sábado, 12 de julho de 2014

GARANTINDO A TRANSMISSÃO - PARASHÁ PINCHÁS 5774

"Marcelo, um grande investidor, foi visitar uma pequena cidade do interior, muito rústica, onde ele tinha alguns negócios. Ele foi recebido por José, um dos moradores, que foi muito hospitaleiro e lhe serviu uma xícara de chá. Mas quando Marcelo bebeu o primeiro gole, precisou cuspir tudo, de tão ruim que estava o gosto. Prestando atenção, reparou que no fundo da xícara havia areia. Muito irritado, perguntou a José se era assim que eles recebiam alguém importante naquela cidade, servindo chá com areia. José, muito envergonhado, tentou se justificar, explicando que eles não tinham na cidade um sistema de bombeamento e filtragem da água. Era preciso ir buscar água no rio, e ela vinha sempre cheia de areia. Marcelo percebeu então como aquela cidade ainda estava atrasada em termos de saneamento básico. Investiu muito dinheiro para que fosse feita uma rede de bombeamento e filtragem da água do rio.

Meses depois, Marcelo escutou que aquela pequena cidade havia sido completamente consumida pelas chamas de um grande incêndio. Inconformado, perguntou a José o que havia acontecido, e ele explicou:

- Caro Sr. Marcelo, o sistema de filtragem está começando a ser implantado, e como o reservatório de água filtrada ainda é pequeno, não havia água suficiente para apagar o fogo...

- Mas será que nesta cidade ninguém pensa? – interrompeu Marcelo, aos berros - Para fazer chá é necessário utilizar água filtrada, mas para apagar um incêndio, qualquer água serve!!!"

O Chafetz Chaim utilizava esta história para explicar que antigamente, quando a maioria do povo estava conectada à Torá e às Mitzvót, podíamos nos dar ao luxo de usar apenas água filtrada, isto é, deixar a responsabilidade da transmissão da Torá a cargo apenas dos grandes sábios de cada geração. Mas nos nossos dias, quando o fogo da assimilação e da ignorância consome o povo judeu, é responsabilidade de cada um de nós, mesmo que somos apenas "água com areia", garantir a transmissão da Torá para as futuras gerações.

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No final da Parashá desta semana, Pinchás, Moshé Rabeinu recebeu de D'us o aviso que sua morte se aproximava. Mas ao invés de pensar em suas próprias necessidades, Moshé se preocupou com o povo judeu e imediatamente pediu para que D'us apontasse um novo líder, capaz de conduzir o povo rumo à Terra de Israel. D'us apontou o dedicado aluno de Moshé, Yoshua, pois ele tinha todas as características necessárias para ser um bom líder do povo judeu.

Há um interessante Midrash (parte da Torá Oral) que detalha um pouco mais a conversa de Moshé com D'us. O Midrash afirma que Moshé pediu que seus próprios filhos fossem seus sucessores, mas D'us recusou, afirmando: "Seus filhos se sentam, mas não se ocupam com o estudo da Torá". Em relação à escolha de Yoshua, D'us afirmou: "Ele chega cedo e sai tarde do Beit Midrash (Centro de estudos de Torá), e ele arruma os bancos e cobre as mesas".

Porém, deste Midrash surgem duas grandes perguntas. Em primeiro lugar, se os filhos de Moshé não se ocupavam com o estudo da Torá, então como pode ser que Moshé tinha expectativas de que eles seriam escolhidos como sucessores dele? Será que Moshé, alguém tão preocupado com o povo, indicaria pessoas não aptas para sucedê-lo, em especial neste momento tão importante e delicado? Além disso, o Midrash afirma que D'us descartou a escolha dos filhos de Moshé por eles não se ocuparem com o estudo da Torá, mas quando D'us descreveu as qualidades de Yoshua que o faziam apto a ser o novo líder, D'us não disse que era porque ele se ocupava com o estudo da Torá, e sim pois ele chegava cedo e saía tarde para arrumar o Beit Midrash. Por que quando D'us comparou Yoshua com os filhos de Moshé, Ele mencionou características aparentemente tão diferentes?

Explica o Rav Yossef Shalom Elyashiv (Lituânia, 1910 - Israel, 2012) que certamente os filhos de Moshé eram grandes estudiosos e tinham conhecimento de Torá suficiente para se tornarem os novos líderes do povo judeu, e por isso Moshé considerava que eles eram candidatos apropriados para sucedê-lo. Porém, D'us respondeu que o fato de serem grandes estudiosos de Torá não era suficiente garantia que também seriam bons líderes. Quando D'us disse que os filhos de Moshé "se sentavam mas não se ocupavam com o estudo da Torá", não quis dizer que eles não estudavam Torá, e sim que eles estudavam somente para eles mesmos, sem se ocupar com o estudo da Torá dos outros. Para contrastar, D'us ressaltou a característica de Yoshua de arrumar o Beit Midrash, isto é, além dele estudar Torá, ele também se esforçava para arrumar o Beit Midrash, possibilitando que outras pessoas também pudessem estudar, e isto é considerado "se ocupar com o estudo da Torá". Isto nos ensina que quando não nos preocupamos com o estudo da Torá dos outros, é considerado que há algum tipo de falha no nosso próprio estudo da Torá. Mas o que isto significa?

