Um ano após sua expulsão da área que virou a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, fazendeiros ainda brigam por indenizações mais justas. Na terra que deixaram, não há mais produção - e os índios vivem de verbas do governo e de ONGs
O dia era de festa. Em 19 de abril deste ano, 3 000 índios se reuniram na comunidade Maturuca, no extremo norte do estado de Roraima, para comemorar algo mais que o Dia do Índio. Foi o primeiro aniversário da homologação da reserva Terra Indígena Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal. Por meio dela, os índios ganharam a posse definitiva de uma área de 1,7 milhão de hectares - o equivalente a 11 vezes o tamanho do município de São Paulo. Entre os presentes, lideranças de 26 comunidades da região, diretores da Fundação Nacional do Índio (Funai), religiosos e representantes de ONGs. Convidado de honra, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou por volta das 11 horas, dando início à celebração. O almoço foi farto. Estima-se que mais de 60 bois tenham sido abatidos para o churrasco. Em seu discurso, Lula exaltou a valentia dos índios na longa batalha pelas terras e elogiou a decisão do STF. "A Suprema Corte, em um gesto de grandeza, decidiu que a Raposa Serra do Sol tinha dono. E os donos eram os índios", afirmou o presidente. "Hoje, vejo que está todo mundo muito feliz."
Na realidade, nem todos estavam felizes. A 350 quilômetros dali, na capital Boa Vista, um grupo de fazendeiros seguia inconformado. Já não tinha mais esperança de reaver a terra perdida, mas queria, ao menos, indenizações mais justas. Segundo a Funai, juntas, as famílias expulsas receberam 12 milhões de reais pelas benfeitorias "de boafé" feitas nas propriedades. Porém, muitos recusaram a indenização proposta, alegando que a avaliação estaria abaixo do valor real. Nesses casos, o dinheiro foi depositado em juízo. Segundo especialistas contratados pelos produtores para checar as avaliações, a Funai não levou em conta a terraplenagem, o manejo de solos nem a construção de estradas e pontilhões. "A Funai fez um parecer a favor do governo", afirma o agrônomo Camilo Cervo, ex-professor da Universidade Federal de Santa Maria e avaliador de algumas das fazendas. A situação dos arrozeiros expulsos das terras em Roraima retrata um problema que volta e meia atormenta quem produz no Brasil: a insegurança jurídica. No campo, isso significa que nem mesmo um título de posse legal conferido pelo governo é capaz de garantir uma propriedade. Nos últimos tempos, reivindicações de terras para indígenas e quilombolas, além de desapropriações para a reforma agrária, vêm deslocando à força muitos produtores rurais.
O exemplo do rizicultor Nelson Itikawa, de 57 anos, resume essa história. Filho de imigrantes japoneses radicados no Paraná, Itikawa chegou a Roraima no início dos anos 80, atraído por um programa federal para fomentar o agronegócio no norte do país. Empolgado com o potencial produtivo da região, adquiriu 2 700 hectares no município de Normandia, na fronteira com a Venezuela, e começou a plantar arroz. Quase 30 anos depois, a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol engoliu sua propriedade. De uma hora para a outra, Itikawa passou de produtor rural a "ocupante ilegal da terra", de acordo com a Funai. Assim como os demais arrozeiros, ele resistiu, mas no final foi retirado da fazenda Carnaúba pela Polícia Federal. Retrocesso econômico A expulsão dos fazendeiros da reserva Raposa Serra do Sol e a consequente queda da produção agropecