sábado, 29 de outubro de 2016

EXPULSANDO A ESCURIDÃO - PARASHÁ BERESHIT 5777

Yossef, um pequeno garoto de nove anos, estava sentado em sua carteira no meio de uma aula. De repente, ele percebeu que se formou uma poça entre seus pés e a parte da frente da sua calça estava molhada. Yossef achou que seu coração iria parar. Como havia deixado isto acontecer? Que vergonha! Quando os meninos da classe descobrissem, nunca mais o deixariam em paz. Quando as meninas soubessem, nunca mais falariam com ele. Yossef estava desesperado e não sabia o que fazer. Ele viu então a professora se aproximando com um olhar de "descobri o que você fez". Naqueles poucos segundos, mas que para Yossef pareciam uma eternidade, uma colega de classe chamada Rivka levantou-se da sua carteira e pegou o aquário cheio de água que havia em uma estante de livros da sala de aula. Rivka começou a caminhar com o aquário, mas tropeçou e, antes de cair no chão, derramou toda a água no colo de Yossef.

Yossef fingiu estar irritado, mas por dentro não cabia em si de alegria e alívio. Ao invés de ser ridicularizado, Yossef recebeu o apoio dos colegas. A professora desceu apressadamente com ele e lhe emprestou uma calça de ginástica para que ele vestisse enquanto sua calça secava. Todas as crianças se juntaram para secar sua carteira. A humilhação que ele passaria foi transferida para Rivka. Quando ela tentou ajudar a limpar a carteira de Yossef, os outros colegas disseram de forma grosseira: "Saia daqui! Já não foi suficiente o que você causou ao Yossef?".

No fim do dia, enquanto estavam esperando o ônibus, Yossef caminhou até Rivka e lhe perguntou baixinho: "Você fez aquilo de propósito, não foi?". Rivka, com um sorriso, respondeu baixinho: "Eu também molhei minha calça uma vez".

Nossa grandeza é medida quando conseguimos nos preocupar com a honra dos outros da mesma maneira que nos preocupamos com a nossa própria honra. 
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Nesta semana recomeçamos o ciclo de leitura da Torá com a Parashá Bereshit (literalmente "No princípio"), que começa descrevendo a Criação do universo, do caos até a perfeição. O ápice da Criação de D'us foi Adam Harishon, o primeiro ser humano, o propósito de tudo. D'us criou o homem do pó da terra e soprou nele uma alma de vida. Mas por que D'us justamente soprou a alma? De acordo com as fontes místicas judaicas, quando a Torá diz que D'us soprou uma alma no ser humano, nos ensina que parte Dele entrou em nós. Isto quer dizer que nossa alma é muito elevada, é parte de D'us, como ensina o mais sábio de todos os homens, Shlomo Hamelech: "A alma do ser humano é uma vela de D'us" (Mishlei 20:27). A alma foi colocada dentro do ser humano para nos iluminar e permitir nossa conexão com a espiritualidade. Porém, sabemos que D'us criou o ser humano com livre arbítrio e para isso é necessário um equilíbrio de forças. Se foi necessário D'us colocar uma "Vela Divina" dentro de nós, significa que a escuridão dentro do ser humano também é imensa.

Esta escuridão que existe dentro do ser humano pode ser percebida em diversas personalidades da Torá. Por exemplo, quando a cidade de Yerichó foi conquistada, muitos milagres aconteceram. Havia muralhas gigantescas protegendo a cidade, praticamente intransponíveis, mas D'us fez com que elas caíssem, possibilitando que a cidade fosse conquistada. Yoshua, o líder que sucedeu Moshé Rabeinu, entendeu a importância de aquele milagre ficar guardado para sempre. Ele proibiu que a cidade de Yerichó fosse reconstruída, para que suas ruínas servissem como fonte de inspiração de Emuná (fé) para o povo judeu. Yoshua então proferiu uma maldição: todos os filhos daquele que tentasse reconstruir a cidade de Yerichó morreriam antes do término da construção. Mas cerca de 550 anos depois um homem chamado Chiel Beit Haeli tentou reconstruir a cidade. Quando ele iniciou as fundações, seu filho primogênito morreu. Mesmo assim ele continuou a construção de maneira obstinada e foi enterrando todos os seus filhos, um após o outro. Finalmente, quando ele ergueu os portões da cidade, seu último filho morreu, exatamente como Yoshua havia avisado: "Com (a perda de) seu primogênito fará a fundação, e com (a perda de) seu filho mais novo colocará os portões" (Yoshua 6:26).

Porém, esta história da Torá é difícil de ser entendida. Chiel viu que estavam se cumprindo as palavras da maldição proferidas por Yoshua e que seus filhos estavam morrendo um após o outro, então por que ele não interrompeu imediatamente a construção? A maldição de Yoshua era sabida por todos, certamente a construção não foi por falta de conhecimento. Por que ele continuou construindo, de forma obstinada, mesmo enterrando seus filhos? Pois a escuridão do ser humano é tão intensa que Chiel não conseguiu conectar a morte dos seus filhos com a maldição de Yoshua. Ele preferiu acreditar que tudo era um grande acaso, e por isso continuou construindo como se nada tivesse acontecido.

