D'us falou com Moshé e Aharon e comandou a eles em relação aos Filhos de Israel e em relação ao Faraó, rei do Egito, para tirar os Filhos de Israel da terra do Egito" (Shemot 6:13). Mas o que significa este versículo? Podemos entender que D'us comandou ao Faraó que libertasse os judeus da escravidão, mas o que D'us comandou ao povo judeu em relação à sua própria libertação?

Explica o Talmud Yerushalmi (Rosh Hashaná 3:5) que o versículo está nos ensinando que os judeus, no momento de sua libertação, receberam um mandamento, a Mitzvá de "Shiloach HaEved". Que Mitzvá é esta? Havia algumas situações em que um judeu poderia se tornar escravo de outro judeu. Por exemplo, se alguém roubava e não tinha dinheiro para devolver o roubo, ele era vendido como escravo e o dinheiro da venda era utilizado para pagar a dívida. Porém, esta escravidão era apenas temporária, pois no ano de Shmitá (ano de descanso das terras em Israel, que ocorre a cada sete anos), os proprietários dos escravos tinham a Mitzvá de libertá-los. Este conceito também é mencionado nas palavras do profeta Irmiahu: "Assim disse Hashem, D'us de Israel: Eu fiz um pacto com seus antepassados no dia em que Eu os retirei do Egito, da casa da escravidão, dizendo: 'No final de sete anos, cada pessoa deve libertar seu irmão judeu'" (Irmiahu 34:13). Estas palavras enfatizam que a Mitzvá de "Shiloach HaEved" foi entregue no momento da libertação dos judeus.

Porém, esta explicação do Talmud Yerushalmi e as palavras do profeta Irmiahu despertam questionamentos. Em primeiro lugar, a Mitzvá de "Shiloach HaEved" somente se aplicava quando estava em vigor a Mitzvá do Yovel (Jubileu), que ocorria a cada 50 anos, ao fim de sete ciclos de Shmitá. Porém, a Mitzvá de Yovel somente começou a vigorar depois que o povo judeu conquistou e dividiu a Terra de Israel entre as tribos, anos depois da morte de Moshé. Portanto, por que D'us achou necessário nos ordenar esta Mitzvá antes mesmo da entrega da Torá no Monte Sinai? Algumas Mitzvót, como o Shabat, foram entregues antes do Monte Sinai para que o povo judeu pudesse cumpri-las imediatamente, mas por que a urgência na Mitzvá de "Shiloach HaEved", se de qualquer maneira ela só poderia ser cumprida depois?

Além disso, ensinam os nossos sábios que o decreto do primeiro exílio do povo judeu foi selado justamente pelo povo ter abandonado a Mitzvá de "Shiloach HaEved". Entendemos que D'us se aborrece quando não cumprimos Suas Mitzvót, mas o que há de tão especial nesta Mitzvá, cujo descumprimento resultou em um castigo tão duro?

Explica o Rav Chaim Shmulevitz (Lituânia, 1902 - Israel, 1979) que antes de tudo precisamos sentir o quanto era difícil para o povo judeu cumprir a Mitzvá de "Shiloach HaEved". Temos que imaginar como se sentia uma pessoa que havia se acostumado, durante sete anos, com o escravo que ele havia adquirido, e o quanto ele dependia do trabalho deste escravo. Por isso, quando chegava o ano de Shmitá, era um teste muito difícil para as pessoas libertarem seus escravos. Porém, por outro lado, as pessoas não podiam esquecer que o escravo não estava contente com a sua situação e desejava muito ser libertado. Ele contava os dias que faltavam para tirar de suas costas o terrível peso da escravidão. Portanto, o que significa que as pessoas deixaram de cumprir a Mitzvá de "Shiloach HaEved"? Que elas se tornaram egoístas, começaram a pensar apenas nas suas próprias necessidades, ignorando os sofrimentos e o sonho de liberdade dos escravos.

