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sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O VALOR DE UMA VIDA - PARASHIÓT MATÓT E MASSEI 5776

Após o término da Segunda Guerra Mundial, uma carta anônima foi encontrada em um Campo de Concentração nazista, contendo a seguinte mensagem:

"Prezados professores, sou sobrevivente de um Campo de Concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver: câmaras de gás construídas por engenheiros formados, crianças envenenadas por médicos diplomados, recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas, mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas dúvidas sobre a educação. Meu pedido é: ajudem seus alunos a se tornarem humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só será importante se nossas crianças forem mais humanas"

De nada adiantam os títulos e as condecorações se a pessoa não sabe o verdadeiro valor de uma vida humana. 
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Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Matót (literalmente "Tribos") e Massei (literalmente "Viagens"). A Parashá Matót fala sobre a importância de manter as promessas e os juramentos, sobre o ataque do povo judeu ao povo de Midian e sobre o desejo das tribos de Reuven e Gad de se estabelecer antes do Rio Jordão, fora da Terra de Israel. Já a Parashá Massei descreve as viagens que o povo judeu fez durante os 40 anos em que permaneceu no deserto, apontando todos os lugares onde o povo acampou. Além disso, a Parashá Massei descreve as "Cidades de Refúgio", locais para onde uma pessoa que havia assassinado de forma não intencional deveria ir e permanecer até a morte do Cohen Gadol (Sumo Sacerdote). O fato de a Torá chamar alguém que matou sem intenção de "assassino" já demonstra o quanto D'us é rigoroso com cada vida humana.

A Torá ressalta que as leis da Cidade de Refúgio somente se aplicavam a um assassinato acidental, como no caso da lâmina do machado de um lenhador que escapou do cabo e atingiu fatalmente outro lenhador. Porém, um assassino intencional não podia se abrigar nas Cidades de Refúgio, pois devia ser punido com a pena de morte. O final da Parashá ressalta que não devemos ser lenientes com um assassino intencional, como está escrito: "Você não deve aceitar um resgate pela vida de um assassino que merece morrer, você deve matá-lo... Você não deve corromper a terra onde você está, pois o sangue corrompe a terra" (Bamidbar 35:31,33). Estes versículos nos ensinam que não podemos ser tolerantes nem racionalizar e buscar permissões para permitir assassinatos, e aquele que intencionalmente tira uma vida não deve receber a possibilidade de "resgatar sua liberdade" através de algum tipo de pagamento. O versículo termina ressaltando que, caso um assassinato seja tolerado ou racionalizado, o sangue derramado será considerado uma abominação e contaminará a Terra de Israel, o local onde a Presença de D'us reside.

Porém, há algo que nos chama a atenção quando prestamos atenção na linguagem do versículo. A palavra "Iachnif", que significa "corromper", vem da mesma raiz de "Chanufá", que significa "bajulação". Qual é a conexão entre corromper e bajular? Como deixar um assassino vivo pode "bajular a terra"?

É interessante perceber que não é apenas a Torá que lida de forma tão rigorosa com o assassinato intencional. De acordo com as leis de todos os povos do mundo, o assassinato intencional é considerado um delito extremamente grave e é normalmente punido com a máxima rigorosidade, com penas que variam de muitos anos de detenção ou prisão perpétua até a morte do assassino. Mas será que a forma como a Torá enxerga a gravidade do assassinato é igual à forma como os povos do mundo enxergam?

Explica o Rav Moshe Feinstein zt"l (Lituânia, 1895 - EUA, 1986) que, apesar das aparentes semelhanças na rigorosidade com o qual os assassinos são tratados, há uma enorme e essencial diferença entre a forma como a Torá e as leis dos outros povos enxergam o assassinato intencional e sua consequente punição. Os outros povos olham o assassinato como algo que estraga e coloca em risco a continuidade do mundo, e por isso o assassino deve ser duramente punido. Os outros povos veem os duros castigos aplicados ao assassino como uma forma de erradicar do mundo aqueles que querem destruir a humanidade.

Porém, qual é o grande perigo de pensar desta maneira? Quando punimos de maneira muito rigorosa uma pessoa pelo fato de considerarmos que ela coloca em risco a humanidade, então corremos o risco dos limites e das definições de quem são os "perigos para a humanidade" mudarem de acordo com as vontades e as necessidades de cada sociedade. Pessoas inocentes podem ser mortas a sangue frio por assassinos que acreditam que estão salvando o mundo. Isto explica por que explodem tantas guerras, e por que surgem grupos como o Estado Islâmico, que em nome de garantir a continuidade de um mundo "correto" matam milhares de pessoas inocentes que nunca fizeram mal a ninguém. E se parece um exagero pensar assim, basta lembrar o assassinato a sangue frio de seis milhões de judeus durante o Holocausto. Quem eram os assassinos? Não eram os bárbaros, cossacos ou vikings. Eram médicos, engenheiros e policiais, pessoas que deveriam zelar pela vida, mas que escolheram assassinar homens, mulheres, crianças e bebês com requintes de crueldade.

Como tantos alemães participaram de assassinatos a sangue frio no Holocausto, ou simplesmente se calaram e foram coniventes com os crimes nazistas? A mídia alemã conseguiu, através de uma propaganda virulenta e mentirosa, convencer a maioria do povo alemão que os judeus eram a causa de todos os problemas do mundo. Ao transformar um judeu na "causa dos problemas", os nazistas conseguiram convencer as pessoas que matar um judeu não era um assassinato, e sim a eliminação de um problema, e que a morte deles seria pelo bem da humanidade.

Outra consequência negativa desta visão equivocada é não sabermos valorizar cada instante da vida de um ser humano. Por exemplo, os momentos finais de um doente terminal, a vida de uma pessoa muito idosa e até mesmo a vida de um feto vão perdendo seu valor em uma sociedade que pensa que, em prol da continuidade da humanidade, podemos decidir quem pode viver e quem deve morrer. A eutanásia vem ganhando cada vez mais adeptos, até mesmo entre os médicos, que acreditam que não há sentido em prolongar a vida de alguém que está em estado vegetativo, inclusive pelo fato desta pessoa não produzir mais nada para a humanidade. Infelizmente a eutanásia é defendida por muitos como um ato de bondade, mas sua raiz verdadeira vem dos nazistas. Os alemães permitiram o assassinato de milhares de doentes mentais e pessoas inválidas a partir de 1939, em um projeto chamado "Aktion T4". Deficientes físicos e mentais eram considerados partes "inúteis" da sociedade e, por isso, eram assassinados a sangue frio. O projeto somente foi possível pois recebeu intensa contribuição dos médicos alemães. Aqueles que haviam jurado, em suas formaturas, dedicar suas vidas para curar os doentes, participaram ativamente em mais de 250 mil assassinatos, apenas por que os mortos eram considerados "inúteis". Os alemães demonstraram claramente que não sabiam dar o devido valor a uma vida humana. Passar do assassinato de inválidos e doentes mentais ao assassinato de seis milhões de judeus foi apenas um passo.

