sábado, 26 de julho de 2014

O VALOR DE UMA VIDA - PARASHÁ MASSEI 5774

"Alguns anos atrás, cerca de 600 pessoas formadas em advocacia prestavam um exame na Califórnia para demonstrar que estavam aptas a exercer sua profissão. Algum tempo após o início da prova, um dos participantes, um homem com cerca de 50 anos, deu um grito e caiu desmaiado. Os médicos foram chamados, mas enquanto não chegavam, duas pessoas que conheciam as técnicas de primeiros socorros, ao constatarem que o homem havia sofrido uma parada cardíaca, imediatamente começaram a administrar os procedimentos de reanimação cardiorrespiratória.

Quando os médicos chegaram, imediatamente assumiram o caso, permitindo que as duas pessoas voltassem aos seus exames. Porém, com toda aquela situação, eles haviam perdido quase 40 minutos de prova, o que certamente faria uma grande diferença no resultado final. Eles então pediram ao supervisor a permissão de permanecerem fazendo a prova por mais 40 minutos depois que todos terminassem, mas o pedido foi veementemente negado. Sentindo-se prejudicados, os dois levaram o caso a instâncias superiores, para tentar ganhar a chance de fazer uma nova prova, mas o responsável geral pelo exame apoiou a decisão do supervisor. Quando questionado sobre as razões de sua decisão, ele explicou:

- Se estes dois homens um dia querem se tornar advogados, eles precisam aprender esta importante lição sobre prioridades na vida" (História Real).

Infelizmente não é apenas este responsável geral pelo exame de advocacia que não sabe quais são as verdadeiras prioridades. Todo aquele que coloca, através de atitudes irresponsáveis, a vida dos outros em perigo, certamente perdeu os parâmetros corretos e tornou-se um insensível.
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Nesta semana terminamos o 4º livro da Torá, Bamidbar. E a Parashá da semana, Massei, descreve as dezenas de viagens que o povo judeu fez durante os 40 anos em que permaneceu no deserto. Outro assunto trazido pela Parashá é a punição para um assassinato não intencional. Neste caso, o assassino não recebia pena de morte, pois não havia a intenção de matar, mas também não ficava livre. Ele precisava ir para o exílio, em um local chamado "Ir Miklat" (cidade de refúgio), e permanecia lá até a morte do Cohen Gadol (Sumo Sacerdote). E o que o prendia à cidade de refúgio? Por causa do assassinato, um parente próximo do falecido, chamado de "Goel HaDam" (vingador de sangue), poderia matá-lo sem a necessidade de um julgamento, sendo a cidade de refúgio o único lugar seguro para o assassino não intencional, pois lá dentro ele não podia ser tocado. E a Torá nos ensina mais alguns detalhes, como quantas cidades de refúgio deveriam ser construídas e onde elas deveriam se localizar: "E as cidades que vocês devem designar, deve haver 6 cidades de refúgio para vocês. 3 cidades vocês designarão  do outro lado do Jordão, e 3 cidades vocês devem designar na Terra de Knaan (Israel); elas devem ser cidades de refúgio" (Bamidbar 35:13,14). O Talmud (Makót 9b) acrescenta um detalhe interessante: apenas quando as 6 cidades estivessem construídas é que realmente elas começariam a funcionar como cidades de refúgio para abrigar e proteger os assassinos não intencionais.

Porém, o Talmud traz outra informação que parece ser contraditória com esta afirmação. Moshé, apesar de saber que as últimas 3 cidades seriam construídas somente após a conquista da terra de Israel, o que ocorreu 14 anos depois da sua morte, ele insistiu em construir em vida as 3 cidades que ficavam fora de Israel. O Talmud inclusive utiliza esta atitude de Moshé como um modelo de como devemos ser ágeis no cumprimento das Mitzvót que aparecem diante de nós. Mas será que este é realmente um bom exemplo de agilidade no cumprimento das Mitzvót? Em geral, a agilidade somente faz sentido quando a utilizamos para cumprir uma Mitzvá imediatamente, ao invés de deixá-la para depois. Porém, qual era a vantagem desta agilidade no caso de Moshé, se ele sabia que as cidades de refúgio construídas por ele não seriam utilizadas até que todas as cidades estivessem prontas, isto é, a Mitzvá ainda não estaria completa?

Além disso, há outro detalhe que nos chama a atenção nas cidades de refúgio. Fora de Israel permaneceram apenas as tribos de Reuven, Gad e metade da tribo de Menashe, enquanto as outras 9 tribos e meia se estabeleceram em Israel. Então por que esta proporção tão desequilibrada de cidades de refúgio, sendo 3 cidades servindo apenas 2 tribos e meia, enquanto as outras 3 cidades serviam as outras 9 tribos e meia restantes? Elas não deveriam ter sido distribuídas de forma mais proporcional?