Mas se esta Mitzvá era tão difícil de ser cumprida, pelo apego que os donos tinham com seus escravos, por que D'us foi tão duro quando o povo judeu deixou de cumpri-la? Pois D'us havia nos comandado a Mitzvá de "Shiloach HaEved" justamente quando saímos do Egito, da "casa da escravidão", no momento em que estávamos sentindo na própria pele a alegria da grande libertação. Este momento, em que saímos da escravidão para a liberdade, da escuridão para a luz, era o momento ideal para aprender e guardar para sempre a Mitzvá de libertar os escravos, mesmo que o cumprimento dela só ocorreria muitos anos depois. D'us queria aproveitar aquele sentimento, vivenciado pelo povo inteiro, para deixar para sempre a marca nos nossos corações. Ele nos ensinou que, da mesma maneira que estávamos nos sentindo eufóricos com a nossa libertação, assim também futuramente deveríamos ter a sensibilidade com os nossos escravos, que queriam muito voltar para casa, e este sentimento deveria nos ajudar a vencer a dificuldade de libertá-los. D'us foi tão rigoroso no nosso castigo pelo fato de termos sentido na pele o peso da escravidão e mesmo assim não termos nos importado com o sofrimento dos escravos. E mesmo se nós não sentimos pessoalmente, nós relembramos todos os anos, em especial no Seder de Pessach, o quanto foi pesada a nossa escravidão no Egito. Isto deveria ter aberto o coração do povo judeu em todas as gerações.

Desta Parashá aprendemos o quanto D'us exige que sejamos sensíveis com as pessoas que estão passando por dificuldades e sofrimentos. Como chegar neste nível e vencer o nosso egoísmo? Uma das Mitzvót mais importantes da Torá é "Ame ao teu próximo como a ti mesmo" (Vayikrá 19:18). O nosso sábio Hilel (Babilônia, 110 a.e.c – Israel, 10 e.c) explicou esta Mitzvá de uma maneira mais prática: "Não faça aos outros o que você não gosta que te façam". Refletindo sobre as coisas que nos incomodam e nos causam sofrimento, desenvolveremos nossa sensibilidade com os outros. É importante sempre tentar sentir a dor do próximo, mas é ainda mais importante entender a dor dos outros quando nós já passamos pela mesma dificuldade e sentimos, na nossa própria pele, o quanto doeu.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Ex. 6:2-9:35, Ez. 28:25-29:21

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

LUTANDO CONTRA D'US - PARASHÁ SHEMOT 5774

Há cerca de 200 anos viveu um homem temente a D'us, chamado Sr. Moshe Soloveitchik. Como ele havia herdado uma grande fortuna dos seus pais, e entre os bens estavam gigantescas florestas, decidiu entrar no ramo madeireiro, cortando árvores e vendendo com um bom lucro. Na época, a madeira era muito necessária, tanto para cozinhar quanto para o aquecimento das casas no rigoroso inverno europeu.

O Sr. Moshe também era uma pessoa de bom coração. Ele não media esforços para ajudar os necessitados. Sua casa estava com as portas sempre abertas para os pobres, e ele sustentava com alegria muitas instituições de Torá. Porém, por causa dos seus negócios, ele não podia dedicar muito tempo para o estudo da Torá, apesar de gostar muito.

Mas apesar de tanta filantropia, um dia os negócios começaram a desandar e o Sr. Moshe perdeu toda sua fortuna. Todos questionaram como um homem tão caridoso poderia perder de repente toda a sua fortuna. Até mesmo o Rav Chaim Vologziner (Lituânia, 1749 - 1821), o maior rabino da geração, que era muito próximo do Sr. Moshe, se preocupou e convocou algumas pessoas para investigarem as causas espirituais de tamanha perda financeira. Talvez o Sr. Moshe estivesse fazendo transações ilegais, por isso eles foram diretamente procurar nos livros de contabilidade, mas absolutamente nada, nem mesmo uma única transação suspeita, foi encontrada. A única falha que eles encontraram foi que o Sr. Moshe doava para caridade muito mais do que 20% dos seus lucros, ultrapassando o limite permitido pela Halachá (Lei Judaica). Mas o Rav Chaim Vologziner imediatamente rechaçou a hipótese, pois era inaceitável que D'us puniria de forma tão dura uma pessoa por ter um coração tão caridoso.

O que aconteceu após o Sr. Moshe perder todo o seu dinheiro? Ele poderia ter trabalhado dia e noite até reconstruir sua fortuna, de uma forma obstinada e sem limites. Mas ele fez diferente. Ele aceitou a vontade Divina e, agora que lhe sobrava tempo, foi para o Beit Midrash (Centro de estudos de Torá) se dedicar exclusivamente ao estudo da Torá. Pouco a pouco ele revelou talentos ocultos e foi avançando firmemente, até se tornar um dos maiores estudantes de Torá de sua cidade. O Sr. Moshe Soloveitchik, um homem de negócios com poucos conhecimentos de Torá, tornou-se em poucos anos o Rav Moshe Soloveitchik. Com o tempo, ele assumiu o posto de "Av Beit Din" (Chefe do Tribunal Rabínico) da cidade de Kovno. Ele encorajou seus filhos a seguirem seus passos e eles aceitaram o desafio, tornando-se também pessoas muito sábias. Começava então a dinastia dos "Brisk Rav", que encheu o mundo de sabedoria da Torá. Desta dinastia saíram gigantes de Torá como o Beit HaLevi (1820 - 1892), o Rav Chaim Soloveitchik (1853 - 1919) e o Brisker Rav (1886 – 1959).

Somente muito tempo depois o Rav Chaim Vologziner entendeu porque o Rav Moshe Soloveitchik havia perdido toda sua fortuna de uma só vez. Suas ocupações com os negócios não deixavam ele se ocupar com seu maior potencial: o estudo da Torá. D'us então removeu o que o impedia de crescer, abrindo o caminho para que o mundo se enchesse um pouco mais com a luz da Torá.
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Nesta semana começamos o segundo livro da Torá, Shemot. E a Parashá da semana, Shemot, começa a descrever a terrível escravidão do povo judeu no Egito. Um dos piores sofrimentos pelos quais o povo judeu passou foi quando os astrólogos do Faraó previram que estava para nascer o salvador do povo judeu. O Faraó fez grandes esforços para impedir a vinda deste salvador, incluindo o decreto de que todo bebê que nascesse fosse atirado no rio Nilo. O Rav Yaacov Kanievsky, mais conhecido como Steipler (Ucrânia, 1899 – Israel, 1985), ressalta a ironia dos eventos que sucederam o decreto do Faraó. Para salvar a vida de Moshé, sua mãe Yocheved o colocou em uma cesta à deriva no rio Nilo. E ninguém menos do que Batia, a filha do Faraó, encontrou a cesta onde estava Moshé e decidiu criá-lo. Isto quer dizer que o Faraó fez todos os esforços possíveis para matar o salvador do povo judeu, mas acabou criando e alimentando-o em seu próprio palácio.

Explica o Steipler que daqui aprendemos um importante fundamento: quando D'us decreta algo, é impossível mudar Seus planos, mesmo com os maiores esforços. O Faraó se equivocou, achando que seus atos seriam suficientes para mudar o que estava decretado nos mundos espirituais. Ele quis que sua vontade se cumprisse à força, pois vivia na ilusão de que tinha o controle de tudo.

Infelizmente muitas vezes nós também nos comportamos como o Faraó e achamos que temos o controle de tudo. Somos teimosos a ponto de colocarmos nossas forças e energias para tentar mudar decretos Divinos. Um exemplo é na área da nossa Parnassá (sustento). Ensina o Talmud (parte da Torá Oral) que todos os ganhos e perdas de uma pessoa são decretados em Rosh Hashaná. Porém, o que fazemos quando nossa fonte de sustento diminui? Dobramos os nossos esforços, trabalhamos até mais tarde, nos finais de semana, abandonamos nossas famílias. Será que funciona? Será que não estamos fazendo exatamente o que o Faraó fez, lutando contra algo que D'us decretou?

Então o que fazer quando passamos por dificuldades, como uma perda financeira? Explica o Rav Yonathan Guefen que devemos fazer apenas o que é considerado um esforço "normal", isto é, que não ultrapasse os limites do bom senso. Dedicar nosso tempo para recuperar o dinheiro perdido à custa de todo o resto certamente não é o caminho correto. Por exemplo, quando acontece uma grande crise econômica, qual é a primeira coisa que as pessoas cortam nos seus gastos? A Tsedaká (caridade). Será que não deveríamos fazer justamente o contrário? Ao invés de diminuir nossos méritos espirituais, não deveríamos tentar aumentá-los, para conseguir reverter o mau decreto? Será que as perdas não podem ter sido um sinal de que não estamos dando atenção para as coisas mais importantes da nossa vida, como nossos valores espirituais e nossas famílias?

Por que é tão fácil se enganar e cair neste erro de lutar contra os decretos Divinos? Pois quando fazemos um esforço e obtemos bons resultados, achamos que somos nós os responsáveis pelo sucesso, esquecendo que tudo passa pela Supervisão Divina. Por exemplo, uma pessoa compra ações da bolsa e logo depois estas ações sobem muito, resultando em um excelente lucro. Normalmente pensamos que o lucro foi o resultado do esforço, a consequência de um investimento correto. Mas isto é uma forma enganosa de ver a realidade. Na verdade, já estava decretado nos mundos espirituais que a pessoa deveria receber aquele dinheiro. D'us tem muitas formas para cumprir a Sua vontade e fazer com que este dinheiro chegue às mãos daquela pessoa. Ele pode colocar na cabeça da pessoa a ideia de investir justamente nas ações que futuramente subiriam, ou pode fazer com que as ações que a pessoa comprou mudem seu comportamento e subam. No final, o lucro já havia sido decretado, e o esforço foi somente para fazer o decreto Divino se cumprir. Qualquer esforço adicional teria sido em vão, e até mesmo negativo caso a pessoa tivesse deixado de lado coisas mais importantes apenas para receber aquele dinheiro que já estava decretado.

Mas explica o Steipler que há algo que pode efetivamente causar mudanças nos decretos espirituais: os esforços espirituais. Através da Tefilá (reza) e da Teshuvá (arrependimento pelos erros cometidos) podemos interferir nos mundos espirituais. Nem sempre é possível cancelar decretos Divinos, mas quando mudamos nossos atos, podemos ao menos diminuir o impacto de decretos negativos em nossas vidas. Por exemplo, se foi decretado para um agricultor que, por causa de alguma transgressão que ele cometeu, apenas uma pequena quantidade de chuva vai cair durante o ano em sua plantação, o que causaria um tremendo prejuízo, a Tefilá pode fazer com que esta pequena quantidade de chuva caia no lugar certo e de forma mais propícia. Outra possibilidade é que mesmo se em Rosh Hashaná for decretado para uma pessoa, por causa do seu baixo nível espiritual naquele momento, apenas uma pequena quantia de dinheiro para o ano, a Teshuvá pode fazer com que ela consiga se saciar mesmo recebendo pouco.

Porém, não podemos esquecer que, apesar do crescimento espiritual ajudar a reverter problemas financeiros e diminuir outros tipos de sofrimentos e dificuldades, o principal benefício do nosso crescimento espiritual, através da Tefilá, da Teshuvá e do cumprimento das Mitzvót, é nos aproximarmos de D'us. Muitas pessoas, como o Rav Moshe Soloveitchik, aproveitaram as dificuldades para crescer em espiritualidade, ao invés de se afundarem de maneira desesperada no mundo material.

É muito difícil encarar as dificuldades de forma positiva. Mesmo sabendo que é a vontade de D'us que sempre se cumpre, é difícil não querer fazer esforços para mudar as coisas para que fiquem do nosso jeito. Mas temos que saber que cada desafio é uma oportunidade de mudar a direção de nossas vidas. Cada dificuldade é uma comunicação de D'us, que quer que ao menos possamos parar para escutá-Lo. Com muita reflexão, poderemos chegar ao nível de entender que não apenas a vontade de D'us sempre se cumpre, mas que também a vontade Dele é o melhor para nós.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
ÊXODO l:1-6:1, Is. 27:6-28:13, 29:22-23, At. 7:17-29

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

ESCRAVOS OU HOMENS LIVRES? - PARASHÁ VAIEHI 5774

"Biniamin estava no leito de morte, cercado pelos familiares mais próximos. Ele já não tinha mais forças nem mesmo para abrir os olhos. Com muito esforço ele perguntou:

- Sara, minha querida esposa, você está aqui?

- Sim, meu querido. Estou aqui ao seu lado – respondeu Sara.

- E você, minha filha Rivkale, também está aqui? – perguntou Biniamin.

- Sim papai, estou aqui – respondeu Rivkale.

- E você, meu filho Yankele, está aqui? – perguntou Biniamin.

- Sim, papai, estou – respondeu Yankele.

Juntando todas as forças, Biniamin conseguiu levantar a cabeça e, desesperado, perguntou:

- Meu D'us, se estão todos aqui, quem está tomando conta da lojinha???"

Pode parecer brincadeira, mas será que muitas vezes nós também não trocamos momentos preciosos de espiritualidade por preocupações com o mundo material?

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Com a Parashá desta semana, Vaiehi, terminamos o primeiro livro da Torá, Bereshit. Yaacov, ao sentir que sua morte se aproximava, reuniu todos os filhos e falou suas últimas palavras para cada um deles. E nossos sábios explicam que muitas das palavras de Yaacov foram profecias que se cumpriram durante nossa história.

Mas não apenas com as palavras escritas na Torá nós aprendemos lições para nossas vidas. Por exemplo, há um ensinamento muito interessante nesta Parashá que demonstra como cada pequeno detalhe da Torá carrega consigo preciosos ensinamentos. Existem muitas regras de como um Sefer Torá deve ser escrito, e uma delas é o espaçamento mínimo entre duas Parashiót, que deve ser de nove letras. Porém, este padrão não é seguido na nossa Parashá, e esta distância mínima não é cumprida. Explica Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, que justamente por causa desta diferença esta Parashá é chamada de "Stumá" (fechada), e foi escrita assim para nos ensinar que depois da morte de Yaacov, os olhos e os corações dos judeus se fecharam por causa das dificuldades da escravidão. Isto significa que, segundo Rashi, a escravidão do povo judeu no Egito começou imediatamente depois da morte de Yaacov.

Mas aparentemente este comentário do Rashi é contraditório com algo que ele mesmo comentou quando explicou o versículo "os anos da vida de Levi foram 137 anos" (Shemot 6:16). Rashi questiona o motivo de a Torá ter relatado a idade de falecimento de Levi, algo aparentemente desnecessário, e responde que esta informação é necessária para calcular a data de início da escravidão do povo judeu, uma vez que a escravidão somente começou após a morte de Levi, o último dos filhos de Yaacov a falecer. Como entender esta aparente contradição nos comentários do Rashi? Afinal, quando a escravidão do povo judeu começou, após a morte de Yaacov ou somente algum tempo depois, após a morte de Levi?

Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta está nas palavras do Shemá Israel. No terceiro parágrafo está escrito: "Não sigam seus corações nem seus olhos, atrás dos quais vocês se desviam" (Bamidbar 15:39). Rashi explica que os olhos e o coração são os espiões que fazem o corpo pecar, pois os olhos veem, o coração deseja e corpo comete a transgressão. Mas será que D'us criou estes órgãos tão importantes apenas com propósitos negativos?

Quando D'us nos deu o livre arbítrio, Ele deixou em nossas mãos a escolha de como utilizar as ferramentas existentes no mundo material, entre elas o nosso próprio corpo. Podemos escolher como vamos utilizar a energia do nosso coração e dos nossos olhos. Se o foco da pessoa e sua motivação são os desejos do seu corpo, seus órgãos funcionam como um combustível para estes desejos, levando-a para o caminho das transgressões. Por outro lado, se a pessoa foca na sua alma e no seu crescimento espiritual, cada parte do seu corpo será utilizada como um auxílio no cumprimento das suas metas espirituais.

A pessoa que vive focada apenas nas suas necessidades materiais acaba cegando seus olhos e fechando seu coração para o lado espiritual. Como ela foca apenas no mundo material, se torna uma pessoa egoísta e não consegue mais perceber as necessidades do próximo. Já a pessoa que foca seus esforços no seu crescimento espiritual consegue abrir seus olhos e seu coração, despertando uma sensibilidade espiritual que estava anteriormente dormente. Esta sensibilidade faz com que ela consiga se preocupar mais com o próximo e com as necessidades alheias.

