Miriam Leitão
O Brasil perderá esta eleição, independentemente de quem vença, se ficarem consagrados comportamentos desviantes assustadoramente presentes na política brasileira. Uso de um fundo de pensão para construir falsas acusações contra adversários, funcionários da Receita acessando dados protegidos por sigilo, centrais de dossiês montados por pessoas próximas ao presidente.
A cada eleição, fatos estarrecedores têm sido aceitos como normais na paisagem política, e eles não são aceitáveis. Quando a Polícia Federal entrou no Hotel Ibis, em São Paulo, em 2006, e encontrou um grupo com a extravagante quantia de R$ 1,7 milhão em dinheiro vivo tentando comprar um dossiê falso, havia duas notícias.
Uma boa: a PF continuava trabalhando de forma independente.
A ruim: pessoas da copa, cozinha, churrasqueira e campanha do presidente da República e do candidato a governador pelo PT em São Paulo estavam com dinheiro sem origem comprovada e se preparando para um ato condenável.
A pior notícia veio depois: eles ficaram impunes.
Nesta eleição, depoimentos e fatos mostram que estão virando parte da prática política, principalmente do PT, a construção de falsas acusações contra adversários, o trabalho de espionagem a partir da máquina pública, o uso político de locais que não pertencem aos partidos.
As notícias têm se repetido com assustadora frequência.
O verdadeiro perigo é que se consagre esse tipo de método da luta política. A democracia não é ameaçada apenas quando militares saem dos quartéis e editam atos institucionais.
Ela corre o risco de “avacalhação”, para usar palavra recente do presidente Lula, quando pediu respeito às leis criminosas do Irã.
Sobre o desrespeito às leis democráticas brasileiras, Lula não teme processo de “avacalhação”, pelo visto. A Receita Federal não presta as informações que tem o dever de prestar sobre os motivos que levaram seus funcionários a acessarem, sem qualquer justificativa funcional, os dados da declaração de imposto de renda do secretáriogeral do PSDB, Eduardo Jorge.
Nem mesmo explica como os dados foram vazados de lá. Se a Receita não divulgar o que foi que aconteceu, com transparência, ela faz dois desserviços: sonega ao país informações que têm o dever de prestar antes das eleições; mina a confiança que o país tem na instituição, porque sua direção está adiando, por cumplicidade eleitoral, a explicação sobre o que houve naquela repartição.
Nas últimas duas semanas, a “Veja” trouxe entrevistas de pessoas diretamente ligadas ao governo e que trabalham em múltiplos porões de campanha.
O que eles demonstram é que aquele grupo de aloprados do Ibis não foi um fato isolado. Virou prática, hábito, rotina no Partido dos Trabalhadores. Geraldo Xavier Santiago, ex-diretor da Previ, contou à revista que o fundo de pensão, uma instituição de poupança de direito privado cuja função é garantir a aposentadoria dos funcionários do Banco do Brasil, era usada para interesses partidários. Com objetivos e métodos escusos.
Virou uma central de espionagem de adversários políticos.
Agora, é o sindicalista Wagner Cinchetto que fala de uma central de produção de espionagem e disparos contra adversários; não apenas tucanos, mas qualquer um que subisse nas pesquisas.
Esse submundo é um caso de polícia, mas há outros comportamentos de autoridades que passaram a ser considerados normais nas atuais eleições. E são distorções.
Não é normal que todos os órgãos passem a funcionar como ecos do debate eleitoral, usando funcionários pagos com os salários de todos nós, estruturas mantidas pelos contribuintes. Todos os ministérios se mobilizam para consolidar as versões fantasiosas da candidata do governo ou atacar adversários, agindo como extensões do comitê de campanha. Isso é totalmente irregular. Na semana passada, até o Ministério da Fazenda fez isso. Um relatório que é divulgado de forma rotineira, virou palanque e peça de propaganda, com o ministro indo pessoalmente bater bumbo sobre gráficos manipulados para ampliar os feitos do atual governo e deprimir os do anterior.
O que deveria ser técnico virou politiqueiro; o que deveria ser prestação de contas e análise de conjuntura virou peça de propaganda.
Um governo não pode usar dessa forma a máquina pública para se perpetuar; órgãos públicos não são subsedes de comitês de campanha; fundos de pensão não são central de fabricação de acusações falsas; o governo não pode usar os acessos que tem a dados dos cidadãos para espionar. Isso mina, desqualifica e põe em perigo a democracia. Ela pressupõe a neutralidade da máquina mesmo em momentos de paixão política. Nenhuma democracia consolidada aceitaria o que acontece aqui. A Inglaterra acabou de passar por uma eleição cheia de paixões em que o governo trabalhista perdeu por pouco, mas não se viu lá nada do que aqui está sendo apresentado aos brasileiros com naturalidade, como parte da disputa política.
Crime é crime. Luta política é um embate de propostas, estilos e visões. O perigoso é essa mistura. Como a História já cansou de demonstrar, democracia não significa apenas eleições periódicas. A manipulação da vontade do eleitor, o uso de meios ilícitos, o abuso do governante ameaçam a liberdade, tanto quanto um ato institucional
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