Já a visão da Torá em relação ao assassinato é completamente diferente em sua essência. A gravidade do assassinato não está relacionada com o conceito da continuidade da humanidade como um todo, e sim com o inestimável valor intrínseco de cada vida. A diferença na prática é que, mesmo quando uma pessoa não contribui mais nada para a humanidade, ainda assim é proibido matá-la. Cada minuto da vida de um paciente terminal é visto pela Torá com a mesma santidade que a vida da pessoa mais importante do mundo. Mesmo em relação a um doente mental ou um doente terminal com poucas horas de vida existe a gravíssima proibição de diminuir seu tempo de vida, mesmo que seja em alguns instantes. A Halachá (Lei Judaica) permite inclusive que um judeu desrespeite as leis de Shabat mesmo que seja apenas para prolongar um pouco mais a vida de um paciente terminal. A "bondade" de desligar os aparelhos de um doente é vista pela Torá com um ato bárbaro de assassinato e de desprezo pelo valor da vida humana. É por isso que a Torá trata o assassino intencional de maneira tão rigorosa, pois ele desprezou uma das coisas mais sagradas: uma vida humana.

Esta diferença entre a visão judaica e a visão dos outros povos é justamente o que o versículo está ressaltando. Quando alguém mata baseando-se no fato da outra pessoa estar "estragando a continuidade da humanidade", é como se ela estivesse "bajulando a terra", pois de acordo com seu ponto de vista equivocado, cada indivíduo é apenas secundário em relação à terra, isto é, em relação à humanidade como um todo, e a humanidade não deseja esta pessoa. Este ponto de vista faz com que o valor de uma vida não seja absoluto, e sim relativo. Portanto, matar alguém "em prol da humanidade" é como se fosse um ato de bajulação da humanidade.

O versículo vem nos ensinar que a "bajulação da terra" é um ato de corrupção da verdade, pois de acordo com a Torá a terra é secundária em relação a cada indivíduo. Cada ser humano foi criado à imagem e semelhança de D'us e, portanto, sua vida e sua existência têm valores inestimáveis. Cada ser humano é um mundo por si só, como afirma o Talmud (Sanhedrin 37a): "Quem salva uma vida é como se tivesse salvado o mundo inteiro". Este conceito não se aplica apenas em relação a não assassinar, mas também em relação ao respeito que devemos dar a cada pessoa, pois, apesar dos nossos defeitos, temos um valor inestimável aos olhos de D'us.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Matôt    Nm. 30:1- 32:42, Je 1:1-2:3
Mass’êi  Nm. 33:1-36:13, Je 2:4 – 28, 3:4, 4:1-2

sábado, 25 de julho de 2015

APRECIE O QUE VOCÊ TEM - PARASHIÓT MATÓT E MASSEI 5775

 
Certa vez Fernando caminhava pela praia, em uma noite de lua cheia. Ele era um homem inconformado com as dificuldades que passava na vida. Não estava feliz no trabalho, não estava satisfeito com seu casamento e não se sentia confortável com sua situação financeira sempre apertada. Ele ia caminhando e pensando: "Se eu tivesse uma casa um pouco maior, um trabalho menos estafante, uma esposa mais compreensiva, aí sim eu seria feliz...".

Perdido em seus pensamentos, Fernando não viu uma sacola cheia de pedrinhas que estava no chão e acabou tropeçando. Imediatamente começou a amaldiçoar aquele que havia deixado a sacola jogada no meio da praia. Ele pegou a sacola na mão e começou a jogar as pedrinhas no mar, uma a uma. Mas ele não as jogava aleatoriamente. Cada vez que ele dizia "Eu seria feliz se tivesse...", ele agarrava uma pedrinha e atirava no mar. Assim ele foi repetindo aquele ato por um bom tempo, até que somente restou uma única pedrinha na sacola.

Ao chegar em casa, Fernando acendeu a luz e olhou aquela pedrinha que havia restado com um pouco mais de atenção. Foi então que ele percebeu que aquelas não eram simples pedrinhas, eram diamantes muito valiosos. Fernando ficou desesperado. Quantos diamantes valiosos ele havia jogado ao mar, sem perceber? Por não ter parado para prestar atenção, todos os sonhos da sua vida haviam passado pelas suas mãos e haviam sido atirados ao mar...

Assim são as pessoas, elas jogam fora seus preciosos tesouros por estarem esperando aquilo que acreditam ser perfeito, ou sonhando e desejando o que não têm, sem dar valor ao que elas têm perto delas. Se olhassem ao redor, parando para observar, perceberiam quão afortunadas são.

Sua felicidade está muito perto de você. Cada pedrinha deve ser observada com cuidado, pois pode ser um diamante valioso. Cada um de nossos dias pode ser considerado um diamante precioso, valioso e insubstituível. Está em nossas mãos aproveitá-lo, ou lançá-lo ao mar do esquecimento para nunca mais recuperá-lo.

E você, o que anda fazendo com suas pedrinhas? 
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Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Matót e Massei, que descrevem eventos ocorridos com o povo judeu durante os preparativos finais para a entrada na Terra de Israel. A Parashá Matót descreve um acontecimento que é um pouco difícil de ser entendido. Como os integrantes das tribos de Reuven e Gad tinham uma grande abundância de rebanhos, muito mais do que as outras tribos, eles imaginaram que não haveria pastos suficientes em Israel para todos os animais. Então eles propuseram a Moshé que, ao invés de receberem uma porção na Terra de  Israel, preferiam ficar fora, na porção oriental do Rio Jordão, um vale muito fértil e com abundantes pastos, um local excelente para criação de animais.