Além do comodismo e da busca desequilibrada dos desejos, há outras influências externas que podem ter como consequência uma maior conexão com o mundo material. Por exemplo, quando uma pessoa se sente em perigo por estar sendo fisicamente ameaçada, isto ativa uma necessidade natural de preservação do seu corpo. Esta atitude de autopreservação leva a pessoa a focar nas necessidades do corpo, e muitas vezes negligenciar as necessidades da alma. Embora a escravidão física do povo judeu não tenha começado efetivamente até a morte de Levi, o povo judeu começou a sentir o perigo iminente da opressão egípcia logo depois da morte de Yaacov. Enquanto Yaacov estava vivo, os judeus estavam tranquilos, pois os egípcios o respeitavam muito. Um dos motivos pelos quais Yaacov não quis ser enterrado no Egito foi para que o seu túmulo não se tornasse um local de idolatria egípcia. Mas quando ele faleceu, uma enorme dúvida pairou no ar. O que seria do povo judeu sem os méritos de Yaacov? Esta sensação de insegurança despertou no povo judeu uma necessidade de autopreservação. Como eles começaram a se focar fortemente em seu bem-estar físico, iniciou-se um processo de perda de sensibilidade espiritual, e com isso seus olhos e corações se fecharam.

A palavra "Mitzraim", que significa "Egito", também é a mesma raiz da palavra "Metzarim", que significa "limitações". Apesar da escravidão do Egito ter sido uma escravidão física, com trabalhos pesados e muito sofrimento, também foi uma escravidão espiritual, pois nos desconectou do nosso foco correto, limitou nossa espiritualidade e nos conectou ao materialismo, aos desejos e à percepção enganosa de que o nosso corpo é o principal. Esta terrível escravidão espiritual começou muitos anos antes da escravidão física. Começou logo depois da morte de Yaacov, quando os olhos e corações do povo judeu se fecharam para a espiritualidade.

Quando a pessoa está sob uma escravidão física, ela tem consciência de sua situação e está constantemente desejando escapar. Mas a escravidão espiritual é muito mais difícil, pois a maioria dos que estão escravizados nem mesmo sabem disso. Não apenas a geração dos filhos e netos de Yaacov foi submetida a este teste, mas nós também estamos constantemente sendo testados. Vivemos em uma geração onde o valor das pessoas é proporcional às suas posses. Onde um jogador de futebol ganha milhares de dólares por mês, enquanto um professor recebe um salário mínimo. Onde cada vez mais se busca a satisfação imediata dos nossos desejos, mesmo que seja através de atos de traição, roubo e enganação. Comemos sem limites, sem se importar com os efeitos nocivos de uma alimentação desequilibrada sobre nossa saúde. Bebemos sem moderação, sem levar em conta as futuras consequências. Somos escravos e nem mesmo percebemos o quanto somos completamente controlados por nossos desejos.

Quanto mais a pessoa foca na satisfação imediata dos seus desejos, mais ela fica presa ao seu materialismo. A solução, portanto, é focar mais na nossa espiritualidade e na valorização das pessoas pelo que elas são, não pelo que elas têm.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Gn. 47:28-50:26, 1 Rs. 2:1-12, 1 Pe. 1:3-9
 
 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

CUIDADO COM A HONRA DOS OUTROS - PARASHÁ VAYIGASH 5774


O Rav Elazar Man Shach (Lituânia, 1899 - Israel, 2001), um dos maiores sábios da geração passada, era frequentemente visitado por um jovem emocionalmente desequilibrado. Toda vez que o rapaz se sentia triste ou deprimido, ele procurava o Rav Shach, que o recebia com alegria e passava horas sentado com ele, tranquilizando-o. Certa vez um familiar do Rav Shach, incomodado com o fato de ele dedicar tanto tempo para este rapaz, disse:

- Rav, não há um limite de quanto você deve ajudar outras pessoas? Se você fosse uma pessoa normal, com tempo sobrando, eu entenderia. Mas você é um dos grandes rabinos da geração, você não tem um minuto sobrando nem para você mesmo. Você não acha que deveria proibir este rapaz de vir aqui e dedicar seu precioso tempo para o seu próprio crescimento espiritual?

