sexta-feira, 27 de maio de 2011

QUANDO A DOR DO OUTRO INCOMODA - PARASHÁ BAMIDBAR 5771 (27 de maio de 2011)

Chaim Shie era um garoto de 12 anos que vivia na Rússia, no começo do século passado. Seus pais não eram ricos, mas tinham boas condições financeiras e Chaim Shie tinha tudo o que precisava. Certa vez ele ganhou de presente do avô um par de botas. Feliz da vida, saiu caminhando pelas ruas geladas para estrear o presente. Foi quando encontrou seu amigo Shaika, um garoto muito pobre e órfão de pai, que vivia com sua mãe em um pequeno apartamento velho e utilizava sempre a mesma roupa esfarrapada. Chaim Shie viu os sapatos de Shaika completamente rasgados e teve misericórdia. Como ele aguentaria o frio do inverno com aqueles sapatos? Imediatamente tirou as botas novas e deu de presente para seu amigo pobre. Voltou de meias para casa, naquele inverno congelante. Pegou uma pneumonia e ficou um bom tempo sem sair de casa.
Chaim Shie também tinha um professor particular, pago pelos seus pais, que lhe ensinava Torá. Ele conseguiu convencê-lo a ensinar Shaika sem que ele precisasse pagar. Quando tudo parecia melhorar, algum tempo depois a mãe de Shaika faleceu subitamente. A compaixão de Chaim Shie novamente despertou-se e ele implorou aos pais para que o amigo viesse morar com eles. Porém a idéia foi rejeitada, já que, com 6 filhos, não havia espaço para mais ninguém. Os pais dele aceitaram ajudar Shaika com a alimentação e dinheiro para moradia, mas para Chaim Shie não era suficiente. Shaika foi morar no "ezrat nashim" (local onde as mulheres rezam) da sinagoga, onde dormiam os mendigos, e Chaim Shie acompanhou seu amigo, abandonando todo o conforto de sua casa.
Algum tempo depois estourou a 1ª Guerra Mundial. Shaika foi enviado para a casa de parentes distantes, que decidiram fugir para a América do Sul. Chaim Shie voltou para a casa dos pais, e os amigos nunca mais se viram. Chaim Shie casou-se, mudou-se para Israel e teve uma grande e bela família. Naquela época a pobreza em Israel era terrível e a família de Chaim Shie constantemente passava dificuldades. Já Shaika também se casou, formou uma família e prosperou nos negócios, tornando-se um homem muito rico.
Muitos anos se passaram e Shaika foi, pela primeira vez na vida, conhecer Israel. Chegando ao Muro das Lamentações, foi tomado de uma emoção enorme. Ainda emocionado, começou a escutar alguém rezando em voz alta. Aquela voz parecia familiar. Seu coração começou a bater acelerado enquanto ele procurava de onde vinha a voz. Foi quando Shaika reencontrou Chaim Shie, que estava também no Muro das Lamentações rezando. Os dois se abraçaram, chorando e rindo ao mesmo tempo.
Hoje, a família de Chaim Shie não passa mais dificuldades. A bondade que ele demonstrou quando era criança teve frutos. Todo mês um cheque vindo da América do Sul ajuda a complementar o orçamento familiar. O calor de um par de botas em uma tarde congelante durou por décadas e continua, até hoje, aquecendo o coração de dois grandes amigos. (História Real)
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Nesta semana começamos o quarto livro da Torá, Bamidbar, que descreve muitos eventos importantes que aconteceram com o povo judeu durante os 40 anos em que permaneceu no deserto, entre eles as reclamações do povo, a rebelião de Korach e a guerra contra Midian.
A Torá não é apenas um livro de histórias para que possamos saber o que ocorreu no passado. Apesar dos eventos descritos na Torá terem ocorrido há mais de 3.000 anos, cada detalhe nos ensina importantes lições para nossas vidas. Porém, a Parashá desta semana, Bamidbar, começa com algo que parece fugir à regra. A Parashá traz a contagem do povo judeu, dividido por tribos. Que grande ensinamento pode estar contido no número de pessoas que havia em cada tribo há mais de 3.000 anos?
