sábado, 29 de agosto de 2015

SACRIFÍCIO PELOS FILHOS - PARASHAT KI TETSE 5775

Certa vez Yaacov (nome fictício) foi falar com o Rav Elazar Menachem Man Shach zt"l (Lituânia, 1899 - Israel, 2001), Rosh Yeshivá (Diretor espiritual) da Yeshivá de Ponovich, em Bnei Brak. Ele tinha uma interessante pergunta em relação à Mitzvá de "Kibud Av Ve Em" (honrar os pais):

- Rav, nesta semana meu pai me pediu para que eu parasse de fumar. Eu tenho obrigação de escutá-lo?
- Não entendi sua pergunta - respondeu o Rav Shach - É óbvio que você tem o dever de escutá-lo, por causa da Mitzvá de "Kibud Av Ve Em"!
- Mas Rav - insistiu Yaacov - eu já fumo há muitos anos, e será um enorme sacrifício conseguir parar de fumar. Por isso eu estou perguntando se realmente eu preciso escutar meu pai...
- Como você pode considerar a possibilidade de não escutar seu pai apenas pelo fato de ele ter pedido algo difícil? Você acha que isto te isenta da obrigação de escutá-lo? - questionou o Rav Shach - Eu já fui fumante, sei o quanto é difícil parar de fumar. Mas a verdade é que milhares de dificuldades como esta não chegam nem a um milésimo do que nós devemos aos nossos pais. Ao invés de pensar no sacrifício que você terá que fazer pelo seu pai, você alguma vez já parou para pensar quantos sacrifícios ele já fez por você na vida?

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Nesta semana lemos a Parasha Ki Tetse, que traz uma das Mitzvót mais enigmáticas da Torá: o "Shiloach HaKen". Se uma pessoa encontra um ninho de pássaro e a mãe está lá, cuidando dos seus ovos ou dos seus pequenos filhotes, a Torá proíbe a pessoa de pegar a mãe junto com os ovos ou os filhotes. O correto é primeiro espantar a mãe, garantindo sua liberdade, e somente depois pegar os ovos ou os filhotes. Mas qual é a lógica desta Mitzvá?
Há alguns detalhes que tornam esta Mitzvá ainda mais interessante e enigmática. Por exemplo, a Torá descreve explicitamente a recompensa daqueles que a cumprem: "Para que seja bom para você e seus dias se prolonguem" (Devarim 22:7). Mas por que uma recompensa tão grande, de prolongamento da vida, para uma Mitzvá aparentemente tão simples, de espantar um pássaro do seu ninho? Qual mensagem D'us quer nos transmitir ao valorizar tanto esta Mitzvá?
 
Além disso, a Torá detalha as 613 Mitzvót que D'us nos comandou no Monte Sinai, sendo que 248 delas são Mitzvót positivas (Mitzvót que devemos ativamente cumprir, como fazer o Brit Milá no 8º dia de vida de um bebê ou colocar Tefilin) e 365 são Mitzvót negativas (Transgressões que devemos evitar, como o "Não matarás" e o "Não roubarás"). As Mitzvót negativas normalmente têm o seu castigo explicitamente escrito na Torá, mas as recompensas das Mitzvót positivas não estão escritas. As duas únicas exceções em toda a Torá são as Mitzvót de "Shiloach HaKen" e "Kibud Av ve Em", pois apesar de serem Mitzvót positivas, suas recompensas estão explícitas na Torá.
Ao observarmos as recompensas explícitas destas duas Mitzvót positivas, algo nos chama ainda mais a atenção: a recompensa das duas Mitzvót é exatamente a mesma. Enquanto em relação ao "Shiloach HaKen" está escrito "Para que seja bom para você e seus dias se prolonguem" (Devarim 22:6,7)", em relação ao "Kibud Av Ve Em" está escrito "Para que se prolonguem seus dias" (Shemot 20:12). Porém, estas parecem ser Mitzvót muito diferentes e sem nenhum tipo de vínculo entre elas. Então por que a Torá somente ensinou a recompensa destas duas Mitzvót positivas, e por que justamente as duas têm exatamente a mesma recompensa? Há algum ponto em comum entre elas?
 