Na nossa Parashá há outro exemplo incrível da mistura que existe dentro do ser humano de luz e escuridão. Cain, filho de Adam, trouxe para D'us uma oferenda, como está escrito: "E trouxe Cain das frutas da terra uma oferenda para D'us, e também Hevel trouxe dos primogênitos do seu rebanho" (Bereshit 4:3,4). Esta foi a primeira vez na história da humanidade em que um Korban (sacrifício) foi oferecido a D'us. Percebemos pela linguagem do versículo que Hevel aprendeu de seu irmão Cain o ato de oferecer um Korban. Mas de quem Cain aprendeu que deveria oferecer um Korban para D'us?

Explica o Ramban zt"l (Nachmânides) (Espanha, 1194 - Israel, 1270) que Cain entendeu sozinho o grande segredo dos Korbanót, algo muito profundo e sublime. Isto significa que Cain estava em um nível espiritual muito elevado, mais elevado ainda do que o nível espiritual de seu irmão Hevel. Porém, na continuação da Parashá está escrito: "E D'us aceitou Hevel e sua oferenda, mas Cain e sua oferenda Ele não aceitou" (Bereshit 4:4,5). Rashi (França, 1040 - 1105) explica que a oferenda de Cain não foi aceita pois ele trouxe das piores frutas da terra, enquanto Hevel trouxe seus melhores animais. Porém, a atitude de Cain é incompreensível, pois o mundo inteiro estava à sua disposição, ele não precisava de tantas frutas, certamente elas apodreceriam. Apesar disso, Cain foi egoísta em sua oferenda e trouxe apenas as piores frutas que encontrou. Se oferecer Korbanót não era algo obrigatório, pois D'us não havia exigido de Cain que ele oferecesse nada, e apenas através de seu intelecto e reconhecimento ele entendeu a importância de oferecer Korbanót, então por que ele trouxe apenas as piores frutas?

A única forma de responder esta contradição de Cain é através do entendimento de que no ser humano atuam, ao mesmo tempo, a luz e a escuridão, de forma completamente misturada, e uma delas não anula a outra. Muitas vezes agimos de forma contraditória, pois às vezes o que predomina é a "Vela Divina" que temos dentro de nós, e outras vezes o que predomina é a escuridão. O mesmo Cain, que conseguiu alcançar sozinho o segredo espiritual dos Korbanót, em um momento de muita luz, instantes depois ofereceu a D'us apenas frutas ruins, em um momento de completa escuridão.

O mesmo pode ser observado na continuação do versículo: "E isto incomodou demais Cain e seu semblante caiu" (Bereshit 4:5). Este desapontamento de Cain veio do seu lado de luz, pois ele reconheceu sua queda e sofreu muito por causa disso. Porém, logo depois Cain, que poderia ter aproveitado seu despertar para consertar seu erro, novamente deixou que a escuridão o dominasse. Após uma conversa com seu irmão no campo, ele se levantou e o assassinou. Sobre o que eles conversaram? Explica o Rabi Yonatan ben Uziel, grande sábio da época dos Tanaim, que Cain falou para o seu irmão: "Por que o seu Korban foi aceito por D'us e o meu não? Não há justiça e não há Juiz, não há Mundo Vindouro, não há recompensa para os Tzadikim (Justos) e não há castigo para os Reshaim (malvados)!" Quando Cain sentiu a sua queda, ao invés de se arrepender e consertar seu ato, ele preferiu negar que existia justiça no mundo, e chegou até mesmo a negar a existência de D'us ao afirmar que "não há justiça e não há Juiz".

Mas como pode ser que Cain negou a existência de D'us, se momentos antes havia falado pessoalmente com Ele, como está escrito: "E D'us disse para Cain: 'Por que você está tão irritado, e por que seu semblante caiu? Não é que se você se arrepender será perdoado?'" (Bereshit 4:6,7)? Responde o Rav Chaim Shmulevitz zt"l (Lituânia, 1902 - Israel, 1979) que para se tranquilizar após seu erro e tirar de si o sentimento de culpa, Cain negou tudo e causou com que a escuridão o dominasse completamente, ao ponto de se levantar e assassinar seu próprio irmão. Após o assassinato, quando D'us perguntou a Cain onde estava seu irmão Hevel, ele respondeu: "Eu não sei. Por acaso eu sou o guardião do meu irmão?" (Bereshit 4:9). Cain pensava que poderia enganar ou ocultar algo de D'us? Certamente que não. Na verdade, Cain estava tentando enganar a si mesmo.

Mas se a luz não é suficiente para sozinha expulsar a escuridão, como podemos fazer para tirar de dentro de nós este lado negativo? Explica o Rav Chaim Shmulevitz que a resposta está em um comportamento interessante de Avraham Avinu em relação aos três anjos vestidos de beduínos que ele recebeu em sua casa. Assim está escrito: "E ele (Avraham) levantou seus olhos e viu, e eis que três homens estavam parados diante dele. E ele viu, e correu na direção deles" (Bereshit 18:2). Por que o versículo repete duas vezes que Avraham viu? Explicam os nossos sábios que primeiro Avraham viu que a Presença Divina estava parada sobre aqueles três homens, demonstrando que eram pessoas muito grandes. Mas isto não foi suficiente para que Avraham se levantasse e corresse na direção deles. Somente quando Avraham viu que eles também se tratavam com Cavod (honra), um respeitando o outro, ele percebeu que eram também pessoas corretas, e então correu ao encontro deles.