Moshé não viu o pedido com bons olhos e reagiu com uma forte crítica aos membros das tribos de Reuven e Gad. Mas o que causou esta fúria em Moshé não foi o fato de terem escolhido morar fora da Terra de Israel, e sim a forma como eles se expressaram. Ao fazer o pedido, eles simplesmente ignoraram as necessidades dos seus próprios filhos e mencionaram apenas as necessidades dos seus animais, como está escrito "E vieram os descendentes de Gad e os descendentes de Reuven e falaram com Moshe, com Elazar HaCohen e com os príncipes da comunidades, e disseram... esta terra é para gado, e seus servos têm gado" (Bamidbar 32:2,4).

Após a bronca, aparentemente os líderes de Reuven e Gad entenderam o recado de Moshé, mas não completamente. Eles novamente se aproximaram de Moshé e reapresentaram seu pedido. Desta vez eles se lembraram de mencionar seus filhos, mas ainda assim somente depois de terem mencionado seus animais, como está escrito: "Eles se aproximaram dele (Moshé) e disseram: "Vamos construir aqui currais para o nosso gado e cidades para as nossas crianças" (Bamidbar 32:16). Novamente Moshé não gostou da inversão de prioridades, por eles terem colocado seus bens antes de suas famílias, e novamente os criticou. Finalmente eles aprenderam a lição e colocaram as coisas em sua devida ordem, isto é, primeiro a família e somente depois os negócios, como está escrito "Nossos filhos e nossas mulheres, nossos rebanhos e nossos animais permanecerão lá, nas cidades de Guilad" (Bamidbar 32:26).

As tribos de Reuven e Gad, e metade da tribo de Menashé, que posteriormente se juntou a eles na decisão de morar fora da Terra de Israel, parecem dar mais valor para suas posses do que para sua espiritualidade e suas famílias. O que poderia explicar esta visão tão distorcida das coisas?

A resposta está em um famoso questionamento: "Quem é rico?". Que tipo de resposta daríamos para esta pergunta? Na nossa concepção, o mais rico é aquele que tem o maior saldo bancário. Como a pergunta é quantitativa, então esperaríamos uma resposta também quantitativa. Porém, a Mishná (parte da Torá Oral) dá uma resposta diferente: "Quem é rico? Aquele que está contente com sua porção" (Pirkei Avót 4:1), isto é, rico é aquele que está feliz com sua vida.

Apesar das aparências, isto não é um ensinamento "conformista", de que devemos desejar uma vida medíocre e sem crescimento. A Mishná está nos ensinando que devemos nos esforçar para melhorar nossas vidas de todas as maneiras possíveis, mas devemos saber que, em qualquer nível de conquista que tenhamos alcançado, a chave para possuir isto de verdade é apreciá-lo. A pessoa que é rica de verdade é aquela que desenvolve uma atitude que o faz se sentir abençoado, independente das circunstâncias atuais de sua vida, e que tem a certeza de que absolutamente nada lhe falta.

Todos nós lembramos ter desejado "algo" na vida que, caso fosse alcançado, nos levaria a um estado de felicidade permanente. Pode ter sido um novo trabalho, uma nova casa, um novo carro ou qualquer outra coisa que teoricamente mudaria nossa vida para sempre. Mas o que ocorreu quando alcançamos este desejo? Percebemos que, após um rápido momento de "brilho" inicial, nada mudou de verdade em nossas vidas. Porém, ao invés de aprender com esta lição, normalmente passamos para a próxima fantasia, para a próxima ilusão de algo que vai realmente mudar nossas vidas.

Mudar a nossa vida de forma permanente tem muito mais a ver com gostar do que nós temos do que ter o que nós gostamos. Apreciação é como um músculo, precisa ser trabalhado para se desenvolver e se fortalecer. Se uma pessoa tem apenas 10 mil e realmente aprecia e se sente abençoado por ter este valor, enquanto outra pessoa tem 10 milhões mas não aprecia por estar focado nos 100 milhões que seu vizinho tem, então quem é mais rico, aquele que tem 10 mil ou aquele que tem 10 milhões? O ponto em comum entre todas as pessoas que são felizes é que elas desenvolveram uma atitude de apreciar tudo o que têm na vida e se sentem abençoadas. E o contrário também é válido, isto é, o ponto em comum entre as pessoas que estão sempre tristes é que, independente do que elas têm, elas não sabem apreciar as bênçãos que receberam na vida.

Este é um conceito incrível, de que ser verdadeiramente rico não é determinado pelos padrões ditados pela nossa sociedade. Riqueza é algo disponível para todos, tanto para os ricos quanto para os pobres. Ser rico não depende de ninguém, depende apenas de nós mesmos, pois é uma questão de atitude. Se a pessoa desenvolve esta atitude positiva, todos os bens materiais que ela adquire servem para aumentar seu prazer. Mas se a pessoa não desenvolve esta atitude, nenhuma quantidade de bens será suficiente para fazê-la se sentir rica. A falta de apreciação a levará a uma busca incessante de níveis maiores de aquisição material, que nunca terá fim e nunca a deixará satisfeita de verdade.

Este conceito talvez explique a visão distorcida de Reuven, Gad e Menashé. De acordo com o Rav Simcha Barnett, há um ponto em comum entre estas tribos: as três eram descendentes de primogênitos. Reuven era o primogênito dentre todos os filhos de Yaacov; Gad era o primogênito de Zilpá, uma das esposas de Yaacov; e Menashé era o primogênito de Yossef. De acordo com o judaísmo, o primogênito carrega um grau de responsabilidade maior do que seus irmãos. Formalmente, este papel de liderança se materializava nos serviços do Templo Sagrado e no reinado do povo judeu, papéis que deveriam ser exercidos pelos primogênitos.

Porém, há outro ponto em comum entre estas tribos: elas são descendentes de primogênitos que perderam a sua liderança. Por causa da impulsividade de Reuven, que trocou a cama de seu pai de lugar, ele perdeu o reinado, que passou para Yehudá. Já seus descendentes perderam o sacerdócio para a tribo de Levi por terem participado da terrível transgressão do bezerro de ouro. Gad, que também era primogênito, provavelmente foi indiretamente incluído nos infortúnios de Reuven. E Menashé foi "deixado de lado" por seu avô Yaacov, que ao dar suas Brachót, deu preferência ao seu irmão mais novo, Efraim. Portanto, os três esperavam receber privilégios especiais e cargos elevados dentro do povo judeu, mas foram "derrubados" destes papéis de destaque.

