sábado, 28 de junho de 2014

SANTIFICANDO O NOME DE D'US - PARASHÁ CHUKAT 5774

"No dia 19 de agosto de 2003, um terrível atentado terrorista despedaçou o coração do povo judeu. O ônibus número 2, da companhia israelense Egged, que havia recém saído do Kotel (Muro das Lamentações) e estava completamente lotado, foi explodido por um terrorista suicida. 24 pessoas morreram, entre elas bebês e crianças, e mais de 130 ficaram feridas.

Um dos feridos era Yossef Rosenbaum (nome fictício), um judeu religioso que precisou ficar alguns dias internado no hospital por causa dos ferimentos causados pelos estilhaços. Um repórter veio ao hospital para entrevistá-lo e saber mais detalhes sobre o atentado. Yossef, apesar das dores que ainda sentia, respondeu a todas as perguntas do repórter com paciência. Quando a entrevista terminou e o repórter preparava-se para sair, Yossef chamou-o e disse:

- Será que você poderia me fazer um grande favor? Quando eu entrei no ônibus com meus três filhos, eu tive que entrar pela porta de trás, pois estava lotado. Eu estava esperando o ônibus esvaziar um pouco para poder chegar até o motorista e pagar as passagens. Porém, infelizmente a explosão aconteceu antes de eu ter a oportunidade de pagar. Portanto, será que você poderia pedir para algum funcionário da Egged vir ao hospital para que eu possa pagar pelas passagens?

Certamente o repórter aprendeu naquele dia uma incrível lição de honestidade e temor a D'us. Foi um ato de Kidush Hashem (santificação do nome de D'us), que podemos fazer mesmo nas situações mais cotidianas da vida, simplesmente sendo honestos. (História Real)
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Nesta semana lemos a Parashá Chukat que fala, entre outros assuntos, sobre um erro de Moshé que o fez perder o direito de entrar na Terra de Israel. O povo judeu estava no deserto e se revoltou contra Moshé por causa da falta de água. D'us ordenou que Moshé desse água ao povo de uma forma milagrosa, falando com uma pedra, mas ao invés de falar com a pedra, Moshé a golpeou com seu cajado. A Torá então nos conta que Moshé foi castigado, como está escrito: "E disse D'us para Moshé e para Aharon: pelo fato que vocês não confiaram em mim, para Me santificar diante de todos os Filhos de Israel, por isso vocês não trarão este povo para a terra que Eu dei para vocês" (Bamidbar 20:12). Deste versículo muito comentaristas da Torá aprendem que o principal erro de Moshé neste episódio foi não ter santificado o nome de D'us diante do povo judeu.

Mas desta explicação fica uma grande pergunta: por que foi considerado menos Kidush Hashem as pessoas terem recebido água retirada de uma pedra através do cajado de Moshé? Não foi um enorme milagre o fato de mais de 3 milhões de pessoas terem recebido água para beber, retirada de uma pedra no meio do deserto? Qual teria sido a diferença se Moshé tivesse falado com a pedra, ao invés de golpeá-la?

Afirma o Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 - Egito, 1204), que todos os milagres que já ocorreram e os que ainda vão ocorrer foram originalmente programados nos 6 dias da Criação. Por exemplo, quando D'us criou os mares no segundo dia, Ele incorporou nas propriedades da água o potencial dela se dividir caso Ele achasse isso necessário. Foi esta característica que possibilitou que o Mar Vermelho se abrisse quando o povo judeu saiu do Egito, sem a necessidade de nenhum tipo de alteração nas propriedades da água, pois a habilidade de se abrir já estava incorporada nela desde a Criação do mundo.

Porém, esta afirmação do Rambam parece contradizer um ensinamento dos nossos sábios: "10 coisas foram criadas no crepúsculo da véspera do primeiro Shabat: a boca da terra (que engoliu Korach), a boca do poço (de Miriam, que fornecia água para o povo judeu no deserto), a boca da mula (de Bilaam, que deu uma bronca nele)..." (Pirkei Avót 5:6). Porém, se o Rambam está correto em sua afirmação de que todos os milagres foram programados na natureza no momento em que os elementos associados a este milagre estavam sendo criados, então por que estes 10 milagres citados no Pirkei Avót foram criados apenas na véspera do Shabat, e não cada um junto com seu elemento correspondente?