Responde o Rav Yaacov Weinberg zt"l (Israel, 1923 - EUA, 1999) que o ponto em comum é a Messirut Nefesh (auto sacrifício) que as duas Mitzvót envolvem, e em ambos os casos a Torá oferece uma grande recompensa como um estímulo para o reconhecimento desta Messirut Nefesh envolvida nelas.
Quando a Torá nos instruiu a honrar os nossos pais, um dos motivos é para nos fazer reconhecer os enormes sacrifícios que os pais fazem pelos seus filhos. Esta verdadeira "entrega total" já começa durante a gravidez, quando a vida dos pais começa a sofrer mudanças. A mãe começa a sentir náuseas, tonturas e um cansaço fora do normal, mudando toda a rotina do casal. Depois do nascimento a situação fica ainda mais complicada, pois as tranquilas noites de sono se transformam em noites de vigília, tanto durante a amamentação quanto nas noites em que as crianças ficam doentes e precisam dos cuidados dos pais. E como diz o famoso ditado, "pequenas crianças, pequenos problemas; grandes crianças, grandes problemas", pois conforme a criança vai crescendo, assim também as preocupações dos pais com o seu bem estar, com a sua educação e com as dificuldades naturais do seu crescimento. E talvez o auge de todo o stress seja o momento do casamento dos filhos, quando recai sobre os pais o grande peso de arcar com as despesas da festa e de uma possível ajuda financeira ao novo casal. Portanto, ser pai significa abrir mão de seu próprio conforto em prol do conforto dos seus filhos. A Torá oferece esta recompensa incrível, o prolongamento dos dias de vida, para aquele que cumpre a Mitzvá de honrar os pais justamente para que as pessoas se esforcem para apreciar, reconhecer e agradecer toda a Messirut Nefesh feita por eles desde a sua concepção.
É exatamente o ponto da Messirut Nefesh pelos filhos que conecta a enigmática Mitzvá de "Shiloach HaKen" com a Mitzvá de "Kibud Av Ve Em". Qualquer pessoa que já tentou pegar um pássaro com suas próprias mãos sabe que isto é uma missão praticamente impossível. Os pássaros são muito ágeis e levantam voo ao menor sinal de ameaça. Em uma praça cheia de pombas, basta chegarmos perto e elas já levantam voo para alcançar algum lugar mais seguro. Existe uma única forma de agarrar um pássaro com as nossas próprias mãos: no momento em que ele está no ninho, cuidando de seus filhotes ou chocando seus ovos. Por que? Pois como qualquer outra mãe, o pássaro está disposto a sacrificar sua própria liberdade apenas para estar junto com os filhotes, tentando protegê-los de qualquer perigo.
Esta é a essência da Mitzvá de "Shiloach HaKen". Ao nos obrigar a espantar a mãe, a Torá está nos proibindo de tirar vantagem do imenso sacrifício que uma mãe faz pelos seus filhos, que é parte de seu instinto maternal. Não podemos aprisionar o pássaro nos aproveitando deste momento de "fraqueza". Portanto, quando damos para a mãe dos filhotes a sua liberdade, deixando-a ir embora, estamos evitando utilizar contra ela o atributo de se sacrificar pelos filhos. De certa maneira isto também é uma forma de apreciar e reconhecer o ato de Messirut Nefesh de uma mãe pelos seus filhos, e por isso as duas Mitzvót estão tão conectadas. E em ambas as Mitzvót, pelo fato de estarmos reconhecendo e apreciando o amor maternal e a enorme preocupação que os pais têm com seus filhos, acabamos nos tornando merecedores de receber uma recompensa tão grande quanto o alongamento dos dias.
Desta Parashat aprendemos o quanto é querido aos olhos de D'us darmos o devido valor a todo o sacrifício que nossos pais fizeram ou continuam fazendo por nós. Na verdade, a Mitzvá de "Kibud Av Ve Em" é tão importante que não termina nem depois do falecimento dos pais. Mesmo depois que eles já partiram deste mundo, continuamos obrigados a honrá-los e a fazer de tudo para elevar suas almas. A Halachá (Lei Judaica) exige que, ao se referir aos nossos pais, mesmo já falecidos, devemos fazê-lo sempre de uma maneira muito honrosa e respeitosa.
Infelizmente vivemos de acordo com aquele ditado que diz que "somente damos valor para a luz quando ela falta". Somos tão egoístas que, na maioria das vezes, somente aprendemos a dar valor aos nossos pais quando nós temos os nossos próprios filhos e sentimos na pele as dificuldades de criá-los. Através destas duas Mitzvót tão especiais, de "Shiloach HaKen" e de "Kibud Av ve Em", D'us nos estimulou a prestarmos mais atenção nas coisas boas que recebemos dos nossos pais e a refletirmos sobre o quanto eles se dedicaram e se dedicam por nós, e o quanto devemos a eles as nossas próprias vidas e tudo o que recebemos de bom deles.
"Um pai consegue cuidar de 10 filhos, mas 10 filhos não conseguem cuidar de um pai"
"SHETIKATEV VETECHATEM BESSEFER CHAIM TOVIM" (QUE SEJAMOS INSCRITOS E SELADOS NO LIVRO DA VIDA)
SHABAT SHALOM                                        
Rav Efraim Birbojm
Dt. 21:10-25:19, Is. 54:1-10