Mesmo que Avraham já tinha esclarecido que aqueles três beduínos eram pessoas muito grandes, ainda faltava esclarecer se eles eram pessoas corretas, isto é, se haviam conseguido expulsar a escuridão de dentro deles, pois quanto maior uma pessoa, maior também o seu lado de escuridão para manter o livre arbítrio. O que realmente esclarece se uma pessoa é completa em seu nível espiritual é quando ela respeita as outras pessoas, como ensinam os nossos sábios: "Quem é a pessoa honrada? Aquela que honra as criaturas" (Pirkei Avót 4:1). O Pirkei Avót ressalta que o título de "pessoa honrada" não é dado para aquele que é grande, e sim para aquele que honra e se importa com o próximo, pois assim ele demonstra que expulsou de si o lado de escuridão.

Devemos nos esforçar para chegar ao nível de pessoas grandes. Mas devemos nos esforçar ainda mais para chegar ao nível de pessoas corretas. Apesar de termos uma luz Divina dentro de nós, somente afastaremos nossa escuridão interior quando soubermos enxergar e apreciar que todos os outros seres humanos também têm dentro de si uma luz Divina.     
SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm

http://ravefraim.blogspot.com.br/
GÊNESIS 1:1-6:8, Is.42:5-43:l0


sábado, 15 de outubro de 2016

O SEGREDO DA FELICIDADE - PARASHÁ HAAZINU E SUCÓT 5777

Avraham, um importante mercador, enviou seu filho Yossef para aprender o segredo da felicidade com um homem muito sábio. Yossef andou durante vários dias pelo deserto até chegar ao topo de uma montanha onde vivia o sábio que ele buscava. Porém, ao invés de encontrar uma casa caindo aos pedaços e um homem recluso, vestindo farrapos e meditando sobre uma cama de pregos, Yossef encontrou um lindo palácio com intensa atividade. Pessoas entravam e saíam o tempo todo, alguns conversavam alegremente, uma pequena orquestra tocava melodias e havia uma farta mesa com as mais deliciosas iguarias. O sábio recebia pessoalmente todos os visitantes e Yossef teve que esperar por várias horas até chegar sua vez de ser atendido. Quando chegou o esperado momento, o sábio ouviu atentamente o motivo da visita de Yossef, mas, para a decepção dele, disse que naquele momento não tinha tempo para explicar-lhe o segredo da felicidade. Sugeriu que o rapaz desse um passeio pelo palácio e voltasse dentro de duas horas. O sábio entregou a ele uma colher de chá e pingou duas gotas de óleo. Pediu, por favor, para que ele carregasse aquela colher com o óleo enquanto caminhasse, cuidando para que o óleo não fosse derramado. Yossef começou a subir e descer as escadarias do palácio, mas muito tenso e concentrado, mantendo sempre seus olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou à presença do sábio.

- Então - perguntou-lhe o sábio - você viu as tapeçarias da Pérsia que estão na minha sala de jantar? Viu o jardim que o mestre dos jardineiros demorou dez anos para criar? Reparou nos belos pergaminhos de minha biblioteca?

Yossef, envergonhado, confessou que não havia visto nada. Sua única preocupação havia sido não derramar as gotas de óleo que o sábio havia dado a ele. O sábio então pediu para que ele desse uma nova volta e contemplasse as maravilhas do palácio. Yossef pegou a colher e voltou a passear pelo palácio, mas desta vez foi reparando em cada detalhe. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores, o requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta à presença do sábio, relatou tudo o que havia visto.

- Mas onde estão as duas gotas de óleo que lhe pedi para que cuidasse? - perguntou o sábio.

Olhando para a colher, Yossef percebeu, envergonhado, que havia derramado o óleo.

- Este é o único conselho que tenho para lhe dar - disse o sábio, com um sorriso - O segredo da felicidade está em aproveitar as coisas do mundo, mas sem jamais esquecer seus verdadeiros objetivos. 
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Nesta semana lemos a Parashá Haazinu, um cântico entoado por Moshé que expressa o reconhecimento da harmonia que há na Criação de D'us, demonstrando que o passado, o presente e o futuro se integram de maneira perfeita. E no próximo Domingo de noite (16/10) começa uma das festas mais alegres do ano, Sucót, também chamada pelos nossos sábios de "a época da nossa alegria", na qual dormimos e comemos durante uma semana em uma "Sucá", uma cabana cujo teto deve ser provisório, com materiais que crescem na terra, como bambus, folhas e galhos de árvores. Habitamos na Sucá para cumprir as palavras do versículo: "E vocês devem habitar em Sucót sete dias... para que seus descendentes saibam que em Sucót Eu fiz os Filhos de Israel habitarem quando Eu os tirei da Terra do Egito" (Vayikrá 23:42,43).

Na verdade, as "Sucót" nas quais os judeus habitaram após a saída do Egito é motivo de disputa entre os sábios do Talmud (Sucá 11b). Rabi Eliezer opina que a Sucá é uma lembrança das "Ananei Hakavód" (Nuvens de Glória), que envolveram e protegeram os judeus durante os 40 anos em que vagaram pelo deserto inóspito, enquanto Rabi Akiva opina que a Sucá é uma lembrança do povo ter habitado literalmente em cabanas quando estavam no deserto. Mas esta discussão não é apenas filosófica. Pelo fato do versículo dizer explicitamente o motivo de habitarmos na Sucá, então a pessoa deve estar consciente deste motivo no momento de cumprir a Mitzvá. O Rav Yaacov ben Asher (Alemanha, 1270 - Espanha, 1340), mais conhecido como Tur, escreve na Halachá (Lei Judaica) que devemos nos lembrar, no momento de fazermos a Brachá de "Leishev BaSucá" (Sentar na Sucá), que a Sucá é uma lembrança das "Ananei Hakavód".