Explica o Rav Yohanan Zweig que todas as criações podem ser classificadas dentro de 4 níveis de existência: "Domem" (Inanimados), "Tsomeach" (Vegetais), "Chai" (Animais) e "Medaber" (Ser humano, que tem a habilidade da fala). O que é um milagre aberto? É quando D'us interfere nas leis da natureza, como quando Ele transformou as águas do Egito em sangue ou trouxe uma enorme quantidade de insetos e animais ferozes de um lugar para o outro. Mas este é um tipo mais baixo de interferência de D'us, no qual não há mudança no nível de existência dos elementos envolvidos. Por exemplo, tanto a água quanto o sangue são "Domem", e a transferência dos animais e insetos também não muda seu nível de existência como um "Chai".

Já os 10 milagres criados no crepúsculo da véspera do primeiro Shabat são milagres únicos e especiais, pois foram catalisadores que tornaram possível para outras criações transcenderem, de um nível mais baixo para um nível mais alto de existência. Por exemplo, o milagre da boca da mula de Bilaam permitiu que um ser "Chai" se transformasse em um "Medaber". Também Korach não foi simplesmente tragado por um buraco na terra, a Torá descreve que a terra "abriu sua boca", isto é, se transformou em uma criatura viva, passando de "Domem" para "Chai".

De acordo com o Rav Yehuda Loew (Praga, 1525 - 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, quanto mais próximo do Shabat algo foi criado, mais esta criação extraiu sua energia do Shabat para sua existência. Por isso os milagres que eram mais sobrenaturais, que envolviam inclusive mudanças de um nível para outro, foram criados mais próximos do Shabat, para que pudessem extrair o máximo de energia possível.

Explica Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, que o poço de Miriam mencionado no Pirkei Avót era a mesma pedra que Moshé golpeou. Este poço já havia sido criado no crepúsculo da véspera de Shabat, justamente por conter o potencial de transcender e mudar de nível. Isto quer dizer que se Moshé tivesse falado com a pedra, ela teria se transformado de um "Domem" em um "Chai", um objeto vivo, com o qual seria possível interagir através da fala. Mas ao bater na pedra, Moshé tratou-a apenas como um "Domem", perdendo a oportunidade única de santificar o nome de D'us através de um milagre que transcendia os níveis de existência das criaturas. Isto mostra o quanto é grave deixarmos de aproveitar oportunidades nas quais podemos santificar o nome de D'us.

Este ensinamento também é muito importante para nós. Apesar de já não termos mais profetas como Moshé, que podiam fazer milagres diante de todo o povo, e nem milagres abertos que envolvem grandes intervenções de D'us na natureza, mesmo assim ainda temos o potencial de, nos atos mais simples do cotidiano, santificar o nome de D'us.

Vivemos em uma época difícil, onde a enganação e a desonestidade são normais e aceitáveis. Nossa sociedade se acostumou a viver de acordo com a "Lei de Gerson", a filosofia de sempre levar vantagem em tudo. As notícias dos jornais nos desanimam, pois parece que não há fim para tanta malandragem e desonestidade. Mas isto não é motivo para desistirmos de lutar, ao contrário, é uma grande oportunidade. Quando uma vela está acesa durante o dia, ela passa despercebida aos olhos das pessoas, mas uma vela na escuridão chama muita atenção. O mundo atual se compara a uma grande escuridão espiritual, e nossos bons atos se comparam a uma pequena vela que acendemos. Cada bom ato faz diferença, cada ato de honestidade chama a atenção de todos. Um motorista de taxi que devolve uma carteira com dinheiro esquecida no seu taxi vira um herói e aparece na manchete de todos os jornais, apesar de não ter feito mais do que sua obrigação, já que a Torá nos obrigar a devolver um objeto encontrado. A escuridão é tanta que o brilho de um pequeno bom ato tem o potencial de iluminar muito mais. Alguns atos como devolver o troco recebido a mais, tratar bem os funcionários e pagá-los na data certa, devolver um objeto encontrado e não utilizar objetos de outras pessoas sem permissão, apesar de serem pequenas atitudes, deixam uma grande marca. Esta é a nossa oportunidade de santificar o nome de D'us através de pequenos atos de honestidade. E se cada um conseguir acender sua pequena vela, conseguiremos juntos transformar o mundo em um lugar muito mais iluminado.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
 

Nm. 19:1-22:1, Jz. 11:1-33

sábado, 21 de junho de 2014

DISCUSSÃO POSITIVA - PARASHÁ KORACH 5774

"Rodrigo, um famoso palestrante, estava dando um curso para um enorme público. No final da aula, como ainda havia sobrado alguns minutos, ele permitiu que o público fizesse perguntas. Quem tivesse interesse poderia escrever sua pergunta em um papel e encaminhar a ele.