É possível que eles esperassem receber algo a mais da vida. Eles contavam com os cargos elevados e com a grandeza que receberiam. Quando a pessoa se sente desta maneira, como se a vida tivesse uma "dívida" com ela, ela se sente amarga caso não receba o que esperava. E mesmo que ela receba, também não sabe valorizar, pois já conta com aquilo. Por exemplo, se uma pessoa empresta a um amigo uma nota de 100 reais, ela não se alegra quando recebe o dinheiro de volta, pois já estava contando com ele. Mas se a mesma pessoa recebesse de presente uma nota de 100 reais, apreciaria seu presente e se alegraria com ele. Da mesma maneira, quando alguém acha que as coisas certamente virão para ele dificilmente se sentirá satisfeito e estará sempre desejando mais e mais. Talvez isto explique o porquê de seus descendentes, as tribos de Reuven, Gad e Menashé, terem sido tão atraídas pelas suas posses materiais, a ponto de dar mais importância aos seus bens do que aos seus familiares e às suas metas espirituais.

Portanto, a chave para saber apreciar a vida é mudar a nossa atitude e passar a olhar tudo como se fosse um presente. Quando achamos que merecemos as coisas, não sabemos apreciar quando elas surgem em nossas vidas. Então o ideal é viver com o conceito de que "não merecemos nada". Se percebêssemos que nossa vida está repleta de bênçãos que nós não fizemos nada para merecer, como o nosso corpo perfeito, nossa inteligência, nossos dons naturais e nossos familiares, então saberíamos reconhecer tudo o que temos de bom. É isto o que o Pirkei Avót está nos ensinando: se queremos ser ricos de verdade e felizes, então a parte mais importante para isso é saber apreciar o que temos. Somente assim as pessoas conseguirão aproveitar as coisas que elas recebem nesta vida maravilhosa. 

SHABAT SHALOM                                          

Rav Efraim Birbojm
Nm. 30:1- 32:42,
Nm. 33:1-36:13
 
 

sábado, 19 de julho de 2014

ESCUTANDO UMA BOA BRONCA - PARASHÁ MATOT 5774

"Certa vez, quando já era um dos maiores rabinos de sua geração, o Rav Moshe Feinstein (Lituânia, 1895 - EUA, 1986) recebeu um telefonema. Do outro lado da linha estava um homem completamente descontrolado, que começou a despejar uma verdadeira enxurrada de críticas e insultos ao Rav Moshe Feinstein por estar indignado com uma de suas decisões sobre a Halachá (Lei Judaica). Mas ao invés de simplesmente desligar o telefone, o Rav Moshe Feinstein pacientemente escutou o longo discurso daquele homem mal educado, sem tentar ao menos se defender. Um aluno que estava na sala e escutou os gritos do homem do outro lado da linha ficou chocado e questionou por que o rabino não havia respondido nada, já que eram acusações completamente infundadas. O Rav Moshe Feinstein sorriu e respondeu:

- Você está certo, realmente a reclamação dele foi completamente sem sentido. Mas é tão raro eu ser repreendido por alguém que fiquei agradecido de poder escutar palavras tão fortes. Apesar de não poder utilizar as palavras deste homem na área na qual ele me repreendeu, já que foi uma crítica equivocada, certamente deve haver alguma área na qual eu posso usar as palavras dele para poder melhorar e crescer"

O Rav Moshe Feinstein, além de ter sido um brilhante estudioso de Torá, também se esforçava muito para trabalhar suas Midót (traços de caráter). E uma das áreas nas quais ele se destacou foi o amor às críticas como forma de crescimento. Talvez justamente por isso ele tornou-se um dos maiores sábios de sua geração.
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Na Parashá desta semana, Matót, o povo judeu estava se aproximando da Terra de Israel e a entrada era uma questão de tempo. Então duas tribos, Gad e Reuven, fizeram um pedido surpreendente para Moshé. Como eles tinham uma quantidade muito grande de gado, maior do que o resto do povo, eles preferiam se estabelecer fora de Israel, nas margens do rio Jordão, uma grande planície propícia para a criação de animais. A resposta de Moshé foi uma dura repreensão às duas tribos, tendo como ponto central o fato deles estarem planejando abandonar seus irmãos naquele momento tão delicado no qual começariam as guerras de conquista de Israel. Moshé entendeu, nas entrelinhas do pedido, que eles queriam ficar tranquilamente criando seus animais enquanto o resto do povo estaria arriscando a vida para conquistar Israel. A bronca de Moshé foi longa e ameaçadora. Entre outras coisas, ele relembrou o incidente dos 10 espiões que desmotivaram o povo judeu de entrar em Israel e as terríveis consequências. Após escutar a bronca de Moshé, as tribos de Gad e Reuven garantiram para ele que participariam junto com seus irmãos da conquista de Israel e só depois voltariam para se estabelecer definitivamente nas margens do rio Jordão.

Explica o Rav Yehudah Aryeh Leib Alter (1847 - 1905), mais conhecido como Sfat Emet, que as duas tribos não mudaram de ideia por causa das palavras duras de Moshé. Na realidade, eles sempre tiveram intenção de se unir aos seus irmãos na conquista da Terra de Israel, e em nenhum momento quiseram fugir de suas responsabilidades. Mas quando fizeram o pedido a Moshé, eles não deixaram suas intenções claras, levando Moshé a pensar que eles estavam querendo abandonar seus irmãos, e por isto Moshé sentiu a necessidade de imediatamente repreendê-los de forma dura. Portanto, tudo não passou de uma falha de comunicação.

Porém, desta explicação do Sfat Emet fica uma grande dúvida. Se as tribos de Gad e Reuven estavam desde o início decididas a acompanhar o resto do povo nas guerras de conquista de Israel, por que não interromperam imediatamente a bronca de Moshé e avisaram que esta era a intenção original deles? Por que aguentaram calados uma repreensão tão dura e pesada se eles não tinham feito nada de errado e, portanto, não mereciam aquela bronca? Responde o Sfat Emet que, embora eles pudessem facilmente refutar a repreensão, eles conheciam o nível espiritual gigantesco de Moshé e, por isso, queriam escutar sua bronca, mesmo que não mereciam. Mas qual é a grande vantagem de escutar uma bronca de alguém espiritualmente elevado, e em especial neste caso, no qual as pessoas nem mesmo mereciam receber esta bronca, pois não haviam feito nada de errado?