Porém, este ensinamento do Tur é um pouco problemático. A priori ele definiu que a opinião do Rabi Eliezer, de que a Sucá é em lembrança das "Ananei Hakavód", prevaleceu sobre a opinião do Rabi Akiva, e que assim nós devemos fazer na prática. Porém, o Talmud (Eruvin 46b) afirma explicitamente que todas as vezes em que há uma discussão entre  Rabi Eliezer e Rabi Akiva, a Halachá é como Rabi Akiva. Como pode ser que o Tur aparentemente vai contra uma definição Haláchica do próprio Talmud, que é uma autoridade superior?

Outra questão interessante surge quando analisamos de forma mais profunda a opinião de Rabi Akiva. O que significa que o povo judeu vivia, na época em que estavam no deserto, em cabanas? Todos concordam que o povo judeu era protegido pelas "Ananei Hakavód" na época em que estava no deserto, inclusive o Rabi Akiva. Então, se já havia uma proteção sobrenatural ao povo judeu, qual era a necessidade de construir cabanas?

Explica o Rav Elchanan Shoff que, apesar dos judeus realmente não precisarem de cabanas para o seu cotidiano, pois já viviam protegidos pelas "Ananei Hakavód", eles necessitaram de cabanas nos momentos em que saíram da proteção das Nuvens. Por exemplo, quando saíram para guerrear contra os reis Sichón e Og. Portanto, de acordo com o Rabi Akiva, o que nós comemoramos em Sucót são as "cabanas de guerra" que o povo judeu fez quando enfrentou seus inimigos no deserto. Mas por que D'us definiu uma Festividade na qual nós comemoramos as "cabanas de guerra" que o povo judeu construiu em momentos específicos dos 40 anos no deserto? Qual é mensagem que estas cabanas nos transmitem?

A pergunta fica ainda mais complexa quando refletimos sobre a atitude do povo judeu. Quando soldados saem para a guerra contra seus inimigos, eles não constroem cabanas sobre a terra, por ser um alvo muito fácil, e sim constroem abrigos em trincheiras, abaixo do nível da terra. Qual é o sentido militar do povo judeu ter construído cabanas para ir à guerra? E se a nossa Sucá é uma recordação da "Sucá de guerra", por que a construímos de maneira tão frágil, coberta com materiais pouco resistentes, como folhas de palmeiras e bambus? Não seria correto fazer uma construção reforçada?

Responde o Rav Chaim Halberstam zt"l (Polônia, 1830 – 1876), mais conhecido como "Rebe de Sanz", que a Sucá não é simplesmente um lugar para comer e dormir. O Talmud (Sucá 26a) nos ensina que devemos tratar a Sucá como normalmente tratamos a nossa moradia permanente. Isto quer dizer que, da mesma maneira que uma pessoa considera sua casa como residência mesmo quando ela sai para fazer coisas fora, assim também deve ser a nossa Sucá, isto é, mesmo quando sai da Sucá, a pessoa não deve perder a conexão com ela. E da mesma maneira que uma pessoa não sai à toa de casa, somente quando precisa resolver coisas fora, assim também devemos nos comportar com a Sucá, somente devemos sair da Sucá quando temos algo importante para fazer fora.

Isto tem implicações espirituais importantes. Enquanto a pessoa está na Sucá, ela está sentada em um lugar de pureza e envolvida pela santidade da sua sombra. E quando a pessoa sai da Sucá por bons motivos, como para cumprir a Vontade de D'us, ainda assim ela mantém consigo a santidade da Sucá, pois a Sucá continua sendo sua residência.

O mesmo ocorre em relação às "Ananei HaKavód". Normalmente elas protegiam o povo de qualquer tipo de perigo apenas quando os judeus estavam dentro delas, mas quando eles saíam, perdiam a sua proteção, como aconteceu no ataque de Amalek: "Como ele (Amalek) saiu ao seu encontro no caminho e feriu aqueles que haviam ficado para trás, que estavam fracos e cansados" (Devarim 25:18). Rashi explica que Amalek somente conseguiu atacar aqueles que estavam fora das Nuvens. Porém, havia uma exceção: aqueles que saíam das Nuvens por motivos justificáveis continuavam recebendo a proteção delas mesmo estando fora. Isto quer dizer que, se a pessoa saísse das Nuvens para cumprir a vontade de D'us, ela levava consigo o poder das Nuvens e também estava imune a qualquer tipo de ataque, como se estivesse dentro delas.

Com esta explicação podemos entender por que os judeus construíram cabanas e não trincheiras. Aqueles que saíram para guerrear contra Sichón e Og estavam cumprindo a Vontade de D'us e, por isso, podiam habitar tranquilamente em cabanas mesmo estando no front de batalha, pois elas eram intocáveis. Mesmo que eram cabanas frágeis, cobertas por materiais sem nenhuma resistência, nenhum inimigo podia atingir o povo judeu, pois a energia das "Ananei Hakavod" continuava com elas.

Isto responde também o questionamento em relação à Halachá. Quando o Tur diz que devemos ter, no momento em que nos sentamos na Sucá, a intenção de relembrar das "Ananei Hakavód", esta opinião engloba também a opinião de Rabi Akiva, pois de acordo com Rabi Akiva a proteção das "cabanas de guerra" era uma extensão da proteção das Nuvens que se aplicava mesmo quando os judeus estavam fora.