O sistema estava funcionando bem. As perguntas chegavam por escrito a Rodrigo, que as lia em voz alta e imediatamente respondia. Até que Rodrigo abriu um dos papéis e viu que estava escrito apenas uma palavra: "Idiota". Em um primeiro momento, Rodrigo ficou furioso. Pensou em tentar descobrir quem era o engraçadinho que havia mandado aquele papel e fazer um escândalo com ele, ensinando-lhe boas maneiras. Mas depois ele se acalmou e decidiu que não valia a pena discutir, pois certamente tratava-se de alguém de baixo nível, que não escutaria sua bronca. Rodrigo teve então uma ideia genial: pegou o papel na mão, leu a ofensa em voz alta, olhou fixamente para o público e disse:

- Senhores e senhoras, há anos eu dou palestras pelo Brasil inteiro, e é muito comum eu permitir que pessoas façam perguntas no final. Na maioria das vezes, as pessoas escrevem a pergunta mas esquecem de assinar o nome. Porém, desta vez aconteceu algo completamente diferente, que nunca havia acontecido antes. A pessoa que mandou o bilhete esqueceu-se de escrever a pergunta, mas lembrou-se de assinar o nome..."

Discussões somente são válidas se nos ajudam a esclarecer algo. Mas quando se tratam de pessoas que não estão dispostas a escutar, então o ideal é não se envolver em nenhum tipo de discussão, pois certamente as consequências serão apenas gritos e aborrecimentos, que não levarão a lugar nenhum.
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Na Parashá desta semana, Korach, a Torá nos ensina a força destrutiva de uma "Machloket" (disputa). Korach, motivado pela inveja e pela busca de Cavód (honra), organizou uma revolta contra Moshé Rabeinu, seu primo, pois estava incomodado com sua posição de destaque dentro do povo judeu. Através de deboches e piadas, que ridicularizavam os ensinamentos de Moshé diante de todo o povo, Korach conseguiu convencer um enorme grupo de pessoas a se juntar a ele na revolta, na tentativa de derrubar Moshé e assumir seu cargo. As consequências foram trágicas, com a morte de Korach e todo o seu grupo através de castigos aplicados diretamente por D'us.

Porém, apesar deste lado extremamente destruidor mostrado pela Torá, nossos sábios ensinam que nem toda Machloket realmente é negativa, como está escrito na Mishná (parte da Torá Oral): "Toda Machloket que é Leshem Shamaim (em nome dos Céus), no final se manterá. E aquela que não é Leshem Shamaim, no final não se manterá. Qual é a Machloket Leshem Shamaim? É a Machloket entre Hilel e Shamai. E a que não é Leshem Shamaim? É a Machloket de Korach e seu grupo" (Pirkei Avót 5:17). Mas afinal, o que é considerado uma Machloket Leshem Shamaim? E o que significa dizer que uma Machloket se manterá ou não se manterá no final?

Explica o Rav Ovadia MiBarternura  (Itália, 1445 - Israel, 1515) que uma Machloket Leshem Shamaim é quando surge uma dúvida e dois lados disputam, com as intenções mais puras, para tentar esclarecer a verdade e descobrir o que é o correto. Este tipo de Machloket no final se manterá, isto é, levará os dois lados envolvidos ao objetivo inicial, que é o esclarecimento da verdade. Este é o caso das centenas de discussões entre dois grandes sábios, Shamai e Hilel, que estão gravadas para sempre nos diversos Tratados do Talmud (parte da Torá Oral). Não há dúvidas de que as discussões deles não vinham de uma vontade de "vencer a briga a qualquer custo", apenas para mostrar quem tem razão. Todo o intuito de suas discussões era para definir exatamente qual é a vontade de D'us em determinados assuntos. Portanto, vemos que esta Machloket se manteve, pois as discussões levaram ao estabelecimento de muitas das leis que constam até hoje na Halachá (Código judaico de Leis).

E qual é a Machloket que não é Leshem Shamaim? É aquela na qual o interesse, motivado pelo orgulho, é apenas de "vencer a briga". Como a disputa é por motivos egoístas, sem interesse em escutar o que o outro tem a dizer, consequentemente um lado nunca procurará entender os argumentos do outro, como ocorreu no caso da Machloket de Korach. É interessante perceber que a Mishná não escreve "Machloket de Korach e Moshé", e sim "Machloket de Korach e seu grupo", pois eles estavam tão focados na busca de honra e poder que não escutaram nada do que Moshé tinha para explicar. Como eles não abriram seus ouvidos para escutar o outro lado, não é considerado que eles discutiram com Moshé, e sim que discutiram apenas entre eles mesmos.