A resposta está nas palavras do Talmud (Taanit 20a), que afirma que as maldições com as quais o profeta Achia HaShiloni amaldiçoou o povo judeu são melhores do que as Brachót (Bençãos) dadas por Bilaam HaRashá (o malvado) ao povo judeu. Esta afirmação do Talmud se baseia em um versículo ensinado por Shlomo Hamelech (Rei Salomão): "Os golpes de um amigo são dignos de confiança, enquanto os beijos de um inimigo são prejudiciais" (Mishlei 27:6). Os comentaristas explicam que a expressão "golpes de um amigo" refere-se a palavras de repreensão. Isto nos ensina que a bronca de alguém que realmente gosta e se preocupa conosco é muito valiosa, pois ela tem como objetivo nos ajudar a melhorar. É um grande ato de bondade, pois normalmente não enxergamos nossos erros e defeitos, e uma repreensão de alguém que se importa conosco pode nos ajudar a consertar nossos atos e a crescer espiritualmente. Foi isto que aconteceu com as pessoas das tribos de Gad e Reuven quando eles escutaram a bronca de Moshé, pois eles sabiam que no nível espiritual tão elevado dele, certamente sua bronca era baseada nos motivos mais puros e com a única intenção de ajudá-los a crescer. Por isto, apesar deles poderem se defender, acharam que valia mais a pena escutar as suas palavras e tentar, de alguma forma, crescer com elas.

Mas e quando a repreensão vem de alguém que não é espiritualmente tão elevado, ou que nos dá a bronca de uma maneira equivocada, de forma que nos machuca? Será que nestes casos também precisamos escutar? Explica o Rav Yehonatan Gefen que mesmo uma repreensão feita por alguém em um nível espiritual mais baixo pode ter muitos benefícios, inclusive quando feita da maneira incorreta. O Sefer HaChinuch (Mitzvá 241), quando se aprofunda na proibição da Torá de "Não se vingar", explica que esta Mitzvá é baseada no conceito de que tudo o que acontece em nossas vidas é diretamente dirigido por D'us. Mesmo quando alguém nos agride e nos critica de forma negativa e destrutiva, é inútil guardar rancor e se vingar desta pessoa, pois a dor que nos foi causada não teria acontecido se esta não fosse a vontade de D'us.

Este conceito pode ser utilizado para transformar em algo positivo este tipo de crítica que é destrutiva e nos machuca. Precisamos ignorar a falha daquele que está repreendendo e focar apenas no que ele realmente disse, aceitando a repreensão. Se refletirmos e formos sinceros, perceberemos que na maioria dos casos há um elemento de verdade em cada crítica que escutamos, uma prova de que a crítica, na realidade, é uma forma de comunicação de D'us, nos avisando que precisamos melhorar algo na nossa vida.

Assim também ensina Shlomo Hamelech: "Escute um conselho e aceite uma repreensão, para que você se torne sábio no fim dos seus anos" (Mishlei 19:20). Se prestarmos atenção, Shlomo Hamelech utiliza duas expressões diferentes, "escutar" em relação ao conselho e "aceitar" em relação à repreensão. A expressão "escutar", como utilizada no "Shemá Israel" (escute Israel), implica em pensamento e internalização. Quando a pessoa escuta um conselho, é importante que ela reflita antes de segui-lo. Mas a expressão "aceite" implica em receber sem questionamentos. Shlomo Hamelech está nos ensinando que, quando a pessoa escuta uma repreensão, ela deve aceitá-la sem questionar a validade da repreensão, isto é, sem se importar se a repreensão não é totalmente coerente com um erro cometido ou se não foi feita da forma correta. Ao contrário, a pessoa deve enxergar a repreensão como uma mensagem de D'us para que ela possa melhorar seus atos e seus traços de caráter.

Estamos longe do nível do Rav Moshe Feinstein e não gostamos de escutar críticas, pois não é agradável escutar que temos alguma falha ou que nos comportamos de uma maneira inadequada. Mas se conseguirmos vencer a dor que sentimos ao escutar uma crítica, sendo ela construtiva ou destrutiva, e tentarmos aprender algo da repreensão para melhorarmos em alguma área da vida, então poderemos transformar as críticas em uma incrível ferramenta de crescimento, que pode nos ajudar muito no nosso trabalho espiritual neste mundo.

"Se a vida te mandar limões, faça uma limonada" (Ditado popular)

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm
Nm. 30:1- 32:42, Je 1:1-2:3

sábado, 6 de julho de 2013

MEDO DO CASTIGO - PARASHIÓT MATÓT E MASSEI 5773

Certa vez, em uma pequena cidade do interior, um grande incêndio se alastrou e começou a destruir as casas. As notícias do incêndio correram e chegaram à cidade vizinha, onde morava Alberto, o sobrinho de um dos moradores mais ricos daquela cidade. Quando ele escutou sobre o incêndio, imediatamente pediu ajuda a um amigo para tentar salvar a casa de seu tio da destruição. Correram o mais rápido que puderam para tentar chegar a tempo de ajudar.

Porém, quando Alberto chegou ao portão da casa de seu tio, viu que as coisas mais preciosas que ele tinha, como um antigo relógio de família, a caixa de joias de sua esposa e a sua coleção de moedas antigas, estavam espalhadas por todo o jardim. Alberto parou e, com tristeza, avisou ao amigo que de nada havia adiantado a corrida deles, pois haviam chegado tarde demais. Certamente o estrago já estava feito e a casa já havia sido completamente destruída pelo fogo.

Mas o amigo de Alberto não entendeu. Eles haviam chegado apenas até o portão da casa, não tinham nem visto se a casa havia sido atingida ou não. Como ele podia ter tanta certeza da destruição sem nem mesmo ter visto a casa do seu tio? Alberto explicou para ele:

- Normalmente, a pessoa guarda seus objetos mais valiosos nos lugares mais seguros dentro da casa. Mas podemos ver que os objetos mais valiosos estão completamente expostos, espalhados pelo jardim da casa. Isto significa que a casa já foi completamente consumida pelo fogo, e estas são as poucas coisas de valor que eles conseguiram salvar"

Explica o Chafetz Chaim que todo judeu tem uma "mansão" guardada para ele no Mundo Vindouro, que é construída através de cada bom ato e cada Mitzvá que ele cumpre na vida. Mas quando a pessoa se desvia do caminho correto, suas transgressões podem destruir sua "mansão espiritual". Ao viver apenas em busca do preenchimento dos seus desejos, a pessoa pode acabar com sua eternidade. E tudo o que restará a ela será aproveitar, ainda neste mundo, as poucas Mitzvót que ele conseguir salvar deste terrível "incêndio espiritual". Por isso, refletir sobre a consequência dos nossos maus atos nos ajuda a garantir a nossa eternidade.

