"Certa vez o Rabino Yossef Dov Soloveitchik,
mais conhecido como Beit Halevi, estava em casa, na véspera de Pessach, cuidando
dos últimos preparativos para o Seder. Foi quando escutou alguém batendo na
porta. Era um homem muito pobre, que queria tirar uma dúvida em relação a uma
das Mitzvót do Seder de Pessach. Convidaram-no a entrar, e ele fez a seguinte
pergunta:- Rabino, eu não tenho dinheiro para comprar
vinho. Será que eu posso cumprir a Mitzvá dos 4 copos de vinho do Seder com 4
copos de leite?
O Beit Halevi balançou negativamente a
cabeça e ensinou ao pobre que, de acordo com a Halachá (lei judaica), não era
possível cumprir a Mitzvá dos 4 copos daquela maneira. Mas pediu ao pobre que
aguardasse um pouco e voltou, alguns instantes depois, com um soma considerável
de dinheiro. Entregou o dinheiro ao pobre e pediu que ele comprasse com aquele
dinheiro vinho e comida para o Seder de Pessach. O pobre não cabia em si de
contentamento, não sabia nem como agradecer. Abraçou e Beit Halevi e saiu
apressado para comprar a comida e o vinho para o
Seder.
Algum tempo depois do pobre ter ido embora,
a esposa do Beit Halevi, não aguentando a curiosidade,
perguntou:
- Você poderia ter dado apenas o dinheiro
suficiente para que aquele homem pudesse comprar uma garrafa de vinho para
cumprir a Mitzvá dos 4 copos. Ele não pediu dinheiro para mais nada. Então por
que você deu tanto dinheiro para ele?
- Provavelmente você não percebeu o que
estava nas entrelinhas da pergunta daquele homem – respondeu, com um sorriso, o
Beit Halevi - Cada um dos 4 copos deve ser tomado em um momento específico do
Seder, sendo que dois deles são tomados apenas depois do término da refeição. Se
de acordo com a Halachá não podemos beber leite imediatamente depois de ter
comido carne e é necessário esperar algumas horas, então como aquele homem
pretendia cumprir a Mitvzvá dos 4 copos com leite? Então eu entendi que ele
também não tinha dinheiro nem mesmo para comprar carne para o jantar. Foi por
isso que eu dei tanto dinheiro para ele, mais do que o necessário para apenas
uma garrafa de vinho"
Nossos grandes sábios se esforçaram muito
para adquirir a sensibilidade de entender não apenas as palavras ditas pelas
pessoas, mas também o que está nas entrelinhas. Pois as entrelinhas muitas vezes
carregam mensagens até mais importantes do que aquilo que é efetivamente
falado.
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A partir da Parashá desta semana,
Behaalotechá, a Torá começa a relatar uma série de reclamações e rebeliões do
povo, pelos mais variados motivos como, por exemplo, a insatisfação com o Man
(Maná) que caía do céu e o desejo de comer carne. E assim está escrito na
Parashá: "E o povo era como aqueles que reclamam, e foi mal aos ouvidos de D'us.
E D'us escutou, e Sua fúria se acendeu, e um fogo de D'us queimou contra
eles..." (Bamidbar 11:1).
Observando a linguagem do versículo, surgem
algumas perguntas. Em primeiro lugar, por que a Torá diz que o povo era "como
aqueles que reclamam", se eles estavam efetivamente reclamando? Além disso, por
que a Torá ressalta que D'us escutou, não é óbvio que D'us escuta tudo? E
finalmente, o deserto é um lugar muito difícil, perigoso e estressante e,
portanto, era normal que o povo tivesse queixas por causa das dificuldades.
Então por que D'us ficou tão furioso por causa de simples reclamações do
povo?
É interessante perceber que neste versículo
não é mencionado nenhum motivo explícito para as reclamações. Rashi,
comentarista da Torá, explica que os judeus na realidade não tinham nenhuma
reclamação específica, eles estavam apenas procurando um pretexto para se
afastar de D'us. Eles não tinham nenhuma razão válida para reclamar, então
fizeram parecer que as reclamações vinham por causa das dificuldades da viagem
no deserto. Isto explica por que o versículo diz "como aqueles que reclamam",
pois na verdade eles não tinham nenhuma reclamação verdadeira, eram apenas
desculpas para encobrir o que realmente os incomodava: a grande responsabilidade
de viver de acordo com as leis Divinas.