Todos os anos, quando nos sentamos em uma cabana frágil que recorda as "Ananei Hakavód", estamos nos lembrando que podemos estender a santidade da nossa Sucá para todas as outras coisas que fazemos fora dela. A Sucá nos traz a incrível possibilidade de nos ocuparmos com coisas mundanas e, mesmo assim, continuar envolvidos com as "Ananei HaKavod" que a Sucá representa. Mesmo os atos mais simples, como comer e dormir na Sucá, tornam-se grandes Mitzvót. O ensinamento de Rabi Akiva é que qualquer coisa se torna espiritual quando é feita dentro da Sucá, ou até mesmo fora dela caso a pessoa não se desconecte.

Este ensinamento da Sucá se aplica a todas as áreas de nossas vidas. Mesmo quando estamos nos ocupando com o mundo material, se não perdemos o foco, se nossas atitudes forem sempre voltadas ao cumprimento da nossa missão, então poderemos extrair espiritualidade de cada ato material. Podemos comer, dormir, viajar e ter prazer sem nos desconectarmos do espiritual. Este é o segredo da felicidade verdadeira. Este é o segredo de Sucót.
 
SHABAT SHALOM E CHAG SAMEACH

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 32:1-52, II Sm.22:1-51

domingo, 9 de outubro de 2016

VOCÊ É O QUE VOCÊ FALA - PARASHÁ VAYELECH

Em um lugar por onde passavam muitas pessoas, Rogério, um mendigo esfarrapado, sentava-se na calçada e ficava o dia inteiro pedindo esmola. Ele passava o tempo todo repetindo para si mesmo: "Sou um nada neste mundo! Ninguém me ajuda! Não tenho onde morar! Sou um homem fracassado e maltratado pela vida! Não consigo um mísero emprego que me renda alguns trocados! Mal consigo sobreviver!" As coisas iam de mal a pior. Certa noite Rogério achou um livro no lixo. Folheando, deparou-se com um trecho que dizia: "Tudo o que você fala a seu respeito vai se reforçando. Por pior que esteja a sua vida, diga que tudo vai bem. Por mais pobre que você seja, diga a si mesmo e aos outros que você vai prosperar". Aquilo tocou Rogério profundamente. Como ele não tinha nada a perder, decidiu dizer para si mesmo: "Vejam como sou feliz! Sou um homem próspero, tenho sucesso, sou saudável e bem humorado".

A partir desse dia tudo começou a mudar. Rogério percebeu que a cada dia recebia um pouco mais de dinheiro. Numa bela manhã, um executivo, que já o observava há algum tempo, aproximou-se e lhe disse:

- Você parece ser uma pessoa criativa! Gosto do seu bom humor. Não gostaria de colaborar em uma campanha de marketing da minha empresa?

Rogério aceitou, afinal não tinha nada a perder. Após um caprichado banho e com roupas novas, foi levado para a empresa. Daí para frente sua vida foi uma sequência de sucessos. Com o tempo ele tornou-se um dos sócios da empresa.

Tudo o que dizemos e pensamos a nosso respeito acaba se manifestando em nossa vida como uma realidade. Rogério finalmente havia entendido o poder das palavras.
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Nesta semana lemos a Parashá Vayelech (literalmente "E foi"), na qual Moshé, em seu último dia de vida, adverte o povo sobre os perigos de se assimilar e cair espiritualmente. O povo judeu em breve entraria na Terra de Israel e teria contato com povos idólatras, correndo o sério risco de ser influenciado por suas práticas, e por isso Moshé sentiu a necessidade de reforçar o cuidado do povo com as influências externas. E na próxima 3ª feira de noite (11/10) é Yom Kipur, o Dia do Perdão, data na qual o povo judeu foi finalmente perdoado pelo terrível pecado do bezerro de ouro. Esta influência do perdão de D'us se repete todos os anos em Yom Kipur, e todo aquele que se arrepende de seus erros neste dia, de forma sincera, é perdoado.

Uma das partes mais emocionantes do serviço de Rosh Hashaná e Yom Kipur é a Tefilá conhecida como "Unetane Tokef", na qual dizemos: "Em Rosh Hashaná somos inscritos e no jejum de Kipur somos selados. Quem vai viver e quem vai morrer... Quem vai ter tranquilidade e quem vai ter dificuldades... Quem vai enriquecer e quem vai empobrecer". É um lembrete de que tudo o que vai acontecer no nosso ano está sendo decretado nestes dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur, conhecidos como "Asseret Iemei Teshuvá".

A história que está por trás da composição desta Tefilá é de cortar o coração. O livro Or Zarua registra que o autor desta reza foi o Rav Amnon de Mainz, o maior rabino de sua geração, que viveu por volta do século nove. O bispo de Mainz tinha uma grande estima pelo Rav Amnon e tentou convencê-lo a se converter. Para ganhar tempo, o Rav Amnon pediu três dias para pensar no assunto. Assim que as palavras saíram de sua boca, o Rav Amnon ficou completamente perturbado e implorou o perdão de D'us pela terrível transgressão que havia cometido. Depois de três dias, o Rav Amnon se recusou a comparecer perante o bispo. Irritado, o bispo mandou buscá-lo à força. Quando o Rav Amnom recusou a conversão, o bispo ordenou que ele fosse severamente torturado e posteriormente enviado para casa. Apesar dos graves ferimentos e das dores, o Rav Amnom conseguiu permanecer vivo até Rosh Hashaná. Ele pediu para que fosse levado à sinagoga antes da Kedushá, uma das partes mais importantes da repetição da Amidá. Quando o Chazan chegou na parte da Kedushá, o Rav Amnon pediu para ele esperasse. Ele então recitou o "Unetane Tokef" e faleceu. Três dias depois, o Rav Amnon apareceu em um sonho para um grande cabalista, o Rav Kolonymous ben Meshulam, pedindo-lhe para garantir que todos os judeus incorporassem aquela reza em seu serviço de Rosh Hashaná e Yom Kipur.

