sábado, 17 de dezembro de 2011

Brasil deveria aprender com a China o valor do sistema baseado no mérito Cap.1

Gustavo Ioschpe conta em cinco capítulos como funciona o sistema educacional que fez do país uma potência. No domingo, o autor mostra o que o Brasil pode copiar da China

CAPÍTULO 1
ALUNOS E SEUS PAIS

Encontrei Sun Juntao, 16 anos, às 7h30 da manhã perto do ponto de ônibus onde desembarcava, em uma das tantas largas e movimentadas avenidas de Xangai, a maior metrópole chinesa. A caminho de sua primeira aula do dia, de matemática, Juntao estava paramentado com roupas de marcas esportivas, ostentava um ralo bigodinho do qual provavelmente se arrependerá no futuro e falava com aquela mistura de entusiasmo, ingenuidade, determinação e timidez próprios da adolescência. O extraordinário na cena era o fato de ser domingo e Juntao estar indo para uma escola particular, onde receberia aulas de reforço. Mais tarde lá estava ele, com mais vinte alunos sentados em duas fileiras de mesas retangulares, separadas por um corredor. A sala não tinha ar-condicionado, monitor de televisão, microfone ou outro aparato tecnológico: só mesas, cadeiras e uma lousa. A aula era ministrada por um professor jovem, de 27 anos. Foi uma das aulas mais pesadas a que já assisti: sem fazer nenhuma concessão ao fato de ser um domingo de manhã, freneticamente o professor resolveu problemas de geometria por quase duas horas, sem intervalo, sem fazer muitas perguntas aos alunos nem esboçar algum sinal de senso de humor ou apelar para a espetacularização das aulas dos cursinhos brasileiros. Ninguém reclamou, nem se mexeu muito, nem saiu para ir ao banheiro. Depois daquela aula, um intervalo de dez minutos e mais duas horas de aula de química. Assim são todos os fins de semana de Juntao. Assim são os fins de semana de milhões e milhões de adolescentes chineses que lutam para superar milhões de colegas e entrar em uma universidade de primeira linha.
Juntao quer mais. Quer ser um dos melhores advogados do mundo, formar-se na China e fazer mestrado em Stanford, na Califórnia, do outro lado do Oceano Pacífico. Para chegar lá, ele precisa obter um ótimo resultado no Gao Kao, o temido e cobiçado exame nacional de admissão universitária. A nota no Gao Kao determina a universidade na qual o aluno será aceito. Por isso Juntao se esforça tanto. Ele acorda diariamente às 6 da manhã. Enfrenta um trajeto de quase uma hora de ônibus para chegar a sua escola. Entre 7h10 e 8 horas, lê com seus colegas livros didáticos da matéria que está estudando, em sala de aula, sem professor. Às 8 começam as aulas. Perto do meio-dia há uma pausa de uma hora e quinze minutos para o almoço, servido no refeitório da escola. À tarde, mais quatro períodos de aula. Às 5 ele vai para casa. Chega por volta das 18h30. Durante uma hora, descansa, toma banho e janta. Aí faz o dever de casa por, normalmente, três horas diárias. Às 22h30 vai dormir, e o ciclo recomeça no dia seguinte. Descanso, só aos sábados, mas por poucos meses: no ano que vem ele fará Gao Kao e frequentará aulas de reforço aos sábados também. Como praticamente todos os jovens que encontrei, Juntao não tem namorada, não vai a baladas, não usa drogas e não fuma. Apesar do embaraço causado à minha tradutora, que só fez a pergunta depois da minha insistência, quando o questionei sobre o que aconteceria se ele, involuntária e inadvertidamente, se apaixonasse por alguém nessa idade, a resposta veio rápida: “Espero até depois do Gao Kao”.
 A obsessão dos chineses pelo estudo é o primeiro dado para entender a notícia, divulgada no fim do ano passado, que abalou profundamente toda a compreensão da educação no mundo: Xangai, província chinesa, tinha tirado o primeiro lugar em todas as áreas aferidas (matemática, ciências e leitura) no mais importante e respeitado teste internacional de qualidade educacional, chamado Pisa. O teste, realizado a cada três anos pela OCDE (o clube dos países desenvolvidos), mede o conhecimento de jovens de 15 anos de idade. Começou a ser realizado no ano 2000 em 32 países (entre eles o Brasil, que ficou em último lugar) e, na edição de 2009, contou com 65 participantes (ficamos novamente na rabeira: entre a 53ª e a 57ª posições). Em suas edições anteriores, o topo do ranking era ocupado pelos suspeitos de sempre: Finlândia, Coreia do Sul, Japão, Canadá. O teste confirmava a crença de que renda e qualidade educacional estão intimamente associadas: só os países mais ricos do mundo conseguiriam produzir sistemas top de educação. Mesmo no teste de 2009, países de nível de desenvolvimento semelhante ao chinês ficaram muito atrás dos países ricos: na área de leitura, o foco da edição de 2009, a Turquia ficou em 41º lugar, a Rússia em 43º, o México em 48º e o Brasil em 53º. Xangai ficou em primeiro lugar, com uma dianteira considerável sobre todos os países desenvolvidos, em todas as áreas avaliadas.
Xangai é uma província e não um país, como a maioria dos outros participantes do teste. É uma província mais rica (com renda igual a duas vezes e meia a média chinesa). Mesmo com essas ressalvas, o feito é incrível. A renda per capita de Xangai em 2010 foi de 11 000 dólares. A Coreia do Sul, segundo lugar em leitura, tem renda de quase 21 000. A Finlândia, terceiro lugar, 44 000, quase a mesma de Singapura, quinto lugar. A renda média de Xangai é igual à brasileira. Ainda que Xangai seja um pequeno pedaço da China (tem um sétimo da área do estado do Rio), com população de 19,2 milhões de pessoas, a província é maior do que 42 dos 65 países participantes do Pisa. É uma região bastante complexa: 11% de seus habitantes vivem na zona rural e 54% dos alunos das primeiras cinco séries são filhos de residentes que vieram de outras províncias para trabalhar em Xangai.
O governo dá as condições e as famílias cuidam de aproveitá-las da melhor maneira. A família de Juntao é um bom exemplo. A mãe trabalha em um escritório de contabilidade e o pai é assistente de logística em uma fábrica. Eles estudaram até o fim do ensino médio. Seus avós maternos foram agricultores, os paternos, operários — estudaram só até o fim do ensino fundamental. Juntao, filho único, mora com os pais em uma quitinete de 40 metros quadrados. O rapaz tem um quarto só para si, para que possa se concentrar nos estudos. Apesar da renda módica dos pais, eles é que pagam as escolas de reforço do filho, e também seus estudos. Na China, só os níveis compulsórios de ensino — do primeiro ao nono ano — são gratuitos. Os três anos de ensino médio são pagos, até nas escolas públicas. Mesmo nos níveis gratuitos, os pais pagam o uniforme, o transporte e a alimentação. O estado dá apenas os livros. Juntao é um bom aluno — média em torno de 7,5 —, mas sua mãe cobra notas melhores. Até quando tira um 9 ou 10, ela diz: “Bom, mas precisa manter o mesmo nível”. O envolvimento emocional e financeiro das famílias chinesas para garantir uma educação de qualidade aos filhos nos proporciona uma grande lição.