Há uma passagem no Talmud (parte da Torá Oral) relacionada com este conceito. O Talmud (Avodá Zará 9a) afirma que o tempo de existência do mundo material foi dividido em três períodos de 2 mil anos cada. O primeiro período é chamado de "2 mil anos de nada", enquanto o segundo período é chamado de "2 mil anos de Torá". Por que estes nomes? O primeiro período recebe este nome por causa da falta de Torá no mundo, enquanto o segundo período é marcado pelo início da presença da Torá no mundo. O Talmud afirma que os "anos de Torá" tiveram início quando Avraham começou a ensinar Torá ao mundo, como ensina o versículo: "Avram pegou sua esposa Sarai e seu sobrinho Lot... e as almas que eles fizeram em Charan" (Bereshit 12:5). Estas "almas que eles fizerem" referem-se aos idólatras que Avraham havia conseguido trazer de volta aos caminhos de D'us.

Mas nossos sábios afirmam que muito antes de Avraham, grandes pessoas como Adam Harishon, além de Noach e seus descendentes, Shem e Ever, já estudavam Torá. Então por que o Talmud afirma que a época dos "2 mil anos de Torá" começou apenas com Avraham Avinu? Pois Avraham fez algo que nenhum dos ilustres antecessores fez: ele não apenas estudou Torá, mas também ensinou Torá aos outros, inclusive para pessoas que haviam se desviado do caminho de D'us e praticavam idolatria, ajudando-os assim a voltar ao caminho correto. Portanto, vemos do Talmud que a época de "2 mil anos de Torá" somente se iniciou quando a Torá passou a também ser ensinada aos outros.

Porém, qual a conexão entre esta característica de ensinar Torá com o pré-requisito para ser um líder do povo? Por que não é suficiente ser apenas um grande estudioso de Torá? A resposta está em outro ensinamento do Talmud (Sanhedrin 99a), que afirma que o versículo "Pois ele desprezou a palavra de D'us e quebrou Seu mandamento, esta alma certamente será cortada, e seu pecado está sobre ele" (Bamidbar 15:31) refere-se a várias transgressões graves, como negar D'us ou negar a divindade da Torá. O Talmud inclui mais uma transgressão ao qual o versículo se refere: "aquele que estuda Torá e não ensina aos outros".

Mas por que esta rigorosidade apenas pelo fato da pessoa ter estudado e não ter ensinado outras pessoas? Explica o Rabino Yossef Chaim (Iraque, 1832 - 1909), mais conhecido como Ben Ish Chai, que o Talmud é severo com aquele que estuda e não ensina aos outros pois a Torá é eterna, e este caráter eterno é preservado pela transmissão dos seus ensinamentos de uma geração para a próxima geração. Portanto, aquele que estuda e não assume o peso da responsabilidade de ensinar o próximo está prejudicando, com as próprias mãos, a natureza eterna da Torá, pois toda a Torá que ele estudar ficará apenas com ele e não será passada para a próxima geração. O Talmud refere-se de uma maneira tão dura àquele que estuda e não ensina pois, se dependesse dele, a Torá não seria passada para a próxima geração. Portanto, o líder do povo judeu tem também este papel de assegurar que a transmissão esteja ocorrendo de forma correta, preservando a natureza eterna da Torá. Foi neste ponto que os filhos de Moshé, apesar de serem pessoas espiritualmente muito grandes, falharam.

Quando ensinamos Torá aos outros, não estamos fazendo apenas um Chessed (bondade) com os outros, é acima de tudo um Chessed que fazemos conosco, pois isto nos ajuda a desenvolver nossa apreciação pelo caráter eterno da Torá e nos dá o mérito de fazermos parte nesta importante missão de transmitir a Torá para as futuras gerações. Como foi enfatizado pelo Chafetz Chaim, não precisamos ser grandes sábios para sentirmos o peso da responsabilidade, cada judeu tem a obrigação e o mérito de fazer parte desta corrente ininterrupta de transmissão, que se iniciou no Monte Sinai e certamente chegará até a época da vinda do Mashiach.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 25:10-29:40, 1 Rs. 18:46-19:21

 

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