domingo, 8 de junho de 2014

OS PRESENTES DA VIDA- PARASHÁ BEHALOTECHÁ 5774

"Carlos e sua turma, adolescentes alegres e de bem com a vida, foram à festa de aniversário de uma amiga e resolveram, por brincadeira, entregar um presente diferente à aniversariante. Ela ficou contente quando recebeu uma enorme caixa embrulhada. Ela abriu a caixa na frente de todos, devagarzinho, mas para sua surpresa encontrou outra caixa, um pouco menor. Ao abri-la, tornou a encontrar outra caixa, e mais outra, em uma sucessão de embrulhos e caixas que parecia não ter fim. Ele tinha passado um bom tempo desembrulhando caixas, com a ajuda dos convidados, quando finalmente encontrou uma caixinha de madeira, onde estava um lindo anel de ouro, que a deixou emocionada.

Anos mais tarde, cada um daquela turma já tinha seguido um caminho diferente na vida. Mas a brincadeira das caixas nunca mais saiu da cabeça de Carlos. Apesar do anel talvez nem mais existir, ele sabia que aquele presente nunca mais seria esquecido por ninguém, pois ele trazia uma incrível mensagem: a cada momento, a vida está nos presenteando com oportunidades. Mas estes presentes estão quase sempre muito bem embrulhados, por isso não os vemos com facilidade. É preciso treinar nossa forma de observar e desenvolver nossa sensibilidade. É preciso paciência para desembrulhá-los através da constante reflexão, pois só encontram as oportunidades quem está preparado para recebê-las.

A vida começa a ser bem vivida a partir do momento em que aprendemos a desembrulhar os presentes que ela nos oferece"

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A partir da Parashá desta semana, Behalotechá, a Torá traz diversas Parashiót que descrevem muitos erros que o povo judeu cometeu durante o período em que permaneceu no deserto, alguns tão graves que tiveram consequências negativas inclusive para as futuras gerações. Muitos erros estão relacionados com reclamações do povo, que estava sempre insatisfeito com tudo o que D'us fazia, como quando o povo judeu reclamou do "Man", a comida milagrosa que caía do céu. O "Man" envolvia vários milagres, pois caía na quantidade certa para cada pessoa, nutrindo-a com tudo o que ela necessitava. Além disso, o Man tinha o gosto que a pessoa desejasse. Apesar de tantas bondades que envolviam o Man, os judeus desejaram comer carne e gritaram para D'us: "Nós lembramos do peixe que comíamos no Egito de graça, e dos pepinos, dos melões, dos alhos porrós, das cebolas e dos alhos. Mas agora nossas almas estão secas, não há nada a não ser o Man diante dos nossos olhos" (Bamidbar 11:5).

Mas como entender este versículo? Nossos sábios ensinam as dificuldades que o povo passou, os terríveis sofrimentos e castigos aos quais eram submetidos durante a escravidão egípcia. Certamente os egípcios não foram mais misericordiosos com o povo judeu do que os nazistas nos Campos de Concentração. Então como pode ser que o povo judeu reclamou e demonstrou sentir saudades da vida que eles tinham no Egito, se era um verdadeiro inferno?

Explica o Rav Simcha Barnett que o ser humano tem uma tendência natural de mitificar e romantizar seu passado, esquecendo o quanto ele realmente foi difícil. Lembramos apenas dos poucos bons momentos e extrapolamos, como se tivéssemos sido completamente felizes no passado, como eternizou John Lennon em sua música "Yesterday", na qual ele ressalta que seu passado era perfeito e feliz, enquanto seu presente era apenas sombras e tristezas. Mas por que isto acontece? Por que nos sentimos assim, sempre com saudades do passado, apesar das dificuldades e problemas que também tivemos em cada momento?

Um dos motivos é que todos nós queremos voltar para casa. Este desejo, que está no fundo das nossas almas, é o desejo que temos de nos reunir à nossa fonte, D'us. Uma das expressões deste desejo é a vontade de voltar ao passado, à nossa juventude. Mas este desejo deve ser canalizado da forma correta, para nos dar energia, pois caso ele não seja bem utilizado, pode ser extremamente prejudicial. Na prática, muitas pessoas acabam ficando atoladas no seu passado, sentindo-se impossibilitadas de suportar a enorme bagagem de suas experiências de vida, e acabam não aproveitando seu potencial da forma correta.

Combinado com esta glorificação do passado, muitas pessoas também se apoiam nas ilusões, preocupações e metas que elas têm para o futuro, e esquecem completamente de viver o presente. Nós somos puxados pelos nossos planos futuros, sendo que apenas parte deles é composta por responsabilidades, mas a grande maioria é composta por preocupações e fantasias. Nos afundamos tanto no "se tornar" que acabamos deixando de "ser".

