sábado, 6 de abril de 2013

QUANDO O SANGUE FERVE - PARASHÁ SHEMINI 5773

 

"Na época dos nossos sábios do Talmud, houve uma mulher grávida que, após sentir o cheiro de comida, sentiu um desejo incontrolável de comer no dia de Yom Kipur. As pessoas mais próximas dela ficaram desesperadas, pois é sabido que se uma mulher grávida tem um desejo muito forte por comida e não sacia este desejo, isto pode colocar em perigo a vida do feto. Foram então se aconselhar com o Rabi Yehuda Hanassi, que ouviu atentamente o caso e deu o veredicto: uma pessoa da família deveria sussurrar em seu ouvido que aquele dia era Yom Kipur e por isto era proibido comer ou beber qualquer coisa. Caso não funcionasse, então seria permitido dar-lhe comida, pois a vida do feto estava em perigo e, segundo a lei judaica, é possível desrespeitar o jejum de Yom Kipur se uma vida estiver em perigo.

Qual era a lógica deste ensinamento do Rav Yehuda Hanassi? Segundo os nossos sábios, o feto na barriga da mãe já escuta o que é dito. Além disso, quando uma mulher grávida tem um forte desejo, na verdade quem está desejando é o próprio feto, e por isso, caso o desejo não seja saciado, o feto corre risco de vida. Por isso, ao sussurrar no ouvido da mãe, na verdade estamos falando com o próprio feto, tentando convencê-lo de que o que ele deseja é proibido.

Os familiares da mulher fizeram conforme os ensinamentos do Rav Yehuda Hanassi e, após escutar o sussurro, a mulher se tranquilizou, pois o feto não desejou mais comer. Aquele bebê tornou-se o Rav Yochanan, um dos maiores sábios do povo judeu.

Anos mais tarde outra mulher também sentiu um desejo incontrolável de comer após sentir o cheiro de uma comida. Foram se aconselhar com o Rav Chanina, que também sugeriu que sussurrassem no ouvido dela a proibição de comer. Porém, ao contrário do que era esperado, a mulher não se acalmou e precisou comer. Dela nasceu Shabtai Atsar Peiri, um homem que manipulava o mercado de frutas de Israel para enriquecer de maneira desonesta" (História baseada no Talmud – Yomá 82b)

Esta é a diferença entre uma pessoa que adquire a característica do autocontrole e aquela que é levada pelos seus desejos e vontades. Quem adquire o autocontrole consegue se elevar aos níveis mais altos de espiritualidade, enquanto quem não tem autocontrole fica preso nos seus desejos e vontades materiais.


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Nesta semana lemos a Parashá Shemini, que traz, entre outros assuntos, as leis de Kashrut. Por exemplo, a Torá nos ensina sobre as características necessárias para que os animais domésticos e selvagens possam ser consumidos, os sinais presentes nos peixes que são Kasher, a proibição de comer insetos e a lista de pássaros que são proibidos para o consumo do povo judeu. Entre as leis de Kashrut está também a proibição de comer répteis, como está escrito: "E não façam repugnantes suas almas ao comerem todo réptil que rasteja... Pois Eu sou Hashem, teu D'us. E se santifiquem e se tornem santos, pois Eu sou Santo... Pois Eu sou D'us, que elevei vocês da terra do Egito" (Vayikrá 11:43-45).

Mas destes versículos surgem algumas perguntas. Em primeiro lugar, por que esta linguagem "que elevei vocês da terra do Egito", se na maioria das vezes em que a Torá se refere à saída do Egito está escrito "que tirei vocês"? Além disso, o versículo termina com as seguintes palavras: "E sejam santos, pois Eu sou Santo". Associamos o conceito de "santo" às nossas atividades mais "elevadas", relacionadas ao serviço Divino, como a reza e a meditação. O que comer, um ato tão cotidiano, tem a ver com santidade?

Ensina Rashi, comentarista da Torá, que a linguagem "que elevei vocês" é utilizada como se D'us estivesse anunciando que toda a saída do Egito já teria valido a pena apenas para o povo judeu se elevar espiritualmente ao não consumir répteis. Mas o que significam estas palavras do Rashi? Seria suficiente apenas cumprir esta Mitzvá? Esta Mitzvá vale mais do que as outras Mitzvót da Torá?