- Este rapaz tem sérios problemas psiquiátricos – respondeu o Rav Shach. Ele veio me visitar mês passado, e veio novamente há duas semanas. Certamente ele estará de volta em duas semanas, e também daqui a um mês. Eu o encorajo, eu o acalmo, mas vejo que isso não é suficiente para curá-lo. Certamente é um caso no qual a cura somente virá através de um milagre, diretamente das mãos de D'us.

- Mas então por que você se esforça tanto, conversando intermináveis horas com ele? – insistiu o familiar.

- Pois eu acredito que D'us fará um milagre acima das leis da natureza apenas se nós também nos esforçarmos acima das leis da natureza. É por isso que, apesar de ter uma vida tão corrida, eu faço minha parte dedicando bastante tempo a este rapaz. Pois eu acredito que ele merece uma cura completa da sua doença, e isto vem antes do meu próprio bem estar.


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Na Parashá desta semana, Vayigash, a Torá descreve o feliz desfecho da história de Yossef e o emocionante reencontro com Yaacov, seu pai, depois de 22 anos de separação, como está escrito: "E Yossef preparou sua carruagem e subiu ao encontro de seu pai Israel em Goshen. Ele apresentou-se diante dele, e atirou-se sobre seu pescoço e chorou muito sobre seu pescoço" (Bereshit 46:29). Depois disso, Yaacov ainda viveu mais 17 anos no Egito, até o seu falecimento.

Yossef, que era apenas um jovem imaturo quando foi vendido como escravo por seus irmãos, aos 17 anos, agora havia se tornado o vice rei do Egito e tinha em suas mãos muito poder, como está escrito no final da Parashá: "E fez o povo (egípcio) trocar de cidades, de um extremo ao outro extremo das fronteiras" (Bereshit 47:21). Yossef obrigou todos os egípcios a saírem de suas casas e mudarem de cidade, até que ninguém mais permanecesse no mesmo lugar em que vivia anteriormente. Por que ele fez isto? O Faraó havia sonhado que viriam sete anos de fartura e sete anos de fome, e Yossef aconselhou-o a armazenar comida durante os anos de fartura. Quando chegaram os anos de fome, as pessoas precisaram vender até mesmo suas terras para poder comprar comida. Assim, todas as terras do Egito passaram a ser propriedade do Faraó. Portanto, um dos motivos pelo qual Yossef mudou os egípcios de cidade foi para que ficasse claro que as terras não pertenciam mais a eles.

Mas sabemos que a Torá é um livro de ensinamentos para nossa vida e, portanto, nenhuma informação foi escrita desnecessariamente. Se a atitude de Yossef tivesse apenas motivações administrativas, não haveria necessidade da Torá nos contar este detalhe. Então por que a Torá quis ensinar que Yossef mudou todas as pessoas de lugar no Egito?

Explica Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, que o versículo foi escrito para louvar um excelente traço de caráter desenvolvido por Yossef. Apesar do final feliz, Yossef poderia ter guardado muito rancor dos seus irmãos por terem-no vendido como escravo ao Egito. Tendo tanto poder, Yossef poderia até mesmo ter se vingado deles. Mas Yossef conseguiu perdoar seus irmãos e chegou ao nível de colocar seu poder em risco apenas para cuidar da honra deles. Quando Yossef mudou as pessoas de uma cidade para outra, sua verdadeira intenção era que seus irmãos não fossem vistos como "os exilados". Yossef fez com que todos os egípcios também se transformassem em exilados, tirando dos irmãos este "rótulo" negativo. Yossef poderia ter causado uma rebelião popular, poderia perder seu cargo caso o Faraó não gostasse de sua atitude. Apesar disso, Yossef não mediu esforços para poupar a honra dos irmãos.