Responde o Talmud que fora de Israel, apesar de haverem menos tribos, eram necessárias proporcionalmente mais cidades de refúgio, pois lá os assassinatos eram mais frequentes. Isto significa que as pessoas que viviam fora de Israel tinham um nível espiritual mais baixo, e por isso os crimes eram mais frequentes. Porém, esta resposta do Talmud não é suficiente para entendermos o motivo pelo qual havia mais cidades de refúgio, pois somente iam para lá as pessoas que haviam matado acidentalmente, não os assassinos intencionais. Como o fato de ocorrem mais crimes intencionais influenciava no número de crimes não intencionais?

Para entendermos, precisamos refletir sobre o que significa matar uma pessoa "sem intenção". Explica o Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 - Egito, 1204) que existe uma diferença entre uma morte que envolveu uma situação de "Ones" (força maior) e uma morte que envolveu uma situação de "Shogueg" (ato sem intenção). O "Ones" é quando algo acontece sem nenhuma previsibilidade e, portanto, sem o menor grau de negligência, enquanto o "Shogueg" é quando há certo grau de previsibilidade e, portanto, implica em certo grau de negligência. Se um assassinato fosse resultado de um "Ones", aquele que causou a morte estava isento de qualquer responsabilidade e não precisava ir para a cidade de refúgio. Mas o assassinato que era resultado de algum nível de negligência, apesar de não haver intenção, trazia para o assassino uma parcela de culpa e o obrigava a ir para a cidade de refúgio como forma de expiar o erro.

Portanto, o caso de assassinato não intencional descrito pela Torá envolve certa negligência. Além disso, o ser humano é fortemente influenciado pelo ambiente onde vive. Isto quer dizer que em um lugar onde há uma alta incidência de assassinatos, a população perde a sensibilidade do verdadeiro valor e santidade da vida. A consequência é que neste lugar as pessoas ficam mais propensas a se descuidarem e praticarem atos que apresentem riscos à vida alheia. É o caso, por exemplo, de pessoas que bebem e depois dirigem, colocando de forma irresponsável não apenas suas vidas em risco, mas também as vidas de todas as pessoas em volta. A necessidade de mais cidades de refúgio do lado de fora de Israel era consequência da maior frequência de assassinatos, que refletia na falta de sensibilidade das pessoas em relação à santidade da vida e causava mais situações de morte acidental.

Com isto entendemos também a agilidade de Moshé Rabeinu em construir imediatamente as 3 cidades que ficavam fora de Israel. As cidades de refúgio tinham, na realidade, duas funções distintas. A primeira função era ser um abrigo seguro para aquele que cometeu o assassinato não intencional. Mas existia ainda uma segunda função, que era criar no povo judeu um grau maior de consciência em relação à santidade da vida humana. Embora a primeira função das cidades de refúgio somente se efetivou depois da conquista de Israel, a segunda função já teve um efeito imediato. A simples presença das cidades de refúgio, mesmo que ainda não eram efetivas, serviam como uma mensagem de que as pessoas deveriam ser mais cuidadosas com seus atos, ensinando-as a dar valor à vida alheia.

A conclusão é que devemos sempre refletir muito antes de tomar qualquer atitude, principalmente quando entramos em situações que possam trazer riscos para outras pessoas. Por exemplo, às vezes saímos atrasados de casa e, para chegarmos ao trabalho na hora certa, passamos os limites de velocidade. Nossa preocupação normalmente é apenas com a possível multa que podemos receber. Mas a verdade é que a principal preocupação deveria ser com a vida dos outros. Uma criança que pode atravessar a rua sem olhar, ou um motorista na nossa frente que pode fazer uma manobra imprudente, são motivos para sermos sempre cuidadosos quando estamos atrás do volante. Alguns minutos de atraso não justificam colocar a vida dos outros em perigo. E o mesmo se aplica a qualquer situação no nosso cotidiano que possa causar risco à vida dos outros. Se formos mais sensíveis e tivermos mais claro qual é o verdadeiro valor de uma vida, certamente seremos muito mais cuidadosos e responsáveis pelos nossos atos.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