É por isso que a Mishná ensina que este tipo de Machloket não se mantém, isto é, nunca chegará a esclarecer nada e nunca levará a um consenso. Se Korach tivesse prestado atenção aos argumentos de Moshé, certamente teria percebido que estava enganado. Mas como ele preferiu continuar na sua "surdez", tristemente a história terminou com trágicas consequências para ele e todos os seus seguidores.

Devemos ter o cuidado de nunca entrar em uma discussão a não ser que seja com o único objetivo de buscar o esclarecimento da verdade. Se a Machloket se desvia deste propósito e se transforma em uma luta pela vitória, marcada pela obstinação e pela falta de vontade de escutar o que o outro lado tem a dizer, então certamente esta Machloket não é Leshem Shamaim e não terá consequências positivas.

Nossos sábios ensinam algo muito interessante sobre o enorme mérito daquele que, em meio a uma discussão, sabe escutar o outro lado. As discussões entre Shamai e Hilel continuaram através de seus alunos, chamados pelo Talmud de "Beit Shamai" e "Beit Hilel". O Talmud (Eruvin 13b) afirma que uma Voz Celestial anunciou que a Halachá (lei) vai de acordo com a opinião de Beit Hilel. Por qual mérito Beit Hilel teve a Halachá fixada de acordo com a sua opinião? O Talmud diz que os alunos de Hilel eram gentis e humildes, estudavam suas próprias opiniões e também as de Beit Shamai, e eram tão humildes que mencionavam as opiniões de Beit Shamai antes das suas próprias opiniões. Isto nos ensina que os alunos de Hilel sempre davam sua opinião apenas depois de levarem em consideração a opinião dos alunos de Shamai, demonstrando o quanto era uma Machloket Leshem Shamaim.

Acima de tudo, o Talmud nos ensina que escutar a opinião dos outros agrada a D'us, pois é uma demonstração de humildade, de que sempre há algo para aprender e que não estamos sempre com a razão. A palavra "Cavód" (honra) vem da mesma raiz da palavra "Coved", que significa "peso". Dar Cavód ao próximo é saber dar o devido peso às palavras ditas pelos outros. É realmente levar em consideração, em uma discussão, o que os outros opinam, questionando sinceramente se a nossa opinião é realmente a correta. É saber escutar até o fim o que o outro tem a dizer, sem interrompê-lo na metade. Mas ao contrário, quando achamos que estamos sempre certos e a opinião dos outros não é importante, isto é uma demonstração de arrogância, uma característica muito desprezada por D'us.

Que possamos nos afastar de Machlokot como a de Korach e seu grupo, para que possamos ter mais paz no mundo, em especial dentro do povo judeu. E que pelo mérito de sabermos escutar o próximo, D'us possa ter misericórdia de todos nós, e os três jovens sequestrados em Israel possam voltar, sãos e salvos, para suas casas.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/

Nm. 16:1-18:32, 1 Sm. 11:14-12:22

sexta-feira, 13 de junho de 2014

CONSCIÊNCIA DOS NOSSOS ERROS - PARASHÁ SHELACH 5774

"Rogério contratou um jardineiro para a manutenção do seu jardim. Era um rapaz muito jovem, aparentando ter pouca experiência, mas se mostrou muito esforçado. Quando terminou o serviço, o jardineiro pediu para utilizar o telefone. Rogério, que ficou na sala ao lado, não pôde deixar de ouvir a conversa. O rapaz ligou para uma mulher e perguntou se ela precisava de um jardineiro. Ela agradeceu, mas respondeu que já tinha um. O jovem não desistiu e explicou que além de aparar a grama também tirava o lixo, mas novamente a mulher recusou, argumentando que seu jardineiro também fazia isso. O jovem insistiu mais uma vez, garantindo que limpava bem as ferramentas no fim do trabalho e que nunca deixava um cliente sem um pronto atendimento, porém novamente a mulher recusou, afirmando que tudo isso ela já tinha com seu jardineiro atual. Em uma última tentativa, o jovem falou que o seu preço era muito bom, mas a mulher respondeu firmemente que não estava interessada, pois seu jardineiro também tinha um preço muito bom. Quando o jovem jardineiro desligou o telefone, Rogério sentiu muita pena dele e tentou consolá-lo:

- Não se preocupe, rapaz. Você é esforçado, certamente conseguirá outros clientes.

- Não estou preocupado - respondeu o jovem, abrindo um enorme sorriso - pois eu já sou o jardineiro dela.

