sexta-feira, 5 de agosto de 2011

NUNCA MAIS EU RECLAMO - PARASHÁ DEVARIM E TISHÁ BE AV 5771 (5 de agosto de 2011)

"Fernando estava no meio de uma longa e cansativa viagem. Havia começado a chover forte e, como ele viu que o tanque estava quase vazio, achou melhor parar logo em um posto de gasolina para não correr o risco de ficar parado no meio da estrada por falta de combustível em um tempo chuvoso daqueles.
Fernando estacionou no primeiro posto que encontrou. A tempestade havia apertado ainda mais e o vento forte fazia com que a chuva caísse sobre o frentista, deixando-o completamente ensopado enquanto ele enchia o tanque. Confortavelmente sentado dentro de seu carro, Fernando viu o frentista trabalhando embaixo daquela chuva fria e sentiu-se mal. Mas o mais interessante é que o frentista não estava triste ou irritado. Ao contrário, ele assobiava alegremente enquanto trabalhava. Após encher o tanque, ainda se ofereceu para medir o nível do óleo e da água do radiador, mesmo embaixo daquela chuva.
Quando Fernando estava partindo, como que se desculpando, disse:
- Sinto muito que você tenha que estar aí fora com este tempo.
- Não se preocupe, isto não me incomoda nem um pouco – respondeu o frentista, com um sorriso no rosto.
- Você sempre teve este alto astral? – perguntou Fernando, curioso.
Na verdade não – respondeu o frentista – Eu era um jovem que tinha tudo. Estudava em uma boa faculdade, tinha um bom carro, morava com meus pais em uma bela casa e tinha muitos amigos. Mas eu não sabia dar valor para tudo o que eu tinha e estava sempre reclamando de tudo. Perdi bons amigos e diversas vezes briguei com meus pais por motivos fúteis. Foi então que eu fui convocado para lutar no Vietnã. Tive que deixar tudo para trás e viajar para um lugar estranho onde eu não conhecia ninguém. Foi lá que eu conheci o inferno. Passava dias sem comer uma refeição decente, dormindo na lama, acordando com o barulho de tiros e vendo meus colegas caindo mortos ao meu lado.
- Então certo dia eu cheguei ao meu limite – continuou o frentista, emocionado. Comecei a lembrar quantas coisas boas eu tinha na minha vida e nunca soubera dar valor, principalmente minha família e meus amigos. Naquele momento eu prometi a mim mesmo que, se um dia eu conseguisse sair vivo daquele inferno, eu seria tão grato a D'us que nunca mais reclamaria de nada. Uma semana depois a guerra acabou e eu fui mandado de volta para casa. E assim, desde aquele dia, nada mais me aborrece"
Assumir a responsabilidade por nossas atitudes é parte da construção de uma vida feliz.
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Nesta semana começamos o último livro da Torá, Devarim, também conhecido como "Mishnê Torá" (repetição da Torá), já que grande parte do livro recorda os acontecimentos mais importantes dos 40 anos do povo judeu no deserto. E a Parashá desta semana, Devarim, traz o discurso final de Moshé, no qual ele aproveita o momento da despedida, quando as pessoas estavam com o coração mais aberto, para fazer uma crítica construtiva sobre os graves erros cometidos pelo povo judeu.
Um dos erros ressaltados por Moshé nos chama a atenção pela profunda falta de sensibilidade do povo judeu. Mesmo após D'us ter garantido que a Terra de Israel era boa, o povo pediu o envio de espiões para verificá-la. As consequências foram desastrosas, pois dos 12 espiões enviados, 10 voltaram falando mal da terra, descrevendo-a como um local habitado por gigantes, sem chance de ser conquistada. Isto causou uma histeria coletiva e um choro sem motivo. Mas o mais grave foi a reclamação feita pelo povo contra D'us, como está escrito: "E vocês falaram mal em suas tendas e disseram: 'Por ódio D'us nos tirou do Egito, para nos entregar nas mãos dos Emoritas para nos destruir' " (Devarim 1:27).
D'us, para nos tirar do Egito, fez inúmeros milagres. Mandou as 10 pragas sobre o Egito, abriu o Mar Vermelho para que o povo judeu pudesse passar em segurança e fechou o mar para afogar os egípcios. Além disso, a própria sobrevivência no deserto foi acompanhada de milagres abertos: nuvens que guiavam e protegiam o povo dia e noite, roupas que cresciam junto com a pessoa sem se desgastarem com o tempo, o "Man" que caía do céu diariamente, entre muitos outros milagres.
Então surge uma grande pergunta: como pode ser que, após verem tantos milagres abertos e bondades feitas por D'us, os judeus chegaram neste nível espiritual tão baixo de não apenas negar as bondades de D'us, mas também enxergar as bondades como se tivessem sido maldades?
Explicam os nossos sábios que, em geral, as pessoas não "despencam" espiritualmente. Nosso Yetzer Hará (má inclinação) vai nos derrotando em pequenas batalhas e, sem percebermos, vamos caindo em queda livre. Foi isto o que aconteceu com o povo judeu. Mas o que motivou o começo da queda?