Nm. 33:1-36:13, Je 2:4 – 28, 3:4, 4:1-2, Tg. 4:1-12

sábado, 19 de julho de 2014

ESCUTANDO UMA BOA BRONCA - PARASHÁ MATOT 5774

"Certa vez, quando já era um dos maiores rabinos de sua geração, o Rav Moshe Feinstein (Lituânia, 1895 - EUA, 1986) recebeu um telefonema. Do outro lado da linha estava um homem completamente descontrolado, que começou a despejar uma verdadeira enxurrada de críticas e insultos ao Rav Moshe Feinstein por estar indignado com uma de suas decisões sobre a Halachá (Lei Judaica). Mas ao invés de simplesmente desligar o telefone, o Rav Moshe Feinstein pacientemente escutou o longo discurso daquele homem mal educado, sem tentar ao menos se defender. Um aluno que estava na sala e escutou os gritos do homem do outro lado da linha ficou chocado e questionou por que o rabino não havia respondido nada, já que eram acusações completamente infundadas. O Rav Moshe Feinstein sorriu e respondeu:

- Você está certo, realmente a reclamação dele foi completamente sem sentido. Mas é tão raro eu ser repreendido por alguém que fiquei agradecido de poder escutar palavras tão fortes. Apesar de não poder utilizar as palavras deste homem na área na qual ele me repreendeu, já que foi uma crítica equivocada, certamente deve haver alguma área na qual eu posso usar as palavras dele para poder melhorar e crescer"

O Rav Moshe Feinstein, além de ter sido um brilhante estudioso de Torá, também se esforçava muito para trabalhar suas Midót (traços de caráter). E uma das áreas nas quais ele se destacou foi o amor às críticas como forma de crescimento. Talvez justamente por isso ele tornou-se um dos maiores sábios de sua geração.
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Na Parashá desta semana, Matót, o povo judeu estava se aproximando da Terra de Israel e a entrada era uma questão de tempo. Então duas tribos, Gad e Reuven, fizeram um pedido surpreendente para Moshé. Como eles tinham uma quantidade muito grande de gado, maior do que o resto do povo, eles preferiam se estabelecer fora de Israel, nas margens do rio Jordão, uma grande planície propícia para a criação de animais. A resposta de Moshé foi uma dura repreensão às duas tribos, tendo como ponto central o fato deles estarem planejando abandonar seus irmãos naquele momento tão delicado no qual começariam as guerras de conquista de Israel. Moshé entendeu, nas entrelinhas do pedido, que eles queriam ficar tranquilamente criando seus animais enquanto o resto do povo estaria arriscando a vida para conquistar Israel. A bronca de Moshé foi longa e ameaçadora. Entre outras coisas, ele relembrou o incidente dos 10 espiões que desmotivaram o povo judeu de entrar em Israel e as terríveis consequências. Após escutar a bronca de Moshé, as tribos de Gad e Reuven garantiram para ele que participariam junto com seus irmãos da conquista de Israel e só depois voltariam para se estabelecer definitivamente nas margens do rio Jordão.

Explica o Rav Yehudah Aryeh Leib Alter (1847 - 1905), mais conhecido como Sfat Emet, que as duas tribos não mudaram de ideia por causa das palavras duras de Moshé. Na realidade, eles sempre tiveram intenção de se unir aos seus irmãos na conquista da Terra de Israel, e em nenhum momento quiseram fugir de suas responsabilidades. Mas quando fizeram o pedido a Moshé, eles não deixaram suas intenções claras, levando Moshé a pensar que eles estavam querendo abandonar seus irmãos, e por isto Moshé sentiu a necessidade de imediatamente repreendê-los de forma dura. Portanto, tudo não passou de uma falha de comunicação.

Porém, desta explicação do Sfat Emet fica uma grande dúvida. Se as tribos de Gad e Reuven estavam desde o início decididas a acompanhar o resto do povo nas guerras de conquista de Israel, por que não interromperam imediatamente a bronca de Moshé e avisaram que esta era a intenção original deles? Por que aguentaram calados uma repreensão tão dura e pesada se eles não tinham feito nada de errado e, portanto, não mereciam aquela bronca? Responde o Sfat Emet que, embora eles pudessem facilmente refutar a repreensão, eles conheciam o nível espiritual gigantesco de Moshé e, por isso, queriam escutar sua bronca, mesmo que não mereciam. Mas qual é a grande vantagem de escutar uma bronca de alguém espiritualmente elevado, e em especial neste caso, no qual as pessoas nem mesmo mereciam receber esta bronca, pois não haviam feito nada de errado?