- Então por que você ligou para ela oferecendo seus serviços? - perguntou Rogério, confuso.

- Fiz isto apenas para medir o quanto ela estava satisfeita comigo - respondeu o jardineiro - Assim eu posso saber onde preciso melhorar, para fazer sempre meu trabalho da melhor maneira possível."

Teríamos a coragem de fazer a mesma pesquisa feita por este jardineiro? Nos questionamos constantemente para saber se realmente nossos atos estão sempre corretos, ou acabamos nos acomodando e acreditando que nós sempre estamos certos e são sempre os outros que fazem coisas erradas?

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Na Parashá desta semana, Shelach, o povo judeu estava prestes a entrar na Terra de Israel, mas ao invés dos judeus confiarem em D'us, eles preferiram enviar espiões para ver como era a terra. Infelizmente aquela falta de Emuná (fé) teve consequências trágicas. Dos 12 espiões enviados, 10 voltaram falando mal da terra, causando um enorme desespero no povo e um consequente choro. D'us decretou que aquela geração inteira não teria mais o mérito de entrar na Terra de Israel. Apenas 2 espiões conseguiram escapar da transgressão: Yoshua e Kalev. Como eles conseguiram resistir à tentação de se juntar aos outros espiões?

Antes dos espiões partirem, a Torá diz que Moshé acrescentou uma letra ao nome de Yoshua, que até aquele momento se chamava "Hoshea". Rashi (França, 1040 - 1105), comentarista da Torá, explica que Moshé rezou por Yoshua, para que ele fosse salvo do teste de querer se unir aos outros espiões, e a manifestação desta Tefilá (reza) foi o acréscimo da letra "Iud" no nome dele. Poucos versículos depois, quando a Torá descreve os primeiros passos dos espiões já na Terra de Israel, Rashi explica que Kalev se separou do grupo e foi até Chevron, para rezar no túmulo dos patriarcas e pedir para ser protegido das más influências dos outros espiões. Portanto, a Torá nos ensina que o que salvou Yoshua e Kalev da transgressão foi a força da Tefilá.

Porém, aparentemente este ensinamento vai diretamente contra um princípio citado pelos nossos sábios no Talmud (Brachót 33b): "Tudo depende dos Céus, menos o temor aos Céus". Isto quer dizer que D'us controla todos os detalhes do que ocorre nas nossas vidas, mas ao mesmo tempo Ele nos deu o livre arbítrio, isto é, a habilidade de escolher entre o certo e o errado, deixando isto completamente nas mãos do ser humano. Quando rezamos para que D'us nos ajude com coisas que não estão sob nosso controle, como a saúde e o sustento, que dependem única e exclusivamente da Supervisão Divina, certamente esta Tefilá pode ser muito benéfica e nos ajudar. Porém, rezar para não cometer uma transgressão parece ser algo inútil, já que a decisão de cometer ou não uma transgressão não está nas mãos de D'us, é algo que está completamente sob nosso controle. Portanto, como pode ser que o que salvou Yoshua e Kalev de cometerem uma transgressão foi a Tefilá, se a decisão de transgredir ou não estava apenas nas mãos deles mesmos?

Responde o Rabino Yossef Chaim (Iraque, 1832 - 1909), mais conhecido como Ben Ish Chai, que há duas formas de uma pessoa transgredir. Uma forma é quando a pessoa tem total claridade que um ato é proibido, mas apesar disso, movida pelos seus desejos, ela decide fazê-lo, com total consciência de que está cometendo um erro. Outra forma é quando o Yetser Hará (má inclinação) da pessoa consegue obscurecer sua capacidade de discernimento e a convence que aquela transgressão é, na verdade, um ato permitido, possibilitando-a de racionalizar que ela não está cometendo absolutamente nenhum erro.

O princípio de "tudo depende dos Céus, menos o temor aos Céus" somente se aplica à primeira forma de transgressão, quando é completamente claro para a pessoa que ela está cometendo um erro. Neste caso, realmente não há nenhum benefício em rezar para que D'us nos proteja da transgressão, pois isto está sob nosso controle, e D'us não interfere no nosso livre arbítrio. Porém, em relação ao segundo tipo de teste, quando a pessoa sinceramente acredita que não é uma transgressão, e o que causa o problema é a falta de claridade sobre o que é correto fazer, então a situação já não está mais completamente nas mãos da pessoa. Neste caso, quando a pessoa quer fazer o que é correto mas sabe que tem risco de ser enganada pelo Yetser Hará, então ela pode direcionar seu coração para D'us e pedir ajuda para que a verdade não seja obscurecida através de racionalizações. Portanto, nesta situação certamente a Tefilá é benéfica e pode ajudar a evitar as transgressões.

