"Certa vez, um sultão sonhou que havia
perdido todos os dentes. Logo que despertou, mandou chamar um adivinho para que
interpretasse seu sonho. O adivinho, assustado, exclamou que aquele sonho
significava uma grande desgraça, pois cada dente caído representava o sofrimento
pela perda de um parente. O sultão ficou enfurecido, achando uma grande
insolência daquele adivinho. Chamou os guardas e ordenou que lhe dessem cem
chicotadas. Não contente com o que havia escutado, o sultão ordenou que fosse
trazido outro adivinho e lhe contou sobre o sonho. Este, após ouvir o sultão com
atenção, disse-lhe:
- Magnífico sonho, senhor. É o sinal de que uma grande felicidade está reservada para você. O sonho significa que você terá uma vida muito longa, mais longa do que todos os seus parentes.
A fisionomia do sultão iluminou-se num sorriso, e ele mandou dar cem moedas de ouro a este adivinho. Quando o adivinho saía do palácio, um dos guardas do sultão lhe disse, admirado:
- Não é possível! A interpretação que você fez foi exatamente a mesma do seu colega. Por que ao primeiro adivinho ele deu cem chicotadas, e a você ele deu cem moedas de ouro?
- Aprenda uma lição importante - respondeu o adivinho. Na vida não importa apenas o que dizemos, mas também como dizemos..."
Um dos grandes desafios do ser humano é aprender a arte de comunicar-se. Da comunicação depende, muitas vezes, a felicidade ou a desgraça, a paz ou a guerra.
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Nesta semana começamos o último livro
da Torá, Devarim, também chamado de "Mishnê Torá" (repetição da Torá), pois o
livro inteiro traz o discurso de despedida de Moshé antes de sua morte, no qual
ele relembrou os principais acontecimentos dos 40 anos do povo judeu no deserto.
E na Parashá da semana, Devarim, Moshé relembrou um dos momentos mais trágicos
do povo judeu. No primeiro ano após a saída do Egito, o povo judeu já se
aproximava de Israel e finalmente poderia entrar na terra sagrada que havia sido
prometida a eles por D'us desde a época dos nossos patriarcas, Avraham, Yitzchak
e Yaacov. Mas o povo, ao invés de confiar na palavra de D'us, decidiu enviar
espiões para verificar se a terra era realmente boa. Dos 12 espiões enviados, 10
voltaram falando mal da terra e convenceram o povo de que era impossível
conquistá-la. O povo chorou durante toda aquela noite, deixando D'us irritado
com a falta de confiança. Conforme nos ensina o Talmud (Taanit 29a), D'us disse
para o povo: "Vocês choraram sem motivo. Portanto, Eu fixarei esta noite como
uma noite de choro para as futuras gerações". Esta noite era Tishá Be Av (dia 9
do mês judaico de Av), um dos dias mais tristes do ano, data na qual as palavras
de D'us se cumpriram e várias tragédias atingiram o povo judeu em diferentes
gerações, como a destruição dos nossos dois Templos Sagrados e a expulsão dos
judeus da Espanha e de Portugal em 1492.
O erro dos espiões custou caro
ao povo judeu. Toda aquela geração, cerca de 600 mil homens, recebeu o duro
decreto de não entrar na Terra de Israel. O povo judeu teve que permanecer 40
anos no deserto, até que toda aquela geração morresse e uma nova geração pudesse
entrar em Israel. Rashi (França, 1040 - 1105) nos conta que o castigo dos
espiões foi ainda mais duro. Eles sofreram uma morte terrível e estranha: suas
línguas se alongaram e chegaram até os seus umbigos, e vermes saíam de suas
línguas e entraram em seus umbigos. Rashi explica que esta morte foi "Midá
Keneged Midá" (medida por medida), pois o erro deles havia sido o mau uso da
língua. Mas como a língua chegar até o umbigo refletia o erro cometido pelos
espiões?
Tishá Be Av é um dia de luto nacional do povo judeu. Quando uma
pessoa está enlutada, ela fica em silêncio. Inclusive, de acordo com a Halachá
(Lei judaica), é proibido começar uma conversa com alguém que está enlutado.
Devemos permanecer em silêncio na presença de um enlutado, deixando para ele a
opção de vir conversar caso tenha vontade. Tishá Be Av também é um dia de
silêncio, pois a fala teve uma participação muito grande no erro dos espiões e,
consequentemente, na destruição dos dois Templos Sagrados. O silêncio de Tishá
Be Av é parte do conserto do erro cuja raiz foi o mau uso da fala. Nossos sábios
ressaltam a importância do silêncio: "Todos os meus dias eu cresci entre os
sábios e não encontrei nada melhor para o corpo do que o silêncio" (Pirkei Avót
1:17). Mas por que a Mishná do Pirkei Avót descreve que o silêncio é bom
especificamente ao corpo?
Há outro ensinamento interessante no Talmud em
relação ao silêncio. O Talmud (Meguilá 18a) afirma: "Se a palavra vale uma
moeda, o silêncio vale duas moedas". Mas o que o Talmud está acrescentado ao que
já foi ensinado na Mishná de Pirkei Avót? Além disso, por que Talmud utiliza
esta proporção de que o silêncio vale o dobro do que as palavras? Isto não
contradiz o ensinamento do Pirkei Avót, que aparentemente descreve que os
benefícios do silêncio são muitas vezes maiores do que os benefícios da
fala?
