"Eduardo foi convidado para
participar de uma corrida. Era uma competição diferente, e Eduardo ficou sabendo
de apenas algumas poucas informações: a data e o local da corrida, o valor do
prêmio milionário que o vencedor receberia e que o outro competidor seria
Rafael, um velho conhecido seu. As demais regras seriam divulgadas apenas no dia
da competição, o que deixou Eduardo muito ansioso.
Quando finalmente chegou o dia
marcado, Eduardo chegou ao local combinado. A competição seria uma corrida de 3
horas por uma estrada onde não havia limites de velocidade. Os organizadores
então trouxeram para Rafael um lindo carro esportivo, com as mais modernas
tecnologias. Eduardo ficou imaginando que receberia um carro igual, mas foi com
grande surpresa que ele viu os organizadores trazendo para ele, nada mais e nada
menos do que... uma bicicleta. Seria uma piada? Será que ele estava participando
de um daqueles programas humorísticos de "câmera oculta"? Enquanto o outro
competidor havia recebido um carro esportivo, ele havia recebido uma bicicleta,
e ainda por cima sem marchas! Eduardo ficou muito decepcionado, aquela
competição parecia muito injusta. Como ele poderia, com uma bicicleta, competir
contra um carro?A corrida começou e, apesar do desânimo, Eduardo deu o melhor de si. Ele pedalava com vontade e se esforçava, principalmente nas subidas, mas por mais que tentasse, não chegava nem perto de Rafael. Não que Rafael estivesse fazendo muito esforço, ao contrário, apesar de poder voar a quase 300 km/h, ele passeava tranquilamente, aproveitava para tomar sol e escutar Rock no seu aparelho de som digital. O tempo passava, Eduardo pingava de suor e seus músculos doíam, enquanto Rafael estava tranquilo, sentado no seu carro, com o ar condicionado ligado. Como Rafael viu que era muito mais rápido que Eduardo, não se preocupou em acelerar. Foi tranquilo, fez inclusive uma parada para cochilar e aproveitou para telefonar para seus amigos para contar sobre a sua grande sorte.
Após 3 horas de prova, Eduardo estava acabado. Apesar do esforço, havia conseguido completar apenas 90 km do percurso, enquanto Rafael, tranquilo, havia completado 100 km. Rafael já festejava por dentro, estava com um grande sorriso no rosto. Porém, o sorriso desapareceu quando os juízes anunciaram que Eduardo era o vencedor. Agora era Eduardo quem sorria. As dores musculares já não incomodavam mais, todo o esforço tinha valido a pena, ele era milionário! Rafael, inconformado, foi tirar satisfações com um dos organizadores:
- Escute aqui, eu venci, pois eu andei mais. Ele andou apenas 90 Km, enquanto eu andei 100 Km. Eu mereço receber o prêmio!
- É verdade que você andou mais – disse o organizador – mas quem falou que este era o requisito para a vitória? Você acha que se fosse este o requisito, seria justo você receber um carro esportivo e o outro competidor receber apenas uma bicicleta? Você não percebeu esta aparente "injustiça"?
- Na verdade – continuou o organizador - o vencedor foi aquele que melhor aproveitou o potencial do que lhe foi oferecido. O Eduardo recebeu uma bicicleta e andou com ela 90 Km. Como o máximo que ele poderia ter andado seria 100 km, ele aproveitou 90% do seu potencial. Mas você, que recebeu um carro possante, poderia ter andado quase 1.000 km com ele, mas como andou apenas 100 km, aproveitou só 10% do seu potencial. É verdade que você, no total, andou mais do que ele. Mas do seu enorme potencial, você não aproveitou quase nada, enquanto ele, com um potencial muito menor, aproveitou quase tudo. O Eduardo é o vencedor, pois a corrida não era um contra o outro, era cada um contra si mesmo."
Assim D'us também julga nossos atos. Ele não leva em consideração até onde cada um chegou, mas quanto cada um aproveitou em relação ao seu próprio potencial.