O Ben Ish Chai ressalta que Yoshua e Kalev enfrentaram o segundo tipo de teste. Os espiões eram gigantes espirituais, certamente não iriam deliberadamente denegrir a terra prometida por D'us sem nenhuma justificativa para seu comportamento. Ele explica que quando os espiões viram a enorme prosperidade da Terra de Israel, eles tiveram medo que caso descrevessem a verdadeira situação, o povo entraria em Israel com motivações incorretas, apenas focando nos ganhos materiais que poderiam ter, e não na possibilidade de poder cumprir todas as Mitzvót. Por isso eles decidiram falar mal da terra, na esperança de que o povo judeu, mesmo escutando as más notícias, decidiria entrar em Israel com motivações completamente espirituais e, com isso, receberiam uma recompensa muito maior. Porém, esta racionalização era apenas uma tentativa do Yetser Hará de impedir que o povo judeu entrasse na Terra de Israel, o que de fato aconteceu. Foi por isso que Moshé rezou, com sucesso, para que Yoshua, seu aluno mais próximo, fosse protegido de racionalizações deste tipo, que o faria acreditar que falar mal de Israel era uma grande Mitzvá. De forma similar, Kalev rezou para que pudesse manter a sua claridade e assim se proteger das armadilhas do Yetser Hará.

Aprendemos do Ben Ish Chai que há duas maneiras de uma pessoa transgredir: ou a pessoa transgride de forma intencional, ou a pessoa é enganada pelo seu Yetser Hará de forma que ela pensa que não está cometendo nenhuma transgressão. O mais grave dos dois desafios é certamente o segundo, pois quando a pessoa tem claridade dos seus atos, por mais que faça algo deliberadamente errado, ela tem grandes chances de futuramente se arrepender e não voltar a errar mais. Porém, quando o erro é fruto da falta de claridade, é muito provável que a pessoa repetirá o mesmo erro até o fim da vida, pois não entende que está fazendo algo errado, ao contrário, muitas vezes pensa que está até mesmo fazendo uma Mitzvá.

Segundo o Rav Chaim Vologziner (Lituânia, 1749 - 1821), esta falta de claridade surgiu após o erro de Adam Harishon (Adão). Antes de cometer a transgressão de comer o fruto do conhecimento do bem e do mal, ele tinha total claridade do que era bom e o que era mal. As coisas eram tão claras que fazer uma transgressão era tão palpável quando colocar a mão no fogo. Não havia racionalização, o prejuízo causado por uma transgressão era óbvio. Mas quando ele transgrediu, trouxe para dentro de si a mistura do bem e do mal, a confusão. A consequência foi que perdemos a nossa claridade sobre a natureza do mal, a ponto de muitas vezes não termos mais discernimento sobre o que é bom e o que é ruim.

Se alguém nos oferecesse dinheiro para que falássemos mal publicamente de uma pessoa, nunca aceitaríamos, mesmo se o valor fosse alto, pois intelectualmente entendemos o dano espiritual causado pelo Lashon Hará (maledicência), e sabemos que o prejuízo espiritual eterno é muito maior do que o ganho material passageiro. Mas então por que falamos tanto Lashon Hará, e de graça? Pois deixamos que nosso Yetser Hará nos engane. Procuramos permissões onde elas não existem, nos apoiamos em exceções que não se aplicam ao caso, e transgredimos com a sensação de que acabamos de cumprir uma grande Mitzvá. Isto somente dificulta nosso arrependimento e o conserto dos nossos maus atos.

Como buscamos justificativas para a maioria dos nossos erros, devemos sempre fazer Tefilá para que D'us nos salve do desafio de sermos enganados pelo Yetser Hará. Pelo fato do nosso Yetser Hará estar constantemente buscando formas de nos fazer transgredir, precisamos estar sempre atentos para não sermos pegos na armadilha das racionalizações. Além disso, é importante a reflexão sincera e constante dos nossos atos, pois ela é a principal ferramenta para termos claridade, e nos permite andar nos caminhos corretos e cumprir nosso objetivo de vida.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 13:1-15:41, Js 2:1-24
 

domingo, 8 de junho de 2014

OS PRESENTES DA VIDA- PARASHÁ BEHALOTECHÁ 5774

"Carlos e sua turma, adolescentes alegres e de bem com a vida, foram à festa de aniversário de uma amiga e resolveram, por brincadeira, entregar um presente diferente à aniversariante. Ela ficou contente quando recebeu uma enorme caixa embrulhada. Ela abriu a caixa na frente de todos, devagarzinho, mas para sua surpresa encontrou outra caixa, um pouco menor. Ao abri-la, tornou a encontrar outra caixa, e mais outra, em uma sucessão de embrulhos e caixas que parecia não ter fim. Ele tinha passado um bom tempo desembrulhando caixas, com a ajuda dos convidados, quando finalmente encontrou uma caixinha de madeira, onde estava um lindo anel de ouro, que a deixou emocionada.