Nos ensina o Rabeinu Yona, em seu livro "Shaarei Teshuvá", que uma das piores características do ser humano é ser reclamão. A natureza do reclamão é estar sempre descontente e reclamando de tudo e de todos, constantemente criticando o que as pessoas fizeram ou disseram. Por sempre focar o lado negativo das coisas, o reclamão se torna uma pessoa rigorosa e intransigente. Mesmo quando alguém faz algo sem intenção, o reclamão julga o próximo para o mal e considera como se tivesse sido uma agressão intencional.
E o que ocorre com quem não trabalha esta terrível característica? Ao se acostumar apenas a reclamar e a procurar coisas negativas nos outros, no final o reclamão termina reclamando também daqueles que nunca fizeram nenhum mal, ou pior, reclama daqueles que somente fazem bem a ele. Ele se considera sempre como agredido e perseguido pelos outros, como se os atos errados do próximo fossem intencionais contra ele, mas na verdade ele é o agressor e o perseguidor, que machuca os outros com suas reclamações constantes. Por isso o reclamão acaba se tornando uma pessoa sozinha, pois como se torna alguém inconveniente, seus amigos e pessoas próximas se afastam dele.
Mas talvez a pior consequência de ser reclamão é que ele acaba se tornando um negador de bondades recebidas, ao ponto de considerar coisas boas como sendo coisas ruins, pagando o bem com o mal. Ele fica tão obcecado em exigir "justiça" que, mesmo quando alguém faz algo para o seu bem mas de uma maneira que ele não concorda, ele acaba enxergando isso como uma maldade. Por exemplo, os jovens sentem que suas mães são malvadas por não permitirem que eles voltem das festas às 5 da manhã. A mesma mãe que deu vida ao filho, que constantemente dá tudo o que ele necessita, é vista como vilã apenas por sua decisão de ir contra as vontades do filho. Por medo da violência e da inconsequência de muitos motoristas que dirigem embriagados pelas ruas de madrugada, as mães fazem de tudo para proteger seus filhos, mas são vistas como desalmadas. Por que? Pois somos reclamões, olhamos feio para tudo o que não é feito do nosso jeito. Foi isto o que aconteceu com o povo judeu durante os 40 anos no deserto.
Em diversos eventos descritos pela Torá podemos perceber que os judeus tinham naturalizado esta péssima característica em seus corações. Apesar das bondades e milagres constantes de D'us, eles reclamavam por causa da comida, por causa da água, por causa do caminho um pouco mais longo, e em diversas situações se rebelavam sem motivo. Nem mesmo os terríveis castigos mandados por D'us eram suficientes para fazer com que as pessoas entendessem o quanto esta característica é nociva. Por não tratarem esta característica negativa eles chegaram ao ponto de realmente acreditar que D'us os havia tirado do Egito, com milagres abertos, quebrando todas as leis da natureza, apenas por maldade, para prejudicá-los no deserto.
Quando olhamos os eventos descritos na Torá, enxergamos facilmente os erros do povo judeu e as conseqüências. Mas enxergamos os mesmos erros em nós mesmos? Será que também não somos tão reclamões quanto os judeus do deserto? Será que não sofremos também duras consequências por termos em nossos corações esta terrível característica? Achamos absurda a forma como o povo judeu questionou a bondade de D'us, mas será que não fazemos o mesmo quando acontecem coisas que fogem do nosso controle e entendimento?
Na próxima 2a feira de noite é Tishá Be Av, o dia mais triste do ano, no qual nos enlutamos por várias catástrofes que ocorreram com o povo judeu em nossa história. Mas de todas as tragédias, nenhuma se compara à destruição do nosso Beit Hamikdash (Templo Sagrado). Por que ele foi destruído e até hoje, dois mil anos depois, ainda não foi reconstruído? Por causa do ódio gratuito entre os judeus. Se o nosso Beit Hamikdash não foi reconstruído até hoje, é uma prova de que continuamos persistindo no mesmo erro.
De onde vem o ódio gratuito? Principalmente de julgarmos sempre os outros para o mal, mesmo sem conhecer as pessoas de verdade. Nos acostumamos a sempre reclamar e exigir nossos direitos, ao invés de focar nos nossos deveres. São cada vez mais comuns passeatas pelos direitos, mas são cada vez menos freqüentes as demonstrações de preocupação verdadeira com o próximo e com os nossos deveres.
A Torá nos ensina que não temos direitos, temos deveres, temos obrigações, temos responsabilidades. Somente quando cada um focar mais nos seus próprios erros do que nos erros dos outros estaremos realmente caminhando para um mundo melhor. Um mundo com mais justiça, com mais união, onde o direito de cada um será verdadeiramente respeitado. Somente então mereceremos a reconstrução do nosso Beit Hamikdash.
SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com/
Deuteronômio 1:1-3:22, Is.1:1-27, At 9:l-21

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