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Na Parashá desta semana, Pinchás, a Torá escreve em sequência dois assuntos aparentemente desconectados. Após terem cometido muitas transgressões durante os 40 anos no deserto e terem recebido castigos tão duros de D'us, o povo judeu estava desmotivado de entrar em Israel. Muitos estavam tão desanimados que preferiam até mesmo voltar para o Egito. Neste contexto vieram as cinco filhas de um homem chamado Tzlofechad reclamar que elas também queriam um pedaço de terra em Israel. Qual era o motivo da reclamação delas? Quando elas viram que D'us havia pedido uma nova contagem do povo antes da entrada em Israel, entenderam que aquele número era para fazer a divisão das terras entre as famílias que havia em cada tribo. Mas elas perceberam que apenas os homens foram contados, e então entenderam que a divisão das terras seria feita apenas de acordo com a quantidade de homens em cada família. Mas o pai delas, Tzlofechad, havia morrido sem deixar filhos homens e, portanto, elas não teriam direito a nenhuma terra, por isso foram reclamar. D'us gostou desta reclamação, pois demonstrou a vontade que elas tinham de ir para Israel, contrastando com o desânimo do resto do povo. Imediatamente a Torá ensinou as leis de herança, com os detalhes de como os bens deveriam ser passados para os filhos e parentes depois da morte dos pais.
Logo depois deste evento a Torá traz outro assunto. Moshé, avisado que sua morte estava iminente, pediu para D'us um novo líder para o povo, como está escrito: "Que nomeie Hashem, D'us dos espíritos de toda a carne, um homem sobre a congregação" (Bamidbar 27:16). Qual a conexão entre estes dois assuntos aparentemente tão distintos, a herança passada dos pais para os filhos e a escolha de um novo líder?
Explica Rashi, comentarista da Torá, que quando Moshé viu que D'us havia ensinado para o povo as leis de herança, isto é, que os filhos herdam o que era de seus pais, ele sentiu que era o momento de fazer um pedido pessoal para D'us. Ele pediu para que seus dois filhos, Guershom e Eliezer, também herdassem sua grandeza e se tornassem os próximos líderes do povo judeu. Porém, vemos que D'us não escutou o pedido de Moshé, pois logo depois está escrito "E disse D'us para Moshé: Pegue Yoshua bin Nun, um homem que está repleto de espírito (de sabedoria), e apoie suas mãos sobre ele" (Bamidbar 27:18). Isto quer dizer que D'us pessoalmente escolheu Yoshua, e não os filhos de Moshé, como o próximo líder do povo judeu. Mas qual o motivo desta escolha de D'us? O mais lógico não seria Moshé ter passado a liderança para seus filhos, como fizeram futuramente a maioria dos reis, que passaram o trono para seus descendentes? Então por que os filhos de Moshé não foram os escolhidos?
Há um Midrash (parte da Torá Oral) que traz uma resposta surpreendente. O Midrash diz que os filhos de Moshé não foram os escolhidos pois não sentavam para estudar Torá. Já Yoshua, ao contrário, não saía da tenda de estudos e se dedicava ao máximo para adquirir sabedoria de seu mestre Moshé. Mas como entender este Midrash? Moshé se importava demais com o povo, e comprovou isto durante toda sua vida, ao se dedicar de corpo e alma às necessidades do povo antes mesmo de pensar em suas próprias necessidades. Então como ele pode ter pensado em pedir para D'us que nomeasse como líderes do povo seus filhos, se eram pessoas que não estudavam Torá? Ele não sabia o quanto era importante que o novo líder tivesse muita sabedoria para ser também um juiz e um professor para o povo? Ele deixou que subisse à sua cabeça a vontade de que seus filhos herdassem seu posto de liderança, mesmo eles não sendo aptos para isso?
Explica o livro Lekach Tov que existe uma grande diferença entre o mundo material e o mundo espiritual em relação a quanto o esforço influencia no valor de algo realizado ou produzido. No mundo material, o valor das coisas não leva em consideração os esforços envolvidos, o que importa são apenas os resultados. Por exemplo, se um artesão habilidoso leva um dia para fabricar um vaso, enquanto outro artesão menos habilidoso leva 3 dias e precisa de muito mais esforço e dedicação, quando os dois vasos estão prontos, eles têm no mercado exatamente o mesmo valor. Isto quer dizer que todo o esforço e a dificuldade envolvidos na fabricação do vaso não são levados em consideração. Mais do que isso, se uma pessoa passa o dia inteiro criando e digitando uma matéria para ser publicada no jornal, mas no momento de salvar o arquivo fica corrompido e não pode mais ser aberto, quanto vale o que a pessoa fez e todo o esforço que ela despendeu? Absolutamente nada.