A resposta está nas palavras do Talmud (Taanit 20a), que afirma que as maldições com as quais o profeta Achia HaShiloni amaldiçoou o povo judeu são melhores do que as Brachót (Bençãos) dadas por Bilaam HaRashá (o malvado) ao povo judeu. Esta afirmação do Talmud se baseia em um versículo ensinado por Shlomo Hamelech (Rei Salomão): "Os golpes de um amigo são dignos de confiança, enquanto os beijos de um inimigo são prejudiciais" (Mishlei 27:6). Os comentaristas explicam que a expressão "golpes de um amigo" refere-se a palavras de repreensão. Isto nos ensina que a bronca de alguém que realmente gosta e se preocupa conosco é muito valiosa, pois ela tem como objetivo nos ajudar a melhorar. É um grande ato de bondade, pois normalmente não enxergamos nossos erros e defeitos, e uma repreensão de alguém que se importa conosco pode nos ajudar a consertar nossos atos e a crescer espiritualmente. Foi isto que aconteceu com as pessoas das tribos de Gad e Reuven quando eles escutaram a bronca de Moshé, pois eles sabiam que no nível espiritual tão elevado dele, certamente sua bronca era baseada nos motivos mais puros e com a única intenção de ajudá-los a crescer. Por isto, apesar deles poderem se defender, acharam que valia mais a pena escutar as suas palavras e tentar, de alguma forma, crescer com elas.

Mas e quando a repreensão vem de alguém que não é espiritualmente tão elevado, ou que nos dá a bronca de uma maneira equivocada, de forma que nos machuca? Será que nestes casos também precisamos escutar? Explica o Rav Yehonatan Gefen que mesmo uma repreensão feita por alguém em um nível espiritual mais baixo pode ter muitos benefícios, inclusive quando feita da maneira incorreta. O Sefer HaChinuch (Mitzvá 241), quando se aprofunda na proibição da Torá de "Não se vingar", explica que esta Mitzvá é baseada no conceito de que tudo o que acontece em nossas vidas é diretamente dirigido por D'us. Mesmo quando alguém nos agride e nos critica de forma negativa e destrutiva, é inútil guardar rancor e se vingar desta pessoa, pois a dor que nos foi causada não teria acontecido se esta não fosse a vontade de D'us.

Este conceito pode ser utilizado para transformar em algo positivo este tipo de crítica que é destrutiva e nos machuca. Precisamos ignorar a falha daquele que está repreendendo e focar apenas no que ele realmente disse, aceitando a repreensão. Se refletirmos e formos sinceros, perceberemos que na maioria dos casos há um elemento de verdade em cada crítica que escutamos, uma prova de que a crítica, na realidade, é uma forma de comunicação de D'us, nos avisando que precisamos melhorar algo na nossa vida.

Assim também ensina Shlomo Hamelech: "Escute um conselho e aceite uma repreensão, para que você se torne sábio no fim dos seus anos" (Mishlei 19:20). Se prestarmos atenção, Shlomo Hamelech utiliza duas expressões diferentes, "escutar" em relação ao conselho e "aceitar" em relação à repreensão. A expressão "escutar", como utilizada no "Shemá Israel" (escute Israel), implica em pensamento e internalização. Quando a pessoa escuta um conselho, é importante que ela reflita antes de segui-lo. Mas a expressão "aceite" implica em receber sem questionamentos. Shlomo Hamelech está nos ensinando que, quando a pessoa escuta uma repreensão, ela deve aceitá-la sem questionar a validade da repreensão, isto é, sem se importar se a repreensão não é totalmente coerente com um erro cometido ou se não foi feita da forma correta. Ao contrário, a pessoa deve enxergar a repreensão como uma mensagem de D'us para que ela possa melhorar seus atos e seus traços de caráter.

Estamos longe do nível do Rav Moshe Feinstein e não gostamos de escutar críticas, pois não é agradável escutar que temos alguma falha ou que nos comportamos de uma maneira inadequada. Mas se conseguirmos vencer a dor que sentimos ao escutar uma crítica, sendo ela construtiva ou destrutiva, e tentarmos aprender algo da repreensão para melhorarmos em alguma área da vida, então poderemos transformar as críticas em uma incrível ferramenta de crescimento, que pode nos ajudar muito no nosso trabalho espiritual neste mundo.

"Se a vida te mandar limões, faça uma limonada" (Ditado popular)

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
Nm. 30:1- 32:42, Je 1:1-2:3

sábado, 12 de julho de 2014

GARANTINDO A TRANSMISSÃO - PARASHÁ PINCHÁS 5774

"Marcelo, um grande investidor, foi visitar uma pequena cidade do interior, muito rústica, onde ele tinha alguns negócios. Ele foi recebido por José, um dos moradores, que foi muito hospitaleiro e lhe serviu uma xícara de chá. Mas quando Marcelo bebeu o primeiro gole, precisou cuspir tudo, de tão ruim que estava o gosto. Prestando atenção, reparou que no fundo da xícara havia areia. Muito irritado, perguntou a José se era assim que eles recebiam alguém importante naquela cidade, servindo chá com areia. José, muito envergonhado, tentou se justificar, explicando que eles não tinham na cidade um sistema de bombeamento e filtragem da água. Era preciso ir buscar água no rio, e ela vinha sempre cheia de areia. Marcelo percebeu então como aquela cidade ainda estava atrasada em termos de saneamento básico. Investiu muito dinheiro para que fosse feita uma rede de bombeamento e filtragem da água do rio.