Mas, prestando atenção a esta história, surgem duas perguntas. Em primeiro lugar, qual foi exatamente a transgressão cometida pelo Rabi Amnon, que o deixou tão transtornado?  E por que ele só se deu conta de seu erro após as palavras saírem de sua boca?

A vida é algo muito especial e sagrado de acordo com a Torá. Aprendemos do versículo "Você deve observar os Meus estatutos e os Meus juízos, que um homem deve fazer e viver por eles" (Vayikrá 18:5) que devemos viver pelos mandamentos, e não morrer por eles. Porém, há três Mitzvót que são exceções, e um judeu tem a obrigação de morrer para não transgredi-las: idolatria, derramamento de sangue e relações ilícitas. O Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 - Egito, 1204) explica que estas transgressões resultam na profanação do nome de D'us e, por isso, exigem o mais alto sacrifício do ser humano: a sua própria vida.

Porém, entendemos que é necessário dar a própria vida para não cometer relações ilícitas e derramamento de sangue, pois são transgressões que envolvem atos. Mas a adoração de ídolos é normalmente uma transgressão que envolve apenas a cabeça e o coração da pessoa. Qual é a gravidade de alguém simplesmente fingir que está acreditando em uma idolatria, mas sem a intenção verdadeira de servir outra divindade? O Rambam responde que, mesmo se um judeu não acredita em outra divindade, mas aparenta através de seus atos que acredita, a simples percepção de que ele estava disposto a servir outro deus é uma das maiores formas de profanação do nome de D'us.

Explica o Rav Yohanan Zweig que o Rav Amnon inicialmente pensou apenas em ganhar tempo ao não responder imediatamente a proposta do bispo. No entanto, ele percebeu que o bispo ficou muito satisfeito de saber que ele estava realmente pensando em atender o seu pedido. O Rav Amnom então entendeu que esta percepção por si só, de que um judeu poderia abandonar seu Criador, era uma profanação do Nome de D'us. Por isso ele ficou tão perturbado, apesar de nunca ter lhe passado pela cabeça a mínima possibilidade de realmente abandonar o judaísmo.

O Sefer HaChinuch (Mitzvá 25) acrescenta uma nova dimensão do porquê uma pessoa está obrigada a sacrificar sua vida diante da exigência de servir outra divindade. Não é suficiente acreditar em D'us apenas no pensamento, a pessoa deve verbalizar este pensamento para concretizá-lo. Por outro lado, se uma pessoa faz qualquer declaração que expressa uma negação da realidade de D'us, mesmo que ele não acredita no que está dizendo, isto já causa um impacto negativo sobre sua Emuná (fé) e pode criar dentro dele uma dúvida quanto à existência de D'us.

Com esta explicação do Sefer HaChinuch podemos entender de forma mais profunda qual foi o grande arrependimento do Rav Amnom. Quando ele pronunciou as palavras que implicavam a possibilidade dele abandonar D'us, ele imediatamente sentiu o impacto que estas palavras tiveram sobre a sua própria Emuná, e percebeu que tinha cometido um grave erro. Além de denegrir o nome de D'us, sua atitude havia causado um impacto negativo sobre a sua própria alma.

Este ensinamento nos ajuda muito a ter o foco correto em Yom Kipur. Parte importante do nosso serviço é o Vidui, a confissão das nossas transgressões, que repetimos por dez vezes durante Yom Kipur. Porém, não devemos fazer o Vidui com um sentimento de que somos fracassados. Temos que verbalizar os nossos erros, mas como uma maneira de senti-los de forma mais profunda no coração, para podermos consertá-los. Em Yom Kipur nós assumimos os nossos erros, não como perdedores que desistiram de lutar, mas como vencedores que assumem seus erros como parte do conserto. Os fracos são aqueles que pensam que estão sempre certos e desviam seus olhos de suas falhas e defeitos. Os fortes são aqueles que sabem assumir suas falhas e defeitos, e que, apesar de terem tropeçado, levantam a cabeça para consertá-los.

Este conceito deve ser utilizado não apenas em Yom Kipur, mas em todos os momentos da vida, pois devemos sempre pensar de maneira positiva. Nossos pensamentos e nossa fala influenciam muito em quem somos. Estamos começando um novo ano e precisamos ser otimistas, olhar as oportunidades e as nossas possibilidades de crescimento, e não as dificuldades e os fracassos do passado. Com uma atitude positiva, certamente poderemos consertar todos os nossos erros e crescer muito neste ano. O poder das palavras é incrível, e quando bem utilizadas, podem nos transformar em pessoas cada vez melhores.