Portanto, a Parashá está nos ensinando um
fundamento muito importante para utilizarmos em nossas vidas: muitas vezes
quando alguém reclama ou cria uma discussão, na verdade nem ele mesmo acredita
em seus próprios argumentos. É apenas uma desculpa para encobrir e justificar
alguma forma de comportamento indesejável.
Um exemplo muito marcante disto pode ser
visto na primeira discussão da história da humanidade, entre Cain e Hevel
(Abel), que terminou em assassinato. Assim a Torá descreve a discussão: "E Cain
falou com Hevel, seu irmão, e enquanto eles estavam no campo, Cain se levantou
contra seu irmão Hevel e o matou" (Bereshit 4:9). Mas sobre o que eles
conversaram, para que chegasse ao nível de um irmão assassinar o outro? Explicam
os nossos sábios que Caim começou a negar D'us, dizendo para Hevel que não havia
nem Supervisão Divina, nem castigo e recompensa. Hevel começou a discutir com
Cain, argumentando que D'us sim existia, e certamente havia castigo e recompensa
para cada ato que fazemos. A argumentação foi ficando cada vez mais forte até
que, no calor da discussão, Cain se levantou e matou
Hevel.
Mas se a discussão entre Cain e Hevel foi um
debate filosófico tão fundamental, por que a Torá não escreveu explicitamente o
motivo da discussão, deixando para os nossos sábios o detalhamento? Explica o
Rav Yssocher Frand que, na verdade, Cain não acreditava em nada do que falou
para Hevel, ele estava apenas procurando uma desculpa para começar uma discussão
com seu irmão. A Torá não descreveu o conteúdo da discussão pois, na verdade,
ele era irrelevante, esta discussão filosófica nunca foi uma discussão
real.
Diz o Rav Yonathan Guefen que é por isso que
no versículo dos "reclamões" da nossa Parashá está escrito que "D'us escutou". O
verbo "Lishmoa", utilizado no versículo, não significa apenas escutar, mas
também entender, internalizar. D'us, que conhece o coração de cada pessoa,
escutou as reclamações do povo, que pareciam reclamações por causa das condições
difíceis da viagem, mas entendeu a verdadeira intenção delas. D'us viu que não
havia nenhum motivo real para as reclamações, apenas a vontade de se distanciar
Dele. Foi por isso D'us reagiu de maneira tão dura com o
povo.
Por nossas limitações, não podemos, como
D'us, ver o coração das pessoas. Mas podemos nos assemelhar a Ele e desenvolver
a sensibilidade de entender, não apenas as palavras ditas, mas também o que o
está por trás daquelas palavras. Por exemplo, muitas vezes quando alguém
pergunta "por que boas pessoas sofrem", não necessariamente a pessoa está em
busca de uma resposta filosófica. Pode ser que a pessoa está passando por um
sofrimento ou dificuldade e, mais do que uma resposta, precisa de apoio e
compreensão. Pode ser que a pessoa quer apenas atacar o judaísmo e, portanto,
nenhuma resposta vai satisfazê-lo, pois ele não está perguntando, está atacando.
Quando alguém vem discutir, nem sempre a pessoa acredita nos seus próprios
argumentos, ela pode estar apenas demonstrando alguma dificuldade em aceitar a
verdade. Uma criança que diz que não gosta de ir para a escola não é
necessariamente uma criança preguiçosa que precisa de ajuda para gostar dos
estudos. Pode ser um sinal de ela está passando por algum tipo de
constrangimento ou humilhação, mas não se sente à vontade para se abrir e contar
a verdade. Portanto, sempre que escutamos algo, precisamos ser ponderados, agir
com paciência e prestar atenção nos detalhes.
Grandes líderes do povo judeu, como Yaacov,
Moshé e David Hamelech (Rei David), foram pastores. Por que? Pois os animais não
falam, e por isso eles conseguiram desenvolver a capacidade de entender além das
palavras. Esta é uma importante qualidade que precisamos alcançar na vida: não
entender apenas o que fala a boca dos outros, mas se esforçar principalmente
para escutar o que diz o coração deles.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
Nm. 8:1-12:16, Zc 2:10 -4:7, Ap. 11:1-19
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