Explica o Rav Yehuda Leib Chasman que deste versículo aprendemos algo importante para nossas vidas. A Mitzvá de não comer répteis não é mais importante do que as outras Mitzvót da Torá, mas ela contém uma lição fundamental para o nosso crescimento espiritual. Os répteis já são naturalmente animais asquerosos, e por isso, a maioria dos seres humanos não tem nenhuma dificuldade para evitar seu consumo. Se a Torá nos ressalta que valeria a pena sair do Egito apenas para não comer algo que naturalmente já nos é repugnante, isto nos ensina que se tivermos força de vontade para evitar comer algo gostoso mas que nos faz mal espiritualmente, o valor deste ato será muito maior aos olhos de D'us. O Talmud nos ensina que não devemos dizer "Eu não gosto de porco, por isso não como", e sim "Eu gosto de porco, é uma carne deliciosa, mas como eu posso comer se D'us me ordenou a não comer?". Isto nos traz muitos méritos espirituais, pelo fato de não estarmos fazendo algo que gostamos apenas para cumprir a vontade de D'us.

Ensina o Rav Chasman que existe um nível ainda maior do que este: quando deixamos de comer algo que é permitido. Por exemplo, alguém que está diante de uma deliciosa mesa de doces, na saída da festa, e tem a força de vontade de não "atacar" a mesa, conseguindo dizer para si mesmo "pegarei somente um docinho". Mas como entender este ensinamento? Qual a vantagem de se proibir de comer algo permitido? Se D'us permitiu, por que então nós vamos proibir? A resposta é que a pessoa que sabe de vez em quando dizer "não" aos seus desejos, mesmo aqueles permitidos, adquire uma das características mais importantes para o ser humano: o autocontrole.

Este conceito é ainda mais ressaltado por outro ensinamento dos nossos sábios no Talmud (Chulin 89a): "O mundo inteiro é sustentado pela pessoa que fecha sua boca no momento da discussão". Isto quer dizer que, mesmo se o mundo inteiro estivesse destinado à destruição, esta pessoa que fecha a boca no momento da discussão, apesar do sangue estar fervendo dentro dela, carregaria sozinha o mundo nas costas. E qual é o "segredo" por trás desta gigantesca recompensa? O autocontrole, quebrar as vontades naturais que queimam dentro de nós. O normal é uma pessoa reagir a uma ofensa com outra ofensa, gerando uma escalada de violência. Aquele que quebra sua tendência natural de revidar e consegue fechar sua boca demonstra um gigantesco autocontrole, e isto é tão bem visto aos olhos de D'us que o mérito desta pessoa é suficiente para sustentar o mundo inteiro.

Se quebrar a nossa vontade natural apenas uma vez traz méritos tão grandes, mais ainda receberá aquele que constantemente quebra suas vontades e sabe dizer "não" para os seus desejos, pois certamente acumulará méritos e conseguirá alcançar níveis cada vez maiores de espiritualidade. É por isso que o versículo termina com as seguintes palavras: "E sejam santos, pois Eu sou Santo". "Kadosh", que traduzimos como "santo", significa na verdade "desconectado do mundo material". D'us é Kadosh pois está acima de qualquer desejo e necessidade do mundo material. Assim, qualquer pessoa que utiliza o mundo material com total autocontrole, isto é, sem ser levado por suas vontades e desejos, também se torna "Kadosh", está se assemelhando a D'us e automaticamente se conectando a Ele. Portanto, aquele que tem autocontrole atinge a Kedushá e se torna sócio de D'us na criação do Céu e da Terra.

Será que entendemos quais são as consequências da falta de autocontrole em nossas vidas? Se pararmos para refletir, a grande maioria dos problemas atuais do mundo está justamente na falta de autocontrole. Hoje em dia, crianças já são obesas e apresentam altos índices de colesterol deste muito cedo, pois não aprendem a ter limites e a dizer não, consumindo comidas que, apesar de muito saborosas, são extremamente prejudiciais à saúde. Quantos casamentos não terminam por causa de traições, movidas pelo desejo incontrolável de sentir um pouco mais de prazer? Quantas tragédias ocorrem por um instante de raiva não contida, como no caso do ônibus que despencou de um viaduto no Rio de Janeiro, matando sete pessoas e ferindo outras dezenas, por causa de um passageiro irritado que deu um chute na cabeça do motorista. As estatísticas de mortes causadas por uso de arma de fogo mostram que morrem mais pessoas em brigas de trânsito do que em assaltos a mão armada.

O judaísmo nos ensina que Kedushá não significa se abster de todos os prazeres materiais e viver uma vida de sofrimentos e abstinência, pois D'us criou os prazeres por bondade, para que pudéssemos aproveitar o mundo material de forma prazerosa. Podemos e devemos ter prazeres, mas com autocontrole. Precisamos aprender a dizer "não" às nossas vontades e desejos, pois um mundo sem autocontrole é um mundo direcionado ao caos e à destruição, enquanto um mundo com autocontrole é um mundo direcionado à harmonia e à paz.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm
 http://ravefraim.blogspot.com.br/
Lv 9:1-11:47, 2 Sm. 6:1-7:17, At. 10: 9-22, 34-35.

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