SHABAT SHALOM E GMAR CHATIMÁ TOVÁ
R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 31:1-30,Os.14:2-10

sábado, 1 de outubro de 2016

APRENDENDO A CAIR E SE LEVANTAR - PARASHÁ NITZAVIM 5776

Certa vez o Rav Levi Yitzchak MiBerdichev (Ucrânia, 1740 - 1809) disse a um aluno que podemos aprender muitos ensinamentos espirituais importantes apenas observando cada um dos detalhes do que D'us criou no mundo material. O aluno gostou muito do ensinamento, mas não entendeu como funcionava na prática. O Rav Levi Yitzchak então ensinou:

- Por exemplo, observando os bebês nós podemos aprender três lições muito importantes para nossa vida. A primeira lição é que quando alguém machuca um bebê, ele chora para o seu pai. Assim também um judeu deve se comportar, sempre quando temos problemas e dificuldades, a primeira coisa que devemos fazer é abrir nosso coração e pedir ajuda ao nosso Pai, derramando lágrimas sinceras na nossa Tefilá (reza). A segunda lição é que um bebê nunca está desocupado, ele está sempre procurando algo para fazer, algo com o que se ocupar. Assim também um judeu deve se comportar, nunca pode estar parado, sempre deve estar buscando algo para se ocupar, pois nosso tempo neste mundo é curto demais para ficarmos parados sem fazer nada. E a terceira e mais importante lição é que quando um bebê cai, ele sempre se levanta. Assim também deve se comportar um judeu. Não importa quantas vezes um judeu cai, ele sempre deve se levantar. 
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Nesta semana lemos a Parashá Nitzavim (literalmente "parados"), na qual Moshé reuniu o povo no seu último dia de vida para instruí-los a como tomar as decisões de vida corretas quando entrassem na Terra de Israel. Já estamos nas últimas Parashiót, nos aproximando do final da Torá. E também estamos chegando ao fim de mais um ano. No anoitecer do próximo domingo de noite (02 de outubro) se inicia um dos dias mais solenes e importantes do ciclo judaico: Rosh Hashaná, o Dia do Julgamento, as fundações do novo ano que vai se iniciar. Tudo o que ocorrerá neste novo ano será decretado em Rosh Hashaná.

Apesar de ser um Chag, um dia alegre, no qual fazemos Seudót (refeições) festivas e cheias de simbolismos, Rosh Hashaná também vem junto com alguns temores. Este não é nosso primeiro Rosh Hashaná. Nos anos anteriores pedimos a D'us mais um ano de vida, argumentando que precisávamos deste tempo a mais para mudar, para melhorar. Tomamos decisões de crescimento, nos comprometemos a cumprir mais Mitzvót, a sermos mais cuidados com o próximo, a rezarmos com mais Kavaná (intenção). Porém, na prática, o que mudou? Crescemos como tínhamos imaginado? Estamos cumprindo as Mitzvót com mais alegria? Estamos nos comportando com os outros com mais respeito e atenção? Na verdade, sentimos que continuamos essencialmente as mesmas pessoas que éramos no ano passado. Este é um sentimento que incomoda os judeus há milhares de anos. Será que neste Rosh Hashaná não acontecerá a mesma coisa e nossas decisões ficarão novamente apenas no papel? Será que, depois de um ano com tantos erros, nas mais diversas áreas, poderemos passar pelo nosso julgamento de Rosh Hashaná?

Esta pergunta não é nova, já foi mencionada por um dos maiores profetas do povo judeu: "Pois nossas transgressões e nossos pecados estão sobre nós, e por causa deles nós derretemos. Então, como viveremos?" (Yechezkel 33:10). O profeta Yechezkel ressaltou em suas palavras a inquietude do povo com os erros do passado e o medo das futuras consequências. Mas ele também nos ensinou qual foi a resposta de D'us para esta preocupação do povo: "Eu não desejo a morte do Rashá (malvado), e sim que o Rashá volte e se arrependa do seu caminho. Arrependa-se, arrependa-se de seus maus caminhos, pois por que você deve morrer, Beit Israel?'" (Yechezkel 33:11).

Nestas palavras de Yechezkel, D'us está nos ensinando a não desistir. Até o Rashá, uma pessoa muito afastada da espiritualidade, aquele cujos maus atos são mais numerosos do que seus bons atos, pode consertar seu caminho. D'us pede para fazermos Teshuvá, isto é, para retornarmos dos nossos maus atos, pois a Teshuvá funciona. A Teshuvá, o arrependimento sincero, a vontade de mudar e melhorar, é o antídoto para estes sentimentos venenosos que diminuem nossas forças e nos impedem de crescer. A Teshuvá é baseada em dois princípios. O primeiro princípio é que nós temos a capacidade de mudar, podemos melhorar, por mais difícil que seja. O segundo princípio é a resiliência do ser humano. Esta é a essência dos "Asseret Iemei Teshuvá", os dez dias que vão desde Rosh Hashaná até Yom Kipur.
                                                                           
O Midrash (parte da Torá Oral) questiona: por que D'us nos deu os Asseret Iemei Teshuvá? Qual foi o mérito para recebermos dias de tanta misericórdia, nos quais podemos melhorar nossos atos e garantir um ano com bons decretos? Responde o Midrash que os Asseret Iemei Teshuvá são mérito de dois grandes feitos de Avraham Avinu: os 10 testes pelos quais ele passou na vida e saiu vitorioso de todos eles, e por ter implorado pela salvação dos habitantes de Sdom. Estes dois tipos de atos de Avraham nos ensinam que ele deixou de herança para seus descendentes duas formas de Asseret Iemei Teshuvá.