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Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Matot e Massei, terminando o quarto livro da Torá, Bamidbar. Na Parashá Matót, a Torá fala, entre outros assuntos, sobre a guerra de vingança contra o povo de Midian e o pedido das tribos de Reuven e Gad para se estabelecerem do lado de fora da Terra de Israel. Já a Parashá Massei descreve as várias viagens que o povo judeu fez no deserto.

Também na Parashá Massei a Torá nos ensina qual a punição de uma pessoa que comete um assassinato não intencional. Por exemplo, se uma pessoa fosse cortar árvores e o machado escapasse de sua mão e atingisse letalmente outra pessoa, ela não era punida com a pena de morte, já que não havia a intenção de matar, mas deveria pagar pelo seu erro indo para o exílio. O exílio não poderia ser em qualquer lugar, havia cidades específicas para este fim, chamadas "Arei Miklat" (cidades de refúgio). O assassino não intencional precisava ir imediatamente para a cidade de refúgio e permanecer ali até a morte do Cohen Gadol (Sumo sacerdote).

Podemos perceber que estas cidades de refúgio envolvem dois conceitos diferentes: a salvação e o castigo. Por um lado, as cidades eram construídas pelo bem do assassino não intencional. De acordo com a Torá, apesar do assassinato não ter sido cometido com nenhuma má intenção, havia a permissão para que um parente do falecido vingasse a sua morte. Este parente era conhecido como "Goel HaDam" (vingador de sangue). Mas o assassino estava protegido dentro da cidade de refúgio, pois o "Goel HaDam" não tinha nenhuma permissão de causar qualquer mal ao transgressor lá dentro. A Torá exigia que os caminhos que levavam às cidades de refúgio fossem bem sinalizados, possibilitando que o assassino não intencional pudesse correr e salvar sua vida. Além disso, dois sábios de Torá acompanhavam o assassino não intencional até a cidade de refúgio, para acalmar e clamar pela sua vida caso o "Goel HaDam" o alcançasse no caminho. Portanto, as cidades de refúgio eram uma enorme bondade de D'us com o transgressor.

Mas, por outro lado, se o assassino saísse da cidade de refúgio, mesmo que por alguns poucos instantes, o "Goel HaDam" poderia matá-lo sem nenhum tipo de aviso ou advertência. A cidade de refúgio se tornava, portanto, uma prisão, um castigo para o transgressor. Não é contraditório que D'us por um lado se preocupe tanto com a vida do transgressor, mas que por outro lado mande um castigo tão duro, facilitando com que o "Goel HaDam" possa matá-lo caso ele apenas pise fora da cidade de refúgio?

A resposta começa em um dos fundamentos principais do judaísmo: nada acontece por acaso, tudo é supervisionado pelo Criador do mundo. Ninguém morre acidentalmente, tudo já está previsto e decretado. Se o machado voou da mão de uma pessoa e atingiu letalmente outra pessoa, é porque a outra pessoa já estava destinada a morrer naquele momento. Mas por outro lado, se uma pessoa mata outra, mesmo que não intencionalmente, isto significa que há algo de errado em sua alma. Por ela ter sido utilizada por D'us como um "instrumento" para cumprir uma pena de morte já decretada nos mundos espirituais, isto significa que esta pessoa perdeu a sensibilidade de qual o valor da vida.

Este era o motivo pelo qual o assassino deveria ficar na cidade de refúgio. Em primeiro lugar, o decreto espiritual de exílio era uma Kapará (expiação) pelo seu erro. Todo o sofrimento de estar longe da família e dos amigos limpava a sua alma do erro cometido. Além disso, nas cidades de refúgio morava a tribo de Levi, composta por pessoas que se dedicavam ao estudo de Torá e ao autoaprimoramento. A influência espiritual positiva da tribo de Levi ajudava a pessoa a crescer e a se arrepender dos erros que a levaram ao assassinato não intencional.

Mas se este conserto era tão importante para a alma do infrator, e D'us protegia tanto a vida dele para permitir que ele chegasse a esta cidade de refúgio, por que D'us permitiu ao "Goel HaDam" matá-lo caso saísse de lá, mesmo que só por alguns instante? Não era óbvio que a pessoa racionalmente gostaria de ficar ali, consertando seus erros e obtendo uma limpeza espiritual por sua terrível transgressão? Não era desnecessária esta ameaça à vida do assassino não intencional?

D'us criou todo o universo e, por isso, Ele conhece cada pequeno detalhe de cada uma de Suas criaturas. Ele sabe que no momento em que o transgressor sentisse saudades de sua família, ele teria vontade de sair da cidade de refúgio. Se não houvesse o medo do "Goel HaDam", no momento em que os desejos falassem mais alto, as suas convicções intelectuais seriam facilmente deixadas de lado. A ameaça do "Goel HaDam" era o que, na prática, mantinha a pessoa na cidade de refúgio, mesmo quando apertava a vontade de abandonar tudo e ir embora.

Este conceito ensinado na Parashá nos ajuda a entender algo que nos incomoda. Em geral, as pessoas não gostam de sentir medo. O medo inibe, assusta, trava. Mas sabemos que há na Torá inclusive uma Mitzvá de sentir medo: a Mitzvá de temer a D'us. O temor principal que precisamos sentir para cumprir esta Mitzvá é um temor mais elevado, chamado "Irat Haromemut", que se refere ao medo que devemos sentir por causa da grandeza de D'us. É um temor que vem do reconhecimento de quanto D'us é grande e perfeito, enquanto nós somos pequenos e imperfeitos. É um temor que vem junto com uma admiração. Mas existe também um nível de temor mais baixo, chamado "Irat HaOnesh", o medo do castigo. É o medo de que, se cometermos um erro, D'us nos punirá. Porém, se o principal temor para cumprir a Mitzvá de "temer a D'us" é o medo da grandeza Dele, para que serve este nível mais baixo de temor, o medo do castigo? Se o ideal é realmente sentir um temor que vem da admiração da grandeza de D'us, qual o benefício que nos traz sentir medo da punição?