Há ainda um questionamento sobre o poder da fala que está
relacionado com a criação do ser humano, como está descrito: "E Ele (D'us)
soprou em suas narinas a alma da vida, e o homem se tornou uma alma viva"
(Bereshit 2:7). Unkelos, o sábio que traduziu a Torá para o aramaico, traduz
"alma viva" como "alma falante", ressaltando que o poder da fala é o que
diferencia o ser humano de todas as outras criaturas. Porém, várias fontes da
Torá mencionam pessoas que tinham a capacidade de entender a língua dos animais.
Isto significa que todas as criaturas também têm a capacidade de se comunicar.
Portanto, o que é tão único e especial no poder da fala do ser
humano?
Responde o Rav Yohanan Zweig que há duas fontes de onde se
origina a fala do ser humano. A fala pode ser uma verbalização de um pensamento
intelectual, ou uma reação visceral, instintiva, que reflete nossos desejos
físicos e emoções. Todas as formas de vida têm a capacidade de transmitir suas
necessidades e expressar seus desejos físicos através de sons, mas o ser humano
é a única criatura capaz de conceber ideias e articular estes pensamentos
através da fala.
Estas duas formas de expressão do ser humano estão
constantemente em conflito entre si. É a mente do ser humano que controla sua
fala, ou é o seu corpo? Esta luta fica mais evidente naqueles momentos em que o
ser humano tem o impulso de reagir verbalmente, mas sua mente diz que antes de
falar é necessário considerar as consequências de suas palavras. Portanto, o
silêncio é um sinal de controle, em especial quando relacionado à forma de fala
visceral e instintiva, quando o silêncio é um reflexo do controle do impulso
físico. Quando a Mishná do Pirkei Avót diz que "não há nada melhor para o corpo
do que o silêncio", está exaltando justamente este silêncio, que indica o
controle dos impulsos físicos do corpo.
Frequentemente a fala é utilizada
no lugar de ações físicas, sendo um dos principais exemplos disso o "Lashon
Hará" (fala difamatória). Uma das provas de que a fala muitas vezes substitui os
atos físicos está em uma das maldições trazidas na Torá: "Maldito aquele que
golpeia seu companheiro secretamente" (Devarim 27:24). Rashi explica que esta
maldição se refere àquele que faz Lashon Hará de seu companheiro. Apesar de o
Lashon Hará ter uma natureza apenas verbal, acaba se tornando um canal
sofisticado através do qual o difamador pode golpear sua vítima. E como o Lashon
Hará reflete a falta de controle da pessoa sobre o seu corpo, o castigo que ela
recebia era a Tzaráat, uma doença que atacava o transgressor com manchas no
corpo.
Foi exatamente esta a mensagem que D'us quis transmitir com a
forma através da qual os espiões morreram. Quando queremos expressar uma reação
instintiva, utilizamos a palavra "viceral", cuja raiz é "víceras", os nossos
órgãos internos mais moles, em especial aqueles contidos na cavidade abdominal.
A língua dos espiões chegando até o umbigo e os vermes saindo da boca e entrando
no umbigo são uma alusão à forma de fala pelas quais eles eram culpados: a fala
que sai do estômago, não da cabeça.
O Talmud (Sanhedrin 39a) descreve o
ser humano como sendo uma fusão de duas entidades: a mente e o corpo. Uma pessoa
cujo corpo reage de uma maneira espontânea, sem limites, é considerada como se
tivesse apenas uma única entidade, pois nestas circunstâncias a mente não traz
muito benefício para ela. Mas se a mente da pessoa consegue controlar seu corpo,
então este é um indivíduo verdadeiramente composto pelas duas entidades. É este
o ensinamento transmitido pela Mishná quando exalta o silêncio. "A palavra vale
uma moeda" se refere a uma pessoa cujo corpo controla sua fala e, portanto, é
como se fosse uma única entidade, enquanto "o silêncio vale duas moedas" se
refere ao silêncio que reflete o domínio da mente sobre o corpo, como se fossem
duas entidades.
Na próxima 2a feira de noite (4 de agosto) será Tishá Be
Av. É um dia de tristeza, mas também é um dia de muita reflexão. Que erros
estamos cometendo que nos fazem continuar neste exílio tão longo e sofrido?
Quais são as transgressões que nos fazem ter que sofrer acusações antissemitas
de todas as partes do mundo, simplesmente quando tentamos nos defender de
ataques terroristas? Certamente, se fizermos uma análise verdadeira e
autocrítica, perceberemos como o Lashon Hará é parte integrante de nossas vidas.
Não estudamos o suficiente para conhecer todas as leis relacionadas com a fala,
não nos esforçamos o suficiente para controlar nosso instinto quando temos
vontade de falar algo proibido, e infelizmente não nos preocupamos com as
consequências, físicas e espirituais, do mau uso da nossa fala.
Que neste Tishá Be Av possamos despertar e consertar nossos erros, em especial o Lashon Hará, para que neste ano seja, se D'us quiser, o nosso último Tishá Be Av de choro e tristeza.
"Uma pessoa sábia reflete antes de falar; uma
pessoa tola fala, e então reflete sobre aquilo que disse"
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm
http://ravefraim.blogspot.com.br/
DEUTERONÔMIO 1:1-3:22, Is.1:1-27
Tsom Tishá BeAv
9 de Av (Destruição do Templo)
Dt. 4:25-40, Je 8:13-9:23
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