A primeira forma de Asseret Iemei Teshuvá é representada pelos dez testes de Avraham. Da mesma forma que Avraham foi passando por cada teste e subindo para um novo nível espiritual, como alguém que sobe os degraus de uma escada, assim também podemos aproveitar os Asseret Iemei Teshuvá, dias de muita espiritualidade, para subir e crescer a cada dia, de forma tão palpável quanto alguém que sobe uma escada. Mas este tipo de Asseret Iemei Teshuvá se aplica apenas aos Tzadikim (Justos), pessoas que conseguem dar verdadeiros saltos espirituais, que conseguem subir um degrau a cada dia. Porém, e o resto do povo, pessoas mais simples, que não estão em um nível tão elevado? Será que Avraham não deixou nada para nós?

A resposta é que para as pessoas mais simples Avraham deixou outra forma de Asseret Iemei Teshuvá, representada pelo apelo que ele fez a D'us para salvar a cidade de Sdom. Mas antes de tudo precisamos entender a atitude de Avraham. Por diversas vezes ele "negociou" com D'us a salvação de Sdom, como está escrito: "E Avraham se aproximou e disse: "E Você destruirá o Tzadik junto com o Rashá? Talvez existam 50 Tzadikim na cidade... Talvez serão encontrados lá 40... Talvez serão encontrados lá 30... Talvez serão encontrados lá 20... Talvez serão encontrados lá 10" (Bereshit 18:23-33). Como Avraham teve a audácia de discutir por Sdom, uma cidade repleta de Reshaim, pessoas no limite da maldade, que chegaram ao ponto de fazer leis que proibiam atos de bondade? Por que salvar pessoas tão ruins, tão corrompidas, que aparentemente não tinham mais volta?

Responde o Rav Yssocher Frand que Avraham estava nos ensinando que o ser humano tem a capacidade de mudar. Não importa o quanto uma pessoa tenha caído, ela pode voltar a subir. É como se Avraham estivesse dizendo: "D'us, não destrua Sdom. Se houver lá 50 pessoas justas, elas podem mudar toda a cidade. Talvez 40 justos consigam causar mudanças. Quem sabe 30 justos. Será que 20 justos não são suficientes para causar mudanças? D'us, por acaso 10 pessoas justas não poderiam influenciar e mudar uma cidade inteira?". E o mais interessante é que D'us concordou com Avraham ao aceitar que 10 Tzadikim seriam suficientes para mudar uma cidade inteira, mesmo uma cidade desviada como Sdom, pois D'us sabe que as pessoas podem mudar, as pessoas podem ser boas. Esta é a força dos Asseret Iemei Teshuvá que herdamos de Avraham. A mensagem de Avraham para seus descendentes é: não importa as tentativas passadas que fracassaram, tente novamente. Não desista, pois nós podemos mudar.

O outro princípio da Teshuvá é o princípio da resiliência. Resiliência é a capacidade de algo voltar ao seu estado natural, principalmente após alguma situação crítica e fora do comum. D'us colocou dentro de cada ser humano a capacidade de ser resiliente, isto é, uma pessoa pode cair e se levantar de novo várias vezes na vida, como nos ensina Shlomo Hamelech, o mais sábio de todos os homens: "Pois um Tzadik cai sete vezes e se levanta, mas o Rashá tropeça em seu mal" (Mishlei - Provérbios 24:16). A explicação mais simples deste versículo é que o Tzadik não é aquele que nunca erra, e sim aquele que erra, que algumas vezes cai em seus erros, mas que sabe se levantar.

O Rav Yitzchak Hutner zt"l (Israel, 1906 - 1980) explica o versículo de uma maneira mais profunda. Ele diz que a pessoa não é Tzadik apesar de suas quedas, e sim que a pessoa vira Tzadik por causa de suas quedas. As quedas de uma pessoa, e o aprendizado de saber se levantar e aprender com a queda, faz dela uma pessoa melhor. O Rav Hutner está nos ensinando que devemos lutar para crescer. Podemos perder batalhas na vida, mas devemos vencer a guerra. São justamente as quedas, os obstáculos e a luta que nos transformam em Tzadikim. Lemos a história da vida de grandes rabinos, que chegaram a níveis espirituais muito elevados, e pensamos que para eles o crescimento sempre foi muito fácil, mas isto é uma enganação. Todos eles eram pessoas normais. Todos eles tiveram suas batalhas, suas enormes dificuldades na vida. Eles viraram Tzadikim porque eles se levantaram quando caíram. Eles viraram pessoas grandes pois nunca desistiram, não ficaram se lamentando e dizendo "eu nunca vou melhorar".

Esta capacidade de se levantar é a marca registrada do povo judeu. Somos a nação que se levanta. Podemos ser derrubados, pisados, esmagados, mas nós sempre nos levantamos, como profetizou Bilaam, o profeta das outras nações: "Eis que eles são um povo que se levanta como uma leoa e ergue-se como um leão" (Bamidbar 23:24). Esta é a nossa característica mais valorosa. Isto é o povo judeu, uma nação que se levanta sempre. E esta é a mensagem da Teshuvá: não desista nunca. Perca a batalha, mas vença a guerra. Com esta convicção, certamente este Rosh Hashaná será completamente diferente dos outros.
QUE SEJAMOS INSCRITOS E SELADOS NO LIVRO DA VIDA
SHABAT SHALOM E SHANÁ TOVÁ

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Dt. 29:10-30:20, Is. 61:10-63:9