Ensina o Rav Yaacov Kanievsky, mais conhecido com "Staipler", que muitas vezes uma pessoa sente uma forte atração e desejo para cometer uma transgressão. Neste momento, em que o Yetser Hará (má inclinação) está atacando a pessoa com força máxima, os desejos quase incontroláveis da pessoa entorpecem seu coração, a ponto da pessoa não levar em consideração as consequências espirituais negativas de seu ato. Por isto, a única coisa que realmente funciona neste momento é o medo do castigo, a pessoa se lembrar de que toda transgressão será duramente castigada. Este medo é o único freio que consegue parar a pessoa que está sendo levada atrás dos seus desejos. É por isso que quanto mais a pessoa internalizar as consequências negativas de suas transgressões, quanto mais ela refletir sobre o peso do castigo que virá caso cometa um erro, maior a chance de ela conseguir vencer suas tentações. Da mesma forma que o medo do "Goel HaDam" ajudava o assassino não intencional a vencer a sua vontade irracional de sair da cidade de refúgio, o que interromperia seu conserto espiritual, assim também o medo do castigo serve para nos despertar, quando o desejo fala mais alto do que as nossas convicções.

Por isso, o sentimento de medo não é algo negativo. Se o medo for mal utilizado, ele realmente nos bloqueia e não nos deixa crescer. Mas quando bem utilizado, o medo nos ajuda a cumprir a nossa missão neste mundo e a fugir dos erros e tentações que nos desviam. Como em uma escada, começamos a subir pelo primeiro degrau, o medo do castigo, para somente depois atingir o degrau mais alto, o medo da grandeza de D'us. Assim, poderemos utilizar o nosso medo para garantir que a nossa "mansão espiritual" estará guardada, são e salva, para quando chegar o momento de partir deste mundo.

SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 33:1-36:13, Je 2:4 – 28, 3:4, 4:1-2, Tg. 4:1-12