Meses depois, Marcelo escutou que aquela pequena cidade havia sido completamente consumida pelas chamas de um grande incêndio. Inconformado, perguntou a José o que havia acontecido, e ele explicou:

- Caro Sr. Marcelo, o sistema de filtragem está começando a ser implantado, e como o reservatório de água filtrada ainda é pequeno, não havia água suficiente para apagar o fogo...

- Mas será que nesta cidade ninguém pensa? – interrompeu Marcelo, aos berros - Para fazer chá é necessário utilizar água filtrada, mas para apagar um incêndio, qualquer água serve!!!"

O Chafetz Chaim utilizava esta história para explicar que antigamente, quando a maioria do povo estava conectada à Torá e às Mitzvót, podíamos nos dar ao luxo de usar apenas água filtrada, isto é, deixar a responsabilidade da transmissão da Torá a cargo apenas dos grandes sábios de cada geração. Mas nos nossos dias, quando o fogo da assimilação e da ignorância consome o povo judeu, é responsabilidade de cada um de nós, mesmo que somos apenas "água com areia", garantir a transmissão da Torá para as futuras gerações.

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No final da Parashá desta semana, Pinchás, Moshé Rabeinu recebeu de D'us o aviso que sua morte se aproximava. Mas ao invés de pensar em suas próprias necessidades, Moshé se preocupou com o povo judeu e imediatamente pediu para que D'us apontasse um novo líder, capaz de conduzir o povo rumo à Terra de Israel. D'us apontou o dedicado aluno de Moshé, Yoshua, pois ele tinha todas as características necessárias para ser um bom líder do povo judeu.

Há um interessante Midrash (parte da Torá Oral) que detalha um pouco mais a conversa de Moshé com D'us. O Midrash afirma que Moshé pediu que seus próprios filhos fossem seus sucessores, mas D'us recusou, afirmando: "Seus filhos se sentam, mas não se ocupam com o estudo da Torá". Em relação à escolha de Yoshua, D'us afirmou: "Ele chega cedo e sai tarde do Beit Midrash (Centro de estudos de Torá), e ele arruma os bancos e cobre as mesas".

Porém, deste Midrash surgem duas grandes perguntas. Em primeiro lugar, se os filhos de Moshé não se ocupavam com o estudo da Torá, então como pode ser que Moshé tinha expectativas de que eles seriam escolhidos como sucessores dele? Será que Moshé, alguém tão preocupado com o povo, indicaria pessoas não aptas para sucedê-lo, em especial neste momento tão importante e delicado? Além disso, o Midrash afirma que D'us descartou a escolha dos filhos de Moshé por eles não se ocuparem com o estudo da Torá, mas quando D'us descreveu as qualidades de Yoshua que o faziam apto a ser o novo líder, D'us não disse que era porque ele se ocupava com o estudo da Torá, e sim pois ele chegava cedo e saía tarde para arrumar o Beit Midrash. Por que quando D'us comparou Yoshua com os filhos de Moshé, Ele mencionou características aparentemente tão diferentes?

Explica o Rav Yossef Shalom Elyashiv (Lituânia, 1910 - Israel, 2012) que certamente os filhos de Moshé eram grandes estudiosos e tinham conhecimento de Torá suficiente para se tornarem os novos líderes do povo judeu, e por isso Moshé considerava que eles eram candidatos apropriados para sucedê-lo. Porém, D'us respondeu que o fato de serem grandes estudiosos de Torá não era suficiente garantia que também seriam bons líderes. Quando D'us disse que os filhos de Moshé "se sentavam mas não se ocupavam com o estudo da Torá", não quis dizer que eles não estudavam Torá, e sim que eles estudavam somente para eles mesmos, sem se ocupar com o estudo da Torá dos outros. Para contrastar, D'us ressaltou a característica de Yoshua de arrumar o Beit Midrash, isto é, além dele estudar Torá, ele também se esforçava para arrumar o Beit Midrash, possibilitando que outras pessoas também pudessem estudar, e isto é considerado "se ocupar com o estudo da Torá". Isto nos ensina que quando não nos preocupamos com o estudo da Torá dos outros, é considerado que há algum tipo de falha no nosso próprio estudo da Torá. Mas o que isto significa?