Quando esta contagem foi feita, o povo judeu havia recém saído do Egito. Os 210 anos em que eram escravos foram terríveis, com inimagináveis sofrimentos físicos e psicológicos. Decretos, execuções sumárias, trabalhos forçados até o limite da exaustão. Explica Rashi, comentarista da Torá, que de todas as tribos que compunham o povo judeu, apenas a tribo de Levi não foi escravizada. Segundo a lógica, a população da tribo de Levi, que viveu em relativa tranqüilidade, deveria ser muito maior do que das outras tribos, que viveram oprimidas. Porém, ao olharmos os números do povo judeu trazidos nesta Parashá, temos uma grande surpresa. Enquanto todas as tribos tinham por volta de 50 a 60 mil homens com a idade de 20 a 60 anos, a tribo de Levi tinha pouco mais de 20 mil homens, incluindo os jovens abaixo de 20 anos e os anciãos acima dos 60 anos. Por que esta diferença ilógica nas quantidades?
Explica o Ramban (Nachmanides) que a resposta está no início do livro de Shemot. Quando o povo judeu começou a ser perseguido e escravizado, D'us mandou uma Brachá (benção) especial de fertilidade, de forma que as mulheres engravidavam e davam à luz com muito mais facilidade. Por isso, quanto mais os egípcios oprimiam os judeus, mais judeus nasciam no Egito, como diz o versículo "E quanto mais eles eram afligidos, mais eles aumentavam e se espalhavam" (Shemot 1:12). Já a tribo de Levi, que não foi escravizada, não recebeu a Brachá, o que explica a grande diferença na contagem.
Por que a tribo de Levi, dentre todas as outras tribos, foi a única a não ser escravizada? Pois a escravidão foi consequência da assimilação. Enquanto Yaacov e seus filhos estavam vivos, os judeus viviam isolados em Goshen, mantendo seus valores e seu nível espiritual elevado, afastados da idolatria e da promiscuidade egípcia. Com o passar do tempo começou a perda de valores e muitos judeus começaram a querer fazer parte da sociedade egípcia. O trabalho forçado que se transformou em escravidão começou como um trabalho voluntário, no qual a grande maioria do povo judeu participou como forma de ser socialmente aceito. Somente a tribo de Levi, que se dedicava ao crescimento espiritual, não se assimilou e não foi escravizada.
Mas se tribo de Levi não foi escravizada por seu grande mérito, então por que eles não receberam a Brachá de fertilidade junto com todo o povo? Explicam os nossos sábios um fundamento muito importante. É verdade que a tribo de Levi não foi escravizada por seu mérito, pois realmente os Leviim tinham um nível espiritual diferenciado. Mas eles falharam em uma característica, houve algo que, apesar de seu elevado nível espiritual, eles ainda não tinham alcançado. Pelo fato de estarem em liberdade e isentos do jugo egípcio, os Leviim não conseguiam sentir o sofrimento dos seus irmãos. Eles não sofreram junto com os outros judeus, não compartilharam sua dor. E como eles não se solidarizaram com os outros judeus, também não foram incluídos na Brachá que o resto do povo recebeu.
Portanto, os números da contagem do povo judeu nos ensinam duas lições de vida muito importantes. O primeiro ponto é sabermos que a lógica humana não se aplica em um mundo onde há supervisão de D'us sobre tudo o que ocorre. É verdade que pela nossa lógica deveria haver mais Leviim do que membros de qualquer outra tribo, mas isso não ocorreu, como dizemos todos os dias na Tefilá (reza): "Muitos são os pensamentos no coração do homem, mas é a vontade de D'us que sempre se cumpre". O segundo ponto é que D'us se comporta conosco Midá Kenegued Midá (medida por medida). Aqueles que se preocupam com o próximo recebem de D'us uma atenção especial e diferenciada. A bondade que fazemos aos outros volta a nós mesmos e aos nossos filhos.
Ensinam os nossos sábios que um sorriso para um pobre vale mais do que uma ajuda financeira, pois o sorriso demonstra solidariedade, consola o pobre. Passamos nas ruas e vemos pessoas dormindo nas calçadas, e para nós isso tudo virou normal e aceitável. É preciso lutar contra este conformismo. Mesmo quando não temos condições de dar uma ajuda financeira, pelo menos precisamos sentir a dor do outro. Somente assim poderemos completar o nosso trabalho espiritual e receber todas as Brachót que D'us quer nos mandar.
SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm

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