Porém, não é isto que ocorre no mundo espiritual. O valor de cada ato espiritual, como o cumprimento de uma Mitzvá ou o estudo da Torá, não leva em consideração apenas o resultado, mas também todo o esforço envolvido. Quanto maior a dificuldade, maior o valor do ato, como nos ensina a última Mishná do Pirkei Avót (Ética dos Patriarcas): "De acordo com a dificuldade, assim é a recompensa". Isto quer dizer que mesmo se duas pessoas cumprirem exatamente a mesma Mitzvá, mas uma delas cumprir com facilidade enquanto a outra cumprir com muita dificuldade e esforço, apesar do resultado ter sido o mesmo, o valor da Mitzvá é completamente diferente para cada pessoa. Para aquele que se esforçou mais, o valor de sua Mitzvá é muito maior.
Com este conceito podemos entender o ensinamento do Midrash. Certamente Moshé não era um irresponsável, nunca indicaria com líder alguém que não tivesse capacidade para isso. A verdade é que, em termos de nível espiritual e de conhecimento da Torá, os filhos de Moshé eram tão grandes quanto Yoshua. Mas o problema é que eles tinham um potencial de crescimento ainda maior do que o de Yoshua, eles poderiam ter chegado ainda mais alto. O que aconteceu? Eles desperdiçaram seu potencial, pois não utilizaram todas as suas forças e aptidões. Se tivessem se esforçado mais, teriam chegado muito mais alto do que Yoshua.
Quando o Midrash diz que eles não estudaram Torá, não quer dizer que não estudaram nada e não tinham conhecimento. O Midrash quer nos ensinar que eles não atingiram seus verdadeiros potenciais espirituais e, por isso, comparado com nível que poderiam ter chegado, é como se não tivessem estudado. Eles perderam para sempre a oportunidade de serem os líderes do povo judeu. Já Yoshua, ao contrário, apesar de ter menos aptidões do que os filhos de Moshé, utilizou seu potencial no limite. Ele madrugava para ir para a tenda de estudos, passava o dia inteiro próximo de Moshé, absorvendo seus conhecimentos, e só voltava para casa tarde da noite. Seu amor pela Torá e pelos conhecimentos era tão grande que era ele quem organizava a tenda de estudos no final do dia, arrumando as mesas, cadeiras e livros. Por isso foi ele, e não os filhos de Moshé, o escolhido para ser o sucessor na liderança do povo.
Este conceito espiritual pode ser aplicado também em outras áreas da vida e nos ajuda a responder uma das grandes perguntas filosóficas. Olhamos para o mundo e vemos muitas desigualdades. Enquanto alguns nascem em famílias abastadas, outros passam por dificuldades e privações. Enquanto alguns nascem fortes e saudáveis, outros nascem fracos e doentes. Por que há tanta desigualdade no mundo? Por que uma pessoa nasce milionária e pode doar milhões, enquanto outra nasce pobre e pode doar apenas alguns trocados? Por que uma pessoa nasce saudável e pode caminhar sem dificuldade para a sinagoga, enquanto outra precisa ir de muletas ou em uma cadeira de rodas. Onde está a justiça de D'us?
A resposta é que, pelo fato de D'us não medir as Mitzvót pelo resultado e sim pelo esforço, as dificuldades se transformam em oportunidades. Aquela pessoa pobre, que doa com esforço apenas alguns reais, uma quantia significativo para suas poucas possibilidades, seu ato vale aos olhos de D'us como se ele tivesse doado uma soma muito grande de dinheiro. Aquele que vai para a sinagoga com dificuldade, cada passo vale muito mais, cada palavra de sua reza tem muito mais força.
Yoshua nunca invejou os filhos de Moshé por eles terem mais aptidões, e no final vemos que foi ele o escolhido para liderar o povo judeu. Da mesma maneira, não devemos invejar se os outros têm mais dinheiro ou mais aptidões. A inveja é uma tolice, pois recebemos de D'us exatamente as ferramentas necessárias para cumprir nosso papel espiritual no mundo, nada a mais e nada a menos. Devemos lembrar sempre que a corrida verdadeira da vida não é contra os outros, é contra nós mesmos.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm
Nm. 25:10-29:40, Jr 1:1-2:3; Jo. 2:13-25 (1ª Haft. da Afli., Dibrei Yirmeyahu)
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