sexta-feira, 20 de julho de 2012

QUEM ESTÁ NO COMANDO? - PARASHIOT MATÓT E MASSEI 5772

"Jacó estava com dificuldades financeiras e acabou pedindo muito dinheiro emprestado para Abrão. Como era uma soma muito alta, quando chegou o dia do pagamento, Jacó ainda não tinha conseguido o dinheiro necessário. Ele ficou andando na sala, de um lado para o outro, pensando em como conseguiria aquela quantia. Já era tarde da noite e ele não conseguia dormir. Tentou deitar, mas ficava revirando na cama. Sara, incomodada com tamanha agitação, perguntou:
- O que você tem hoje? Por que está assim tão agitado? Deita e dorme, pois já é tarde!
- Não consigo dormir, querida - respondeu Jacó - Amanhã de manhã preciso devolver um empréstimo para o Abrão, mas não tenho este dinheiro. O que eu vou fazer? Como eu posso dormir?
Sara, ao escutar isso, pegou o telefone e ligou para o Abrão. Quando ele atendeu, assustado com o telefonema no meio da madrugada, ela disse:
- Abrão, aqui é a Sara. Estou ligando apenas para te avisar que meu marido não vai pagar o dinheiro que ele está devendo. Não adianta insistir. Boa noite.
Quando ela desligou o telefone, o marido, atônito, perguntou:
- Querida, você ficou louca? Por que fez isso?
- Jacó, você já pode deitar e dormir. O Abrão já sabe que você não vai pagar a dívida. Agora quem vai ficar sem dormir é ele..."
Muitas vezes fazemos o mesmo em relação às dívidas que temos com D'us. Nos esquecemos das nossas obrigações e nos comportamos como se, no nosso relacionamento, somente Ele tem deveres.
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Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Matót e Massei, terminando o 4º livro da Torá, Bamidbar. E a Parashá Matót começa com um assunto muito importante dentro da lei judaica: as promessas e juramentos, como diz o versículo: "Um homem que fizer uma promessa para D'us ou um juramento para proibir algo sobre si, ele não deve descumprir sua palavra. Ele deve fazer de acordo com o que saiu de sua boca" (Bamidbar 30: 3).
Infelizmente não tratamos as promessas e juramentos com a devida seriedade. Estamos acostumados a nos comprometer e a não cumprir nossa palavra, sem sentir nenhuma vergonha por isso. Fazemos juramentos sem nenhuma intenção de cumprir, apenas para mostrar nossa convicção. "Juro que foi assim que aconteceu", "Juro que isso não acontecerá novamente". Será que não estamos desprezando algo importante, que pode ter graves consequências?
Existem duas categorias de promessas. A pessoa pode se proibir de algo que a Torá permite, como alguém que promete não comer mais maças, ou a pessoa pode se obrigar a fazer algo que não estava obrigada, como alguém que promete doar certa quantia de Tzedaká (caridade) para uma instituição. Em ambos os casos é muito grave a pessoa não cumprir sua promessa. E em relação às promessas nas quais nos obrigamos a fazer algo, não apenas é um problema não cumprir o que prometemos, mas também adiar o cumprimento de algo prometido já é extremamente grave. Podemos ver isto através das palavras de um Midrash (parte da Torá Oral), que nos ensina que aquele que prometeu algo e tarda em cumprir o que prometeu, seu castigo é ser lançado ao mar.
Apesar de parecer algo não literal, as palavras do Midrash já se cumpriram muitas vezes durante a história. O profeta Yoná, por exemplo, prometeu a D'us que iria à cidade de Nínive para advertir seus moradores sobre suas graves transgressões e avisá-los que a cidade seria destruída por D'us. Mas ao invés de cumprir sua palavra, Yoná tentou adiar sua missão, fugindo em um navio. D'us então mandou uma tempestade que quase afundou o navio onde estava Yoná. Os marinheiros, apavorados, jogaram a sorte e descobriram que o culpado era Yoná. A tempestade só parou quando ele foi atirado ao mar, cumprindo as palavras do Midrash.
Mas sabemos que os castigos de D'us são "Midá Kenegued Midá" (medida por medida), isto é, da maneira que erramos, assim somos punidos, para que possamos entender nosso erro e consertá-lo. Então por que a punição de alguém que adia o cumprimento de uma promessa é ser atirado ao mar? Mais do que isso, o que leva alguém a adiar o cumprimento de uma promessa? Provavelmente o Midrash não está falando de alguém que não cumpriu a promessa por algum impedimento de força maior, e sim daquele que poderia ter cumprido e não cumpriu. Se a pessoa prometeu, então por que não cumpre logo sua palavra? E finalmente, há um interessante ensinamento sobre promessas no Talmud (Nedarim 22a), que afirma que aquele que faz uma promessa se compara a alguém que constrói um altar próprio. O que o Talmud está nos ensinando, e qual a conexão com os ensinamentos trazidos anteriormente?
Explica o Rav Yohanan Zweig que, para responder todas estas perguntas, antes é necessário entender o que leva uma pessoa a fazer uma promessa. A promessa é uma ferramenta que a pessoa utiliza para fortalecer suas convicções. Se uma pessoa toma uma decisão sem nenhum tipo de comprometimento, ela pode facilmente mudar de ideia. A promessa entra como uma "ajuda Divina" para que a pessoa se mantenha firme em suas convicções, mesmo quando surgirem dificuldades e desejos contrários. Se refletirmos, vamos perceber que a promessa dá para a pessoa um direito que até agora pertencia somente à D'us: a capacidade de criar um novo status para um objeto. Por exemplo, quando alguém promete não comer mais maças, para esta pessoa a proibição de comer maças tem o status equivalente à proibição estabelecida por D'us de comer carne de porco. Pelo fato da promessa ser um poder dado por D'us aos seres humanos, aquele que a utiliza para o seu próprio benefício é comparado com alguém que constrói em seu quintal um altar para uso privado, ao invés de utilizar o altar coletivo.
Porém, esta consciência de que a pessoa precisa da ajuda de D'us para satisfazer suas necessidades pessoais causa uma forte sensação de endividamento. E assim diz Shlomo Hamelech (Rei Salomão): "Uma pessoa que toma dinheiro emprestado torna-se escravo daquele que emprestou" (Mishlei - Provérbios 22:7). Da mesma forma que alguém que pediu emprestado dinheiro ao seu companheiro sente que está nas mãos dele, assim também a pessoa que utilizou a força de D'us para o seu próprio benefício sente, mesmo que de forma subconsciente, que está nas mãos de D'us.
Há outro paralelo interessante entre as dívidas monetárias e as promessas. É muito comum encontrar pessoas que, apesar de terem dinheiro para pagar suas dívidas, ficam postergando o pagamento. Qual a verdadeira intenção delas? Ao atrasar o pagamento, elas estão reestruturando o relacionamento. Ao invés de serem controladas pela pessoa que emprestou o dinheiro, eles passam a assumir o papel de controladoras. Agora é a pessoa que emprestou o dinheiro que está nas mãos do devedor. Este paralelo pode ser aplicado à pessoa que pode cumprir uma promessa e adia. O adiamento da promessa dá para a pessoa a sensação de que ele não está mais nas mãos de D'us, ao contrário, ela sente que agora tem controle sobre seu relacionamento com Ele.
O que significa a punição de ser atirado nas águas? Na terra, a pessoa sente que tem controle. Como a terra é o nosso habitat natural, estamos acostumados e já temos muitas habilidades desenvolvidas neste meio. Já na água, a pessoa se sente completamente indefesa, ela sabe que não tem controle sobre nada. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o general Tito, como nos ensina o Talmud (Guitin 56b). Após ter destruído o Beit Hamikdash (Templo Sagrado) e ter causado todos os tipos de desonra possíveis para o nome de D'us, Tito partiu de volta para Roma em um navio carregado de tesouros roubados do Beit Hamikdash. D'us mandou uma forte tempestade que quase partiu seu navio ao meio. Tito então gritou para os Céus: "O D'us dos judeus somente é valente na água. Veio o Faraó e Ele o afogou na água. Veio Sisra e Ele o afogou na água. E quanto a mim, Ele também quer me afogar na água. Se Ele é realmente valente, que me deixe chegar à terra firme e lá guerrearemos". Isto demonstra que, enquanto as pessoas pensam que na terra podem controlar, na água todos se sentem indefesos e totalmente sob o controle de D'us. Aquele que atrasa o cumprimento de uma promessa é atirado ao mar, pois como a pessoa estava motivada pelo seu desejo de controlar, a punição é dada de maneira que ela perca qualquer falsa percepção de que está realmente no controle.
Infelizmente não é apenas com as promessas não cumpridas que tentamos, mesmo que inconscientemente, tirar das nossas costas a responsabilidade do nosso relacionamento com D'us. Pois todo relacionamento implica em uma reciprocidade. Qualquer pacto precisa de duas partes ativamente envolvidas. Mas nós estamos sempre cobrando a parte de D'us. Por que Ele não nos deu o que precisávamos? Por que Ele não evitou aquele problema? Será que esta é a postura correta, sempre jogar a responsabilidade para o outro lado, sem nunca questionar se estamos fazendo a nossa parte?
Além disso, damos diversas demonstrações de que sentimos que somos nós que estamos no comando, não D'us. Por exemplo, todas as vezes em que acontece algo diferente do que esperávamos, ficamos extremamente irritados. O que isto significa? Que estamos insatisfeitos com a vontade de D'us, que queremos as coisas do nosso jeito e não do jeito Dele. Também todas as vezes que sentimos inveja, o que estamos demonstrando? Que sentimos que sabemos mais do que D'us. Se Ele deu o carro novo para o vizinho e não para nós, certamente é porque Ele está equivocado. E assim, se prestarmos atenção no nosso comportamento cotidiano, perceberemos o quanto esquecemos que quem está no controle é D'us, e não nós.
Este é o ensinamento que fica com o assunto das promessas: a seriedade que devemos olhar nosso relacionamento com D'us. O quanto devemos nos sentir endividados por tudo o que Ele fez, faz e fará por cada um de nós. E, principalmente, devemos trabalhar a nossa característica de humildade para aceitar que D'us, cuja sabedoria é ilimitada, busca apenas o nosso bem, mesmo quando, em nossa sabedoria pequena e limitada, não conseguimos enxergar.

SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 30:1-32:42, At 9:1-22 (2ª Haftará da Aflição, Shim’u)

Nm. 33:1-36:13, Jr 2:4-28; 4:1-2, Tg. 4:1-12