Há uma passagem no Talmud (parte da Torá Oral) relacionada com este conceito. O Talmud (Avodá Zará 9a) afirma que o tempo de existência do mundo material foi dividido em três períodos de 2 mil anos cada. O primeiro período é chamado de "2 mil anos de nada", enquanto o segundo período é chamado de "2 mil anos de Torá". Por que estes nomes? O primeiro período recebe este nome por causa da falta de Torá no mundo, enquanto o segundo período é marcado pelo início da presença da Torá no mundo. O Talmud afirma que os "anos de Torá" tiveram início quando Avraham começou a ensinar Torá ao mundo, como ensina o versículo: "Avram pegou sua esposa Sarai e seu sobrinho Lot... e as almas que eles fizeram em Charan" (Bereshit 12:5). Estas "almas que eles fizerem" referem-se aos idólatras que Avraham havia conseguido trazer de volta aos caminhos de D'us.

Mas nossos sábios afirmam que muito antes de Avraham, grandes pessoas como Adam Harishon, além de Noach e seus descendentes, Shem e Ever, já estudavam Torá. Então por que o Talmud afirma que a época dos "2 mil anos de Torá" começou apenas com Avraham Avinu? Pois Avraham fez algo que nenhum dos ilustres antecessores fez: ele não apenas estudou Torá, mas também ensinou Torá aos outros, inclusive para pessoas que haviam se desviado do caminho de D'us e praticavam idolatria, ajudando-os assim a voltar ao caminho correto. Portanto, vemos do Talmud que a época de "2 mil anos de Torá" somente se iniciou quando a Torá passou a também ser ensinada aos outros.

Porém, qual a conexão entre esta característica de ensinar Torá com o pré-requisito para ser um líder do povo? Por que não é suficiente ser apenas um grande estudioso de Torá? A resposta está em outro ensinamento do Talmud (Sanhedrin 99a), que afirma que o versículo "Pois ele desprezou a palavra de D'us e quebrou Seu mandamento, esta alma certamente será cortada, e seu pecado está sobre ele" (Bamidbar 15:31) refere-se a várias transgressões graves, como negar D'us ou negar a divindade da Torá. O Talmud inclui mais uma transgressão ao qual o versículo se refere: "aquele que estuda Torá e não ensina aos outros".

Mas por que esta rigorosidade apenas pelo fato da pessoa ter estudado e não ter ensinado outras pessoas? Explica o Rabino Yossef Chaim (Iraque, 1832 - 1909), mais conhecido como Ben Ish Chai, que o Talmud é severo com aquele que estuda e não ensina aos outros pois a Torá é eterna, e este caráter eterno é preservado pela transmissão dos seus ensinamentos de uma geração para a próxima geração. Portanto, aquele que estuda e não assume o peso da responsabilidade de ensinar o próximo está prejudicando, com as próprias mãos, a natureza eterna da Torá, pois toda a Torá que ele estudar ficará apenas com ele e não será passada para a próxima geração. O Talmud refere-se de uma maneira tão dura àquele que estuda e não ensina pois, se dependesse dele, a Torá não seria passada para a próxima geração. Portanto, o líder do povo judeu tem também este papel de assegurar que a transmissão esteja ocorrendo de forma correta, preservando a natureza eterna da Torá. Foi neste ponto que os filhos de Moshé, apesar de serem pessoas espiritualmente muito grandes, falharam.

Quando ensinamos Torá aos outros, não estamos fazendo apenas um Chessed (bondade) com os outros, é acima de tudo um Chessed que fazemos conosco, pois isto nos ajuda a desenvolver nossa apreciação pelo caráter eterno da Torá e nos dá o mérito de fazermos parte nesta importante missão de transmitir a Torá para as futuras gerações. Como foi enfatizado pelo Chafetz Chaim, não precisamos ser grandes sábios para sentirmos o peso da responsabilidade, cada judeu tem a obrigação e o mérito de fazer parte desta corrente ininterrupta de transmissão, que se iniciou no Monte Sinai e certamente chegará até a época da vinda do Mashiach.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 25:10-29:40, 1 Rs. 18:46-19:21

 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

DINHEIRO E HONRA - PARASHÁ BALAK 5774

"Diz uma lenda que, pouco antes da criação do ser humano, vários anjos se reuniram e chegaram à conclusão de que se toda a humanidade fosse sempre feliz, as pessoas se acostumariam e não dariam o devido valor para a felicidade. Decidiram então, pelo bem da humanidade, esconder a felicidade. Porém, onde poderiam escondê-la para que ninguém pudesse descobrir facilmente e revelar a todos?