Anos mais tarde, cada um daquela turma já tinha seguido um caminho diferente na vida. Mas a brincadeira das caixas nunca mais saiu da cabeça de Carlos. Apesar do anel talvez nem mais existir, ele sabia que aquele presente nunca mais seria esquecido por ninguém, pois ele trazia uma incrível mensagem: a cada momento, a vida está nos presenteando com oportunidades. Mas estes presentes estão quase sempre muito bem embrulhados, por isso não os vemos com facilidade. É preciso treinar nossa forma de observar e desenvolver nossa sensibilidade. É preciso paciência para desembrulhá-los através da constante reflexão, pois só encontram as oportunidades quem está preparado para recebê-las.

A vida começa a ser bem vivida a partir do momento em que aprendemos a desembrulhar os presentes que ela nos oferece"

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A partir da Parashá desta semana, Behalotechá, a Torá traz diversas Parashiót que descrevem muitos erros que o povo judeu cometeu durante o período em que permaneceu no deserto, alguns tão graves que tiveram consequências negativas inclusive para as futuras gerações. Muitos erros estão relacionados com reclamações do povo, que estava sempre insatisfeito com tudo o que D'us fazia, como quando o povo judeu reclamou do "Man", a comida milagrosa que caía do céu. O "Man" envolvia vários milagres, pois caía na quantidade certa para cada pessoa, nutrindo-a com tudo o que ela necessitava. Além disso, o Man tinha o gosto que a pessoa desejasse. Apesar de tantas bondades que envolviam o Man, os judeus desejaram comer carne e gritaram para D'us: "Nós lembramos do peixe que comíamos no Egito de graça, e dos pepinos, dos melões, dos alhos porrós, das cebolas e dos alhos. Mas agora nossas almas estão secas, não há nada a não ser o Man diante dos nossos olhos" (Bamidbar 11:5).

Mas como entender este versículo? Nossos sábios ensinam as dificuldades que o povo passou, os terríveis sofrimentos e castigos aos quais eram submetidos durante a escravidão egípcia. Certamente os egípcios não foram mais misericordiosos com o povo judeu do que os nazistas nos Campos de Concentração. Então como pode ser que o povo judeu reclamou e demonstrou sentir saudades da vida que eles tinham no Egito, se era um verdadeiro inferno?

Explica o Rav Simcha Barnett que o ser humano tem uma tendência natural de mitificar e romantizar seu passado, esquecendo o quanto ele realmente foi difícil. Lembramos apenas dos poucos bons momentos e extrapolamos, como se tivéssemos sido completamente felizes no passado, como eternizou John Lennon em sua música "Yesterday", na qual ele ressalta que seu passado era perfeito e feliz, enquanto seu presente era apenas sombras e tristezas. Mas por que isto acontece? Por que nos sentimos assim, sempre com saudades do passado, apesar das dificuldades e problemas que também tivemos em cada momento?

Um dos motivos é que todos nós queremos voltar para casa. Este desejo, que está no fundo das nossas almas, é o desejo que temos de nos reunir à nossa fonte, D'us. Uma das expressões deste desejo é a vontade de voltar ao passado, à nossa juventude. Mas este desejo deve ser canalizado da forma correta, para nos dar energia, pois caso ele não seja bem utilizado, pode ser extremamente prejudicial. Na prática, muitas pessoas acabam ficando atoladas no seu passado, sentindo-se impossibilitadas de suportar a enorme bagagem de suas experiências de vida, e acabam não aproveitando seu potencial da forma correta.

Combinado com esta glorificação do passado, muitas pessoas também se apoiam nas ilusões, preocupações e metas que elas têm para o futuro, e esquecem completamente de viver o presente. Nós somos puxados pelos nossos planos futuros, sendo que apenas parte deles é composta por responsabilidades, mas a grande maioria é composta por preocupações e fantasias. Nos afundamos tanto no "se tornar" que acabamos deixando de "ser".