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

BONDADE À PROVA DE NEVE - PARASHAT SHOFTIM 5775

Jerusalém é uma cidade que literalmente para quando ocorre uma nevasca. Como em Israel não neva todos os anos, e mesmo quando neva são apenas alguns poucos dias, então não existe uma estrutura preparada para fazer com que o país funcione após uma nevasca. Por exemplo, não existem equipamentos para limpar e retirar a neve acumulada nas ruas, o que impede as pessoas de circularem de carro. Portanto, quando ocorre uma nevasca em Jerusalém, por dois ou três dias tudo fica paralisado, e as pessoas acabam ficando presas em casa, sem conseguir sair.

Normalmente isto não é um problema. Ao contrário, as crianças fazem guerras de neve na rua e os adultos também acabam se divertindo. Mas às vezes as nevascas podem se transformar em grandes dores de cabeça. Foi o que aconteceu com as famílias Cohen e Diamant (nomes fictícios). O casamento destas famílias estava marcado justamente para a noite em que ocorreu uma grande nevasca em Jerusalém. A pergunta na cabeça de todos era: como os noivos e os convidados conseguiriam chegar até o salão de festas?

Quanto à dificuldade dos noivos chegarem, o problema foi facilmente resolvido. O noivo vivia próximo o suficiente do salão de festas para conseguir chegar lá caminhando. A noiva, que morava um pouco mais longe, foi transportada por uma ambulância da "Hatzalá" (equipe de resgate). Mas o grande problema eram os convidados, justamente os responsáveis por alegrar o casamento. Infelizmente a grande maioria não conseguiria ir, pois não havia qualquer meio de transporte disponível.

A notícia de que haveria uma festa de casamento com grandes chances de ser um fracasso começou a correr entre os judeus religiosos, e chegou às Yeshivót e Seminários para moças. Ao escutar a difícil situação do noivo e da noiva, muitos rapazes das Yeshivót e moças dos Seminários que ficavam no mesmo bairro do salão de festas vieram para participar do casamento e trazer alegria. O lugar logo ficou completamente lotado de pessoas animadas, que apesar de nem conhecerem o noivo e a noiva, faziam de tudo para alegrá-los. A vontade de ajudar era tanta que vieram muito mais pessoas do que havia sido programado. Era tanta gente, em um gesto de amor ao próximo tão impressionante, que em pouquíssimo tempo a comida já havia terminado. 

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Nesta semana lemos a Parashat Shoftim, que nos ensina diversos assuntos, tais como a pena aplicada para pessoas que faziam idolatria, as leis referentes à futura escolha de um rei para o povo judeu, o cuidado com falsas testemunhas e o comportamento do povo judeu durante as guerras.