O primeiro anjo propôs escondê-la na montanha mais alta do mundo, mas a ideia foi rapidamente afastada, pois os anjos sabiam que os seres humanos, através de sua força física, algum dia poderiam facilmente subir lá. Outro anjo propôs ocultá-la no fundo do mar, mas foi logo contestado, pois sabiam da curiosidade dos seres humanos, que um dia os levaria a construir algum aparelho que pudesse descer mesmo nos mares mais profundos. Um terceiro anjo sugeriu escondê-la em outro planeta, mas logo também sua sugestão foi vetada, pois sabiam que os seres humanos têm inteligência e algum dia eles construiriam uma nave para poder viajar aos outros planetas. O último anjo, que havia permanecido em silêncio, escutando atenciosamente cada uma das sugestões dos demais, falou:

- Acredito que encontrei um lugar para esconder a felicidade, de forma que a maioria nunca vai encontrá-la com facilidade. Vamos escondê-la dentro deles mesmos. Eles estarão tão ocupados procurando lá fora que nunca a encontrarão"

Infelizmente estamos realmente tão preocupados em procurar nossa felicidade nas aquisições materiais, no "quando eu tiver" ou "quando eu for", que acabamos esquecendo que a felicidade verdadeira está dentro de cada um de nós. Basta só saber procurar.
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A Parashá desta semana, Balak, descreve mais uma das inúmeras tentativas dos nossos inimigos de destruir o povo judeu. Balak, rei de Moav, com medo da aproximação do povo judeu, enviou emissários para contratar o profeta Bilaam para amaldiçoá-los, na esperança de poder vencer a iminente guerra que se travaria entre os dois povos. No final, D'us nos protegeu das maldições de Bilaam e saímos vitoriosos da batalha.

Porém, o que nos chama mais a atenção nesta Parashá é a personalidade contraditória de Bilaam, um profeta que, apesar de seu elevado potencial espiritual, preferiu se deixar levar pelos desejos e se transformou em um modelo de más características. O Pirkei Avót (5:19) nos ensina que Bilaam tinha três traços de caráter extremamente negativos: "Ain Raá" (olhar as pessoas de forma negativa), "Ruach Gevoá" (arrogância) e "Nefesh Rechavá" (ganância).

A ganância de Bilaam pode ser observada em sua conversa com os emissários de Balak. Para tentar convencê-lo a aceitar o "serviço", os emissários disseram: "E então disse Balak ben Tsipor: por favor, não se recuse a vir até mim, pois eu te darei muita honra, e tudo o que você disser eu farei; então por favor vá e amaldiçoe por mim este povo" (Bamidbar 22:16,17). Bilaam respondeu: "Mesmo que Balak me desse sua casa cheia de prata e ouro, eu não poderia transgredir a palavra de D'us, para fazer algo pequeno ou grande" (Bamidbar 22:18). Aparentemente a prova da ganância de Bilaam vem da enorme quantidade de dinheiro mencionada em sua recusa.

Porém, se é daqui que aprendemos a ganância de Bilaam, estão como entender quando um grande Tzadik (Justo) também utiliza a mesma expressão? Nossos sábios ensinam que Rabi Yossei ben Kisma foi abordado por um homem muito rico, que lhe ofereceu milhares de moedas de ouro e pedras preciosas para que ele abandonasse o lugar onde vivia, uma cidade com muitos sábios de Torá, e se mudasse para a cidade daquele homem, onde não haviam sábios de Torá. Rabi Yossei respondeu: "Mesmo se você me desse toda a prata, o ouro e as pedras preciosas do mundo, eu não moraria a não ser em um lugar de Torá" (Pirkei Avót 6:9). Portanto, se Bilaam é considerado um ganancioso por causa da resposta que deu aos emissários de Balak, então o que dizer sobre o Rabi Yossei, que mencionou uma quantia ainda maior do que Bilaam?

Se prestarmos atenção nos detalhes, veremos que há uma diferença muito grande nas duas respostas. Quando o homem tentou persuadir o Rav Yossei a ficar em sua cidade, ele ofereceu uma grande quantidade de dinheiro. Em resposta, o Rav Yossei mencionou que nenhum dinheiro do mundo, nem mesmo muito mais do que o homem havia oferecido, seria suficiente para convencê-lo a sair de perto de um lugar de Torá. Era apropriado para o Rav Yossei mencionar o dinheiro, pois aquele homem havia tentado convencê-lo justamente oferecendo dinheiro. Por outro lado, quando os emissários de Balak vieram tentar convencer Bilaam a amaldiçoar o povo judeu, em nenhum momento eles mencionaram dinheiro, apenas ofereceram honrarias. Mas na resposta de Bilaam ele ressaltou que não aceitaria o "serviço" nem por uma grande quantidade de dinheiro. Isto demonstra que o dinheiro era algo que estava tão presente na sua vida que, mesmo quando nada em relação a dinheiro havia sido mencionado, a primeira coisa que veio à sua cabeça foram as moedas de prata e ouro.