Eficiência e simplicidade 
Estudantes se exercitam em uma escola de Pequim e, ao lado, a sala de aula típica, sob a bandeira nacional, sem apetrechos tecnológicos, mas com professor que se formou em boa universidade, onde aprendeu a dar aulas e assimilou a disciplina que ensina a seus alunos

A ciência aplicada
Wei Du, professora de engenharia química de Tsinghua, está trabalhando em uma linha de pesquisa que permitirá o uso de uma enzima que, misturada ao biodiesel, torna o combustível menos poluente e mais econômico. Interessadas em seu trabalho, as brasileiras Vale e Petrobras já procuraram a professora Wei Du. Do rendimento total de 13 000 iuanes da professora, algo em torno de 3 700 reais, mais de 40% vêm da venda de pesquisas aplicadas como a da enzima que limpa o biodiesel. Nominalmente um país de ideologia comunista, portanto avesso ao mercado, a China incentiva fortemente seus cientistas a buscar financiamento junto a empresas privadas internacionais. O contraste com os madraçais universitários brasileiros não poderia ser mais dramático

O centro do mundo
Vice-presidente da Universidade Xangai Jiao Tong, o professor 
Fei Xu tem poucas dúvidas sobre 
as potencialidades da China: 
“O centro científico do mundo foi a Inglaterra, depois a Alemanha, 
hoje são os Estados Unidos. Quando a China se tornar a primeira economia do mundo, em dez anos, as universidades e o mundo científico chineses também deverão conquistar essa posição de liderança. Não temos ainda Nobel dado a um pesquisador chinês, mas, quando tivermos um, 
será o primeiro de muitos”. O estado não fica esperando isso acontecer: está agressivamente repatriando cientistas chineses que hoje 
trabalham no exterior

Os inventores da meritocracia
Na China imperial, os cargos na burocracia já eram preenchidos de acordo com os resultados de exames acadêmicos. Aqueles que obtinham as maiores pontuações eram guindados às carreiras mais prestigiosas. Até hoje é assim: um exame determina a escola que o aluno cursará. Ao final dela, outro exame, o Gao Kao, determina a universidade à qual terá acesso. A estudante Keija Yang passou por toda essa peneira para chegar à Universidade Tsinghua, uma das melhores do país. A meritocracia é um conceito arraigado na China. Ela é o caminho dos mais humildes para a ascensão social. É assim desde os tempos dos mandarins, a partir do ano 605

Xu Junmin e Xu Huaze
O médico Xu Junmin, de Xangai, afirma que entre as qualidades de um bom pai não está a de fazer o filho, Huaze, feliz. “Espero que meu filho seja um dragão”, diz Xu Junmin, usando como metáfora o animal que na mitologia chinesa representa poder e excelência. Para isso, a cobrança sobre Huaze é fortíssima. Ele é um dos melhores alunos de uma das boas escolas de Xangai, onde vive em regime de internato de segunda a sexta-feira. Ele vai para casa nos fins de semana, mas a rotina de estudos não difere muito da enfrentada nos dias úteis. Conta o pai: “Quando ele reclama que não tem tênis de marca, eu digo que na idade dele nunca tinha calçado sapatos”

Sun Juntao quer ser o tal
Ele não fuma, não bebe, não usa drogas, nunca namorou e diz que se vier a se apaixonar agora vai deixar o amor passar e só se interessará por isso depois do Gao Kao, o temível exame pré-universitário cujas notas definem se o aluno vai cursar uma universidade de primeira linha ou terá de se contentar com as medianas ou ruins. Os avós de Juntao foram camponeses, os pais completaram o ensino médio e hoje têm empregos de nível gerencial. A família de Juntao vive em um pequeno apartamento de 40 metros quadrados em Xangai, mas o jovem tem um quarto só para ele, onde pode se dedicar ao estudos sem ser incomodado. Os pais pagam as aulas particulares de reforço para o filho, pois apostam no futuro do rapaz. Sun Juntao quer ser advogado e fazer mestrado na Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Diz ele: “Se estudar muito, eu posso vir a ser um dos melhores advogados do mundo”

http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/china-ensina-o-valor-do-sistema-baseado-no-merito

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