Em relação às guerras, a Torá nos ensina um detalhe interessante. Antes das batalhas se iniciarem, algumas pessoas eram dispensadas do serviço militar, como está escrito: "Quem é o homem que construiu uma casa nova mais ainda não a inaugurou? Que se vá e volte para sua casa, para que não morra e outro homem a inaugure. Quem é o homem que plantou um vinhedo e ainda não o redimiu? Que se vá e volte para sua casa, para que não morra e outro homem o redima. Quem é o homem que noivou com uma mulher mais ainda não casou com ela? Que se vá e volte para sua casa, para que não morra e outro homem case com ela" (Devarim 20:5-7).  A Torá especificamente registrou três categorias de pessoas que eram dispensadas da guerra. O ponto em comum é que eram pessoas que haviam deixado algo inacabado e, por isso, ficariam preocupadas demais, com medo de morrer na guerra e nunca terminar o que havia ficado pendente.

Muitos comentaristas entendem que esta lei da Torá era uma medida prática. Qualquer soldado que estivesse em uma destas três categorias ficaria, mesmo durante a guerra, com a cabeça completamente ocupada com os pensamentos do que havia deixado para trás, certamente prejudicando seu desempenho. Além disso, sua falta de foco podia ter um impacto negativo sobre seus colegas, diminuindo a moral deles. Por isso, pela segurança do povo, era questão de bom senso dispensar do exército pessoas que se enquadravam nestas três categorias.

Porém, se esta é a explicação do motivo da dispensa, então por que a Torá trouxe apenas estas três situações? Certamente existem centenas de outras situações que fazem com que a pessoa perca o seu foco. Por exemplo, uma pessoa que está com muitas dificuldades na educação de seu filho, uma criança extremamente rebelde e malcriada, ele também não consegue manter seu foco por estar perturbado com seus problemas familiares. Apesar disso, a Torá não inclui este tipo de situação entre as dispensas militares. Por que justamente estas três são mencionadas pela Torá, se existem muitas outras situações que desviam o foco da pessoa?

A pergunta fica ainda mais difícil quando olhamos a explicação dada por Rashi (França, 1040 - 1105), que afirma que estas três situações em especial causam "Agmat Nefesh" (tormento da alma). Mas se todo o problema era apenas a falta de foco, por que Rashi utilizou uma linguagem tão "poética", de "tormento da alma", ao invés de simplesmente ter explicado que o motivo é a falta de concentração por causa das outras preocupações que podem estar na cabeça do soldado?

A resposta está em um interessante ensinamento do Talmud (Sotá 2a), que afirma que 40 dias antes da formação de um feto (neste caso a expressão "formação" refere-se ao momento em que a alma entra no feto em desenvolvimento), uma Voz Celestial anuncia quem será sua futura esposa, onde será sua residência e de onde virá seu sustento. De acordo com nossos sábios, 40 dias antes da formação do feto é justamente o momento da concepção física, quando todos os dados genéticos contidos no DNA começam a atuar no desenvolvimento do bebê. Neste momento da concepção física, detalhes como a inteligência, a aparência, as habilidades e as inclinações da criança, isto é, os dados genéticos que compõe as características básicas dela, já começam a atuar. Mas por que o Talmud afirma que exatamente neste mesmo momento é anunciado ao feto quem será sua esposa, onde será sua residência e de onde virá seu sustento?

De acordo com o Rav Yohanan Zweig, o Talmud está nos ensinando que, apesar destas três coisas parecerem apenas detalhes externos à essência do ser humano, elas são fatores fundamentais na definição e na forma como se expressa a essência da pessoa, exatamente como a carga genética dela. A esposa é a alma gêmea da pessoa, a parte que falta para completar a sua alma. Também a casa e a profissão de uma pessoa são maneiras de definir a sua essência. Por exemplo, o médico é chamado de "doutor" mesmo quando não está trabalhando, pois sua profissão torna-se parte do seu nome. De forma semelhante, o chefe de família é chamado de "Baal HaBait" (dono da casa), pois ter uma casa o torna uma pessoa mais completa.

Ao dispensar estas três categorias de pessoas do serviço militar, a Torá está nos ensinando uma importante lição: a necessidade de iniciar um casamento, de começar um trabalho e de ter a sua própria casa causam uma preocupação muito forte no ser humano. Não se trata apenas do desvio de foco por causa de algo que o incomoda. Como estes três assuntos definem o próprio "eu" da pessoa, e são formas da alma se definir e se expressar, o fato de não ter completado algum destes processos, junto com o temor de que outra pessoa pode vir a colher os frutos do seu árduo trabalho, chegam a trazer tormento para a alma do soldado, impedindo-o de exercer de maneira eficiente suas funções no exército. Neste caso, é melhor ele voltar para casa e terminar o que está pendente do que ficar, completamente atormentado, na frente de batalha.

Atualmente estes fatores não são levados em consideração para dispensar alguém do exército. Então como podemos utilizar este conceito da Parashat para nossas vidas? Em primeiro lugar, isto nos desperta sobre o verdadeiro valor das nossas esposas e maridos, do nosso trabalho e da nossa casa. Como são coisas que estamos em contato constante, infelizmente acabamos nos acostumando e deixando de dar o seu devido valor.

Além disso, há outra aplicação prática: o Chessed (bondade) que podemos fazer aos outros. Se estas três coisas são tão importantes na vida do ser humano, a ponto de definirem sua essência, então devemos nos esforçar muito para ajudar aqueles que ainda não conseguiram atingi-las. E se pararmos para refletir, perceberemos que as oportunidades de fazer Chessed nestas áreas são imensas. Por exemplo, podemos ajudar alguém desempregado a conseguir um bom emprego, fazendo-o se sentir mais completo. Também podemos participar ativamente da Mitzvá de "Achnassat Kalá", isto é, ajudar casais com dificuldades financeiras a realizarem sua festa de casamento. Também é um grande Chessed ir a uma festa de casamento e, ao invés de se preocupar em comer e se divertir, focar em alegrar o noivo e a noiva e fazer daquele momento algo muito especial para eles.

Pessoas que se sentiam "incompletas" não podiam lutar no exército contra seus inimigos. Da mesma maneira, muitas vezes pessoas que se sentem "incompletas" podem também não conseguir vencer suas batalhas do dia a dia. Por isso é tão importante ajudá-las, principalmente nestas três áreas, para que voltem a ter tranquilidade e possam seguir suas vidas de forma mais harmônica e equilibrada.
SHABAT SHALOM                                          

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 16:18-21:9, Is. 51:12-52:12

domingo, 16 de agosto de 2015

DEVOLVENDO A DIGNIDADE - PARASHAT REÊ 5775

Um rabino idoso sentou-se na sinagoga e cumprimentou um jovem rapaz que estava sentado na cadeira ao lado. O rabino perguntou ao jovem se ele era o Sr. Goodman, e o jovem confirmou. Então o rabino disse:

- Sr. Goodman, gostaria de te dar parabéns pelo seu incrível trabalho de "Shalom Bait" (Paz familiar).

O Sr. Goodman agradeceu pelo elogio, mas disse que era um engano, pois ele era apenas um jovem estudante de Torá, recém-casado, que nunca havia se envolvido com aconselhamentos de "Shalom Bait" na vida.

- O elogio certamente é para você - insistiu o rabino - E vou te explicar porque. Há um casal aqui em Bnei Brak que estava passando por terríveis problemas de "Shalom Bait". Eu vinha trabalhando com este casal por mais de seis meses, mas não estava sentindo nenhuma melhora. Na verdade, eu já estava quase desistindo, pois infelizmente sentia que não havia mais nada para fazer.

- Há algumas semanas você estava em uma pequena sinagoga e havia do seu lado um garoto de quatorze anos de idade que estudava sem parar, e este garoto te deixou muito bem impressionado - continuou o rabino - Então o que você fez depois? Você foi até a parte de trás da sinagoga, onde o pai dele estava sentado, e disse: "Meus parabéns pelo filho maravilhoso você tem. Que orgulho!". Você se lembra disso?