Há ainda um entendimento mais profundo das palavras de Bilaam. Existem dois motivos pelos quais uma pessoa pode ser gananciosa e amar o dinheiro. Um motivo é a busca de prazeres físicos, quando a pessoa quer muito dinheiro para poder preencher seus desejos materiais, como uma casa cinematográfica, um carro de último tipo ou uma viagem exótica. O outro motivo é querer acumular dinheiro para receber honra, pois pessoas com muito dinheiro normalmente são mais respeitadas. Quando os emissários de Balak ofereceram honra a Bilaam, ele respondeu que dinheiro não o faria mudar de ideia. Isto significa que, para Bilaam, dinheiro e honra eram uma coisa só, demonstrando que sua ganância não era motivada apenas por desejos materiais, mas principalmente pela busca de honra. Porém, por que a Torá quis nos ensinar qual era a motivação de Bilaam em sua ganância? Na prática, qual é a diferença entre os dois motivos pelos quais uma pessoa ama o dinheiro?

Responde o Rav Yehonatan Gefen que enquanto o amor pelo dinheiro com o intuito de saciar os desejos físicos é apenas uma vontade do corpo, o amor pelo dinheiro para receber honras é uma vontade da alma. Prazeres físicos não preenchem a alma, mas a honra, um prazer espiritual, é uma das formas através das quais uma alma sedenta de motivação na vida pode encontrar alguma satisfação no mundo material.

Se compararmos as duas motivações do amor pelo dinheiro, certamente a segunda é muito mais perigosa para o ser humano do que a primeira. Quando a pessoa ama o dinheiro como forma de conseguir alcançar prazeres físicos e luxúrias, por se tratar de preencher os desejos do corpo, que é limitado e finito, chega um momento em que a pessoa se sacia, mesmo que seja apenas por pouco tempo. Por exemplo, alguém que está com um desejo incontrolável de comer algo, após comer uma grande quantidade desta comida ele se sente saciado e não tem mais desejo de comer. Inclusive, se ele repetir muitas vezes este tipo de prazer, pode até mesmo enjoar e não se interessar mais por ele. Mas se o amor pelo dinheiro for motivado pela busca de honra, um desejo espiritual que vem da nossa alma infinita e ilimitada, a pessoa nunca vai se sentir saciada. Para esta pessoa, como o dinheiro é um meio de receber honra, e ela está sempre desejando mais honra, portanto ela sempre vai querer mais dinheiro para satisfazer seus desejos.

Quando Bilaam igualou o dinheiro à honra, ficou claro que sua "Nefesh Rechava" (ambição) causou a ele o mais maligno dos amores pelo dinheiro: aquele que emana do desejo por honra. E até onde vão as consequências desta ambição? A resposta está na continuação da Mishná do Pirkei Avót, que diz: "Os estudantes de Avraham comem no Olam Hazé (mundo material) e herdam o Olam Habá (Mundo Vindouro)... mas os estudantes de Bilaam, o malvado, herdam o Guehinom ("inferno") e descem para o poço da destruição" (5:19). Da mesma forma que em relação aos alunos de Avraham estão escrito as consequências de ter boas características neste mundo e no Mundo Vindouro, também em relação às más características dos alunos de Bilaam devemos aplicar o mesmo padrão. Portanto, aquele que apresentam estas más características de Bilaam não sofrerão apenas no Mundo Vindouro, mas também já sofrem muito neste mundo. As pessoas gananciosas, em especial aquelas que vivem atrás de honra e respeito, nunca vão se satisfazer com nada, estarão sempre infelizes, correndo atrás de mais honras e prazeres, e por isso suas vidas neste mundo serão um verdadeiro inferno.

Fica deste ensinamento da Parashá uma importantíssima lição para nossas vidas: a incansável busca pelos bens materiais e pela honra nunca dará ao ser humano a verdadeira e duradoura satisfação. Precisamos do dinheiro para sobreviver, e devemos utilizá-lo como um meio para atingir o nosso objetivo de crescimento espiritual, mas devemos estar sempre atentos para que o dinheiro não se torne um objetivo por si só e destrua nossas vidas. Pois somente quando ocuparmos nosso tempo desenvolvendo um relacionamento verdadeiro com a nossa espiritualidade é que teremos alcançado a fonte de satisfação duradoura.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
Nm. 22:2-25:9, Mq 5:6-6:8