Viver com a cabeça no passado ou no futuro, além de ser uma ilusão, distorce também a nossa percepção do próprio presente. Ao invés de verem o Man como uma Brachá (benção) ilimitada, uma demonstração de carinho e cuidado de D'us com o povo, os judeus viram o Man como algo repetitivo e monótono, e deixaram sua imaginação viajar até o ponto de desejaram tanto carne que já não podiam mais suportar comer o milagroso Man. Como não era fácil estar nos deserto, a carne se transformou na solução de todos os problemas, e até mesmo o inferno egípcio se transformou em um paraíso.

A verdade é que o ser humano precisa de uma renovação constante. É por isso que pessoas que viajam para lugares exóticos e fascinantes voltam energizadas, pois cada dia da viagem tem um sentido especial, é possível transformar o cotidiano em algo mágico e novo. Mas o que acontece quando voltam para casa? Esta energia dura apenas alguns poucos dias. Após este período, elas caem novamente no hábito do cotidiano, e passam a novamente viver sonhando com a próxima oportunidade de uma grande viagem ou outra nova sensação na vida. Como fazer para estarmos sempre energizados, não dependendo de pequenos "flashes" de renovação?

A resposta está no próprio Man. Embora superficialmente o Man realmente não apresentasse nenhuma variedade, profundidade ou capacidade de saciar, se fosse abordado da maneira correta, ele teria exatamente o gosto, a variedade e a essência que o povo realmente desejava. O mesmo ocorre com os nossos dias, isto é, se olharmos nosso dia da maneira correta, não dependeremos de viagens exóticas para vermos o quanto nossas vidas podem ser significativas em cada pequeno detalhe do cotidiano.

Este conceito foi muito bem explorado no filme "Feitiço do tempo". Bill Murray, o ator principal, é um repórter da televisão que sonha em fazer uma grande reportagem, mas recebe a missão de cobrir uma estúpida cerimônia chamada "O dia da Marmota" em uma pequena cidade no meio do nada. O que seria apenas mais um dia inútil e atirado no lixo se transforma em uma grande oportunidade. Algo estranho acontece e o repórter fica preso no tempo, acordando sempre no mesmo dia e tendo que viver novamente as mesmas situações. A mensagem do filme é que mesmo um dia que parecia inútil e seria jogado no lixo se transformou em um enorme potencial de crescimento. O repórter percebeu que podia usar o dia para se aperfeiçoar e influenciar positivamente todos à sua volta.

É um pouco assustador pensar que vemos a maioria dos nossos dias como sendo inúteis. Estamos sempre esperando por momentos mais emocionantes ou novas experiências. Esquecemos que nossa vida deve ser vivida hoje, sem estarmos atolados nos erros do passado nem presos às ilusões do futuro. Ensina o Rav Simcha Barnett que nosso lema deve ser: "Viva hoje, pois o amanhã nunca chegará". Se você não vive o "hoje", então você não está vivendo, pois literalmente o "amanhã" nunca chegará. O "amanhã" é uma ilusão, pois quando você chega lá, ele magicamente se transforma em "hoje". Nossa vida é uma soma de "hojes". Todos os nossos objetivos de vida, sonhos e planos que criamos para o nosso futuro somente são úteis se eles nos ajudam a viver o "hoje" da melhor maneira possível.

Há uma dica de como fazer isto na prática: devemos dedicar alguns poucos minutos todos os dias para pararmos de "fazer" e começarmos a "ser". Podemos apenas fechar os olhos por alguns instantes e tentar sintonizar a beleza da vida à nossa volta. Começar a perceber pequenos momentos de prazer que temos no nosso dia, mas que pela força do hábito, deixamos de aproveitar em sua verdadeira intensidade. Podemos escrever em um papel, com o máximo de detalhamento, algo que nos dá prazer. Algo como um café com leite gostoso de manhã, uma ducha quente depois de um dia cansativo de trabalho ou um simples mergulho no mar em um dia quente de férias. Pouco a pouco, isto nos ajuda a vivermos a vida de uma maneira mais vibrante, ao percebermos as oportunidades de prazer e contentamento que temos nas pequenas coisas do cotidiano.

A próxima vez em que olharmos para uma paisagem estonteante, como um por do sol ou um céu estrelado, este momento de transcendência deve nos trazer uma mensagem, um despertar de que este contato com o Criador não deve ser buscado apenas em momentos dispersos e raros, mas de forma constante, nos pequenos detalhes da vida. O mesmo D'us que se revela no esplendor da natureza também se revela nas pequenas coisas do cotidiano. Por um lado podem ser coisas simples, mas ao mesmo tempo são os incríveis "hojes" da nossa vida.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 8:1-12:16, Zc 2:10 -4:7