Viver com a cabeça no passado ou no futuro, além de ser uma ilusão, distorce também a nossa percepção do próprio presente. Ao invés de verem o Man como uma Brachá (benção) ilimitada, uma demonstração de carinho e cuidado de D'us com o povo, os judeus viram o Man como algo repetitivo e monótono, e deixaram sua imaginação viajar até o ponto de desejaram tanto carne que já não podiam mais suportar comer o milagroso Man. Como não era fácil estar nos deserto, a carne se transformou na solução de todos os problemas, e até mesmo o inferno egípcio se transformou em um paraíso.

A verdade é que o ser humano precisa de uma renovação constante. É por isso que pessoas que viajam para lugares exóticos e fascinantes voltam energizadas, pois cada dia da viagem tem um sentido especial, é possível transformar o cotidiano em algo mágico e novo. Mas o que acontece quando voltam para casa? Esta energia dura apenas alguns poucos dias. Após este período, elas caem novamente no hábito do cotidiano, e passam a novamente viver sonhando com a próxima oportunidade de uma grande viagem ou outra nova sensação na vida. Como fazer para estarmos sempre energizados, não dependendo de pequenos "flashes" de renovação?

A resposta está no próprio Man. Embora superficialmente o Man realmente não apresentasse nenhuma variedade, profundidade ou capacidade de saciar, se fosse abordado da maneira correta, ele teria exatamente o gosto, a variedade e a essência que o povo realmente desejava. O mesmo ocorre com os nossos dias, isto é, se olharmos nosso dia da maneira correta, não dependeremos de viagens exóticas para vermos o quanto nossas vidas podem ser significativas em cada pequeno detalhe do cotidiano.

Este conceito foi muito bem explorado no filme "Feitiço do tempo". Bill Murray, o ator principal, é um repórter da televisão que sonha em fazer uma grande reportagem, mas recebe a missão de cobrir uma estúpida cerimônia chamada "O dia da Marmota" em uma pequena cidade no meio do nada. O que seria apenas mais um dia inútil e atirado no lixo se transforma em uma grande oportunidade. Algo estranho acontece e o repórter fica preso no tempo, acordando sempre no mesmo dia e tendo que viver novamente as mesmas situações. A mensagem do filme é que mesmo um dia que parecia inútil e seria jogado no lixo se transformou em um enorme potencial de crescimento. O repórter percebeu que podia usar o dia para se aperfeiçoar e influenciar positivamente todos à sua volta.

É um pouco assustador pensar que vemos a maioria dos nossos dias como sendo inúteis. Estamos sempre esperando por momentos mais emocionantes ou novas experiências. Esquecemos que nossa vida deve ser vivida hoje, sem estarmos atolados nos erros do passado nem presos às ilusões do futuro. Ensina o Rav Simcha Barnett que nosso lema deve ser: "Viva hoje, pois o amanhã nunca chegará". Se você não vive o "hoje", então você não está vivendo, pois literalmente o "amanhã" nunca chegará. O "amanhã" é uma ilusão, pois quando você chega lá, ele magicamente se transforma em "hoje". Nossa vida é uma soma de "hojes". Todos os nossos objetivos de vida, sonhos e planos que criamos para o nosso futuro somente são úteis se eles nos ajudam a viver o "hoje" da melhor maneira possível.

Há uma dica de como fazer isto na prática: devemos dedicar alguns poucos minutos todos os dias para pararmos de "fazer" e começarmos a "ser". Podemos apenas fechar os olhos por alguns instantes e tentar sintonizar a beleza da vida à nossa volta. Começar a perceber pequenos momentos de prazer que temos no nosso dia, mas que pela força do hábito, deixamos de aproveitar em sua verdadeira intensidade. Podemos escrever em um papel, com o máximo de detalhamento, algo que nos dá prazer. Algo como um café com leite gostoso de manhã, uma ducha quente depois de um dia cansativo de trabalho ou um simples mergulho no mar em um dia quente de férias. Pouco a pouco, isto nos ajuda a vivermos a vida de uma maneira mais vibrante, ao percebermos as oportunidades de prazer e contentamento que temos nas pequenas coisas do cotidiano.

A próxima vez em que olharmos para uma paisagem estonteante, como um por do sol ou um céu estrelado, este momento de transcendência deve nos trazer uma mensagem, um despertar de que este contato com o Criador não deve ser buscado apenas em momentos dispersos e raros, mas de forma constante, nos pequenos detalhes da vida. O mesmo D'us que se revela no esplendor da natureza também se revela nas pequenas coisas do cotidiano. Por um lado podem ser coisas simples, mas ao mesmo tempo são os incríveis "hojes" da nossa vida.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 8:1-12:16, Zc 2:10 -4:7

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