O Sr. Goodman lembrava-se vagamente da história, e começou a ficar assustado com aquele rabino que sabia tantos detalhes da sua vida. Vendo a confusão no rosto do Sr. Goodman, o rabino abriu um sorriso e concluiu:

- Então, aquele homem que você elogiou era justamente o marido que estava tendo problemas de "Shalom Bait" com a esposa. Grande parte dos problemas era consequência da baixa autoestima dele. Mas seu elogio a respeito do filho dele mudou tudo. Você devolveu a ele sua honra, e foi como se você tivesse injetado novamente vida em suas veias. Ele saiu da sinagoga um novo homem. Parou em uma floricultura e comprou para a esposa um buquê de rosas e, em seguida, comprou uma caixa do chocolate favorito dela. A partir deste dia sua casa se transformou em um verdadeiro "Gan Éden" (Paraíso). O que eu não pude ajudar em seis meses de trabalho intensivo, você conseguiu com apenas um elogio. Com suas palavras, você deu dignidade a este homem. Assim, mais uma vez, parabéns pelo seu incrível trabalho de "Shalom Bait" (História Real). 
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A Parashat desta semana, Reê, fala sobre muitos temas, tais como a definição de quais animais são Kasher (permitidos para o consumo), o perigo de falsos profetas se levantarem dentro do povo judeu e a importância de dar Tzedaká aos necessitados. A Parashá também nos ensina sobre um assunto interessante, o "Eved Ivri" (escravo judeu). Havia duas possibilidades de um judeu se tornar escravo de outro judeu: caso ele não tivesse meios para manter sua família, podia se vender como escravo; ou caso ele tivesse roubado um objeto e, quando apanhado por seu roubo, não tivesse dinheiro para ressarcir o dono. Neste caso, a pessoa era vendida pelo Beit Din (Tribunal Rabínico) e o dinheirFo da venda era utilizado para ressarcir o dono do objeto roubado.

A Torá nos ensina que após seis anos de trabalho o "Eved Ivri" deveria ser libertado. A Torá acrescenta mais um detalhe sobre esta libertação: "Você não deve mandá-lo embora de mãos vazias. Você deve dar a ele presentes" (Devarim 15:13,14). Isto quer dizer que, além do pagamento no momento da compra, o dono ainda era obrigado a dar ao escravo, no momento da sua libertação, presentes de valor significativo. Qual é a mensagem que a Torá nos ensina ao obrigar uma pessoa a dar ao seu escravo presentes no momento de sua libertação?

Além disso, a linguagem utilizada no versículo nos chama a atenção. Normalmente o verbo utilizado para "dar" é "Latet", mas neste versículo o verbo utilizado é "Lehanek", que literalmente significa "adornar". Por que a Torá utilizou neste caso um verbo tão incomum?

Finalmente, o próximo versículo traz uma informação que parece fora de contexto: "E vocês devem lembrar que vocês foram escravos na terra do Egito, e que D'us os redimiu. Por isso Eu estou comandando isto para vocês hoje" (Devarim 15:15). Qual a relação entre a saída do Egito e a libertação do "Eved Ivri"?

Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta está na análise de um conceito interessante: o ato de dar gorjetas. Por que é uma prática aceita que certos serviços merecem ser recompensados com uma gorjeta, enquanto outros serviços não merecem? Por exemplo, quando a pessoa faz compras em um supermercado, o carregador que embala e leva as mercadorias compradas ao carro do cliente recebe uma gorjeta, mas a pessoa do caixa não recebe nenhuma gorjeta. Outro exemplo é na barbearia, quando a pessoa dá uma gorjeta para o barbeiro, porém não dá nada para a pessoa que cobra no caixa. Por que há esta diferença?

A resposta é que quando uma pessoa serve outra, de certa maneira ela se sente um pouco rebaixada e humilhada. Quanto mais personalizado é o serviço prestado, maior a perda de dignidade sentida. Portanto, é justamente quando recebemos um serviço personalizado é que nós damos a gorjeta. A gorjeta demonstra nossa apreciação pelo que recebemos do outro, e funciona como uma forma de restaurar a dignidade da pessoa que nos serviu. É por isso que o barbeiro e o empacotador recebem a gorjeta, pois fazem serviços exclusivos e diferentes para cada cliente. Já as pessoas que ficam no caixa do supermercado ou da barbearia fazem trabalhos padrões, praticamente iguais para todos os clientes, sem nenhum tipo de personalização, e por isso não recebem nenhuma gorjeta.