E esta não foi a única vez em que Yossef demonstrou este cuidado com a honra dos irmãos. No momento de se revelar para eles, Yossef sabia que seus irmãos sentiriam vergonha. Por isso, ele pediu para que todos os egípcios saíssem do salão, inclusive os homens da sua guarda pessoal, colocando sua própria vida em risco para não envergonhar publicamente seus irmãos. Também sempre que Yossef resolvia problemas de ordem pública, ele o fazia em seu gabinete. Mas quando ele quis aplicar seu plano para testar se seus irmãos estavam arrependidos de tê-lo vendido, ele recebeu-os na sua própria casa, e não no seu gabinete, para não humilha-los em público.

Há um Midrash (parte da Torá Oral) que ensina algo ainda mais impressionante sobre esta característica de Yossef. O Midrash afirma que durante os 17 anos em que seu pai esteve no Egito, Yossef não o procurou, pois não queria ficar sozinho com ele. Mas esta informação do Midrash é um pouco estranha, pois a Torá descreve o enorme amor que havia entre Yaacov e Yossef, o seu filho preferido. Eles estavam há 22 anos separados, certamente estavam com muitas saudades um do outro, teriam muito o que conversar. Além disso, Yossef poderia ter crescido muito estudando com seu pai, poderia ter alcançado níveis espirituais muito mais elevados. Então por que Yossef não procurou Yaacov durante todos estes anos? Pois Yossef sabia que se ficasse sozinho com seu pai, Yaacov perguntaria como ele havia chegado ao Egito, e Yossef precisaria contar sobre a sua venda. Para não envergonhar seus irmãos, Yossef abriu mão do amor que sentia pelo pai e do seu próprio crescimento espiritual.

Até onde vai a obrigação de se preocupar com a honra do próximo? Se prestarmos atenção no versículo que descreve o reencontro entre Yaacov e Yossef, há algo que nos chama a atenção. Explica o Talmud (Tratado de Kalá, capítulo 3) que quando Yossef e seu pai se reencontraram, Yaacov não o beijou. Por que? Pois ele suspeitava que Yossef, um homem extremamente bonito, havia se impurificado com as mulheres egípcias durante os anos em que esteve sozinho no Egito. Yossef, que era muito sábio, rapidamente entendeu o motivo pelo qual seu pai, que o amava tanto, não o havia beijado. Yossef tinha, portanto, mais um importante motivo para ter procurado seu pai durante aqueles anos. Yossef poderia se explicar para ele, poderia provar que se manteve o tempo inteiro em um nível espiritual elevado. Se Yossef tivesse contado para o pai todos os testes que havia vencido, como quando fugiu das investidas da bela esposa do Potifar, certamente Yaacov teria mudado de opinião sobre seu filho. Apesar de tudo isso, Yossef nunca foi procurar seu pai. Ele preferiu ficar com a sua própria honra manchada e sob suspeita de ter cometido graves transgressões apenas para poupar seus irmãos. Daqui vemos que para Yossef, a honra dos seus irmãos estava acima da sua própria honra.

Aprendemos de Yossef o quanto devemos nos esforçar para cuidarmos da honra dos outros. Quando uma pessoa não se importa com a honra dos outros, pode acabar cometendo algumas das piores transgressões da Torá, como falar Lashon Hará (maledicência sobre o próximo) ou humilhar alguém em público, que é considerada pelos nossos sábios algo tão grave quanto o assassinato.

Esta característica de Yossef também foi ensinada pelos nossos sábios: "Que a honra do seu companheiro seja tão preciosa para você quanto a sua própria honra" (Pirkei Avót 2:10). Da mesma maneira que não gostamos de ser humilhados, principalmente em público, também devemos tomar muito cuidado com a honra dos outros. Apesar de vermos o esforço de Yossef para cuidar da honra de seus irmãos, muitas vezes, mesmo sem más intenções, nos descuidamos e acabamos humilhando outras pessoas. Atitudes aparentemente inofensivas, como contar uma piada que denigre os outros ou dar apelidos pejorativos, podem causar muito sofrimento. Por isso, temos que ser muito mais cuidadosos e sempre pensar bastante antes de falar. Assim estaremos garantindo que nunca estaremos desrespeitando outras pessoas.

"Quem é a pessoa honrada? Aquele que honra e respeita as outras pessoas" (Pirkei Avót 4:1).

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
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Gn. 44:18-47:27, Ez. 37:15-28, Lc. 6:9-16