Com este conceito também podemos entender uma atitude aparentemente estranha de Avraham Avinu. Quando ele abandonou a sua casa e foi para a Terra de Israel, logo depois houve uma grande fome que o obrigou a buscar alimentos no Egito. Na volta para Israel, a Torá decreve que Avraham foi "de acordo com as suas viagens" (Bereshit 13:3). O Talmud (Arachin 16b) nos ensina que deste versículo aprendemos que Avraham voltou para Israel pelo mesmo caminho que ele havia ido ao Egito. Por que? Para que na volta pudesse se hospedar exatamente nas mesmas hospedarias que havia se hospedado na ida. Mas qual é o sentido de alguém refazer o mesmo caminho apenas para ficar nas mesmas hospedarias?

O dono de uma hospedaria serve seus clientes com uma enorme variedade de serviços personalizados, 24 horas por dia, algo que, de acordo com o conceito que vimos anteriormente, também diminui a sua dignidade. Porém, ao dono da hospedaria não é possível devolver a dignidade apenas dando uma gorjeta. Avraham então nos ensinou que a forma de devolver a dignidade ao dono da hospedaria é continuar dando preferência ao seu estabelecimento. Esta é a verdadeira demonstração de apreciação pelo serviço personalizado recebido.

É por isso que a Torá exige que o dono de um "Eved Ivri" dê a ele presentes no momento de sua despedida. Apesar de haver uma proibição de dar ao escravo qualquer tipo de trabalho muito pesado ou humilhante, o fato de o escravo estar o tempo inteiro à disposição de seu dono, prestando a ele serviços exclusivos e personalizados, faz com que ele perca a sua dignidade. Então D'us obrigou o dono, no momento da despedida de seu escravo, dar a ele presentes de valor significativo, que possam devolver ao escravo sua dignidade.

Entendemos também a utilização deste verbo tão incomum, "Lehanek", no ato de dar presentes ao escravo que está sendo libertado. De acordo com Rashi (França, 1040 - 1105), "Lehanek" vem do substantivo "Anaká", que significa "uma jóia utilizada em volta do pescoço". Quando a pessoa se adorna com jóias, ela se sente elevada e especial, e isto dá a ela um senso de dignidade. Esta é justamente a função do presente que damos ao escravo no momento de sua partida, para que ele possa recuperar a dignidade perdida nos seus últimos seis anos nos quais ele serviu, de maneira personalizada, seu dono.

Finalmente entendemos a continuação do versículo, "E vocês devem lembrar que vocês foram escravos na terra do Egito". A dura escravidão no Egito quebrou todo o senso de dignidade do povo judeu. Então, antes de nos tirar de lá, D'us fez com que os egípcios nos dessem muitos presentes. Esta foi a maneira que D'us utilizou para nos devolver, através dos nossos próprios opressores, a nossa dignidade. De forma semelhante, cada dono de escravo fica obrigado a restituir, no momento da libertação do seu escravo, a sua dignidade.

Apesar de atualmente não termos mais na prática o conceito do "Eved Ivri", podemos utilizar este ensinamento da Parashat para nossas vidas, pois aprendemos um conceito muito importante e atual: o cuidado com a honra e a dignidade dos outros. Muitas pessoas atualmente sofrem de baixa autoestima e, com algumas palavras de incentivo, podemos ajudar a reerguer alguém que está caindo. Uma gorjeta pode restaurar a dignidade de um trabalhador, mas elogiar, demonstrar que confiamos nos outros e valorizar o que as pessoas fazem são atitudes que podem literalmente dar vida. E, ao contrário da gorjeta, estas atitudes não pesam nem no nosso bolso, pois são de graça.
SHABAT SHALOM          
                               
 Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/


Dt. 11:26-16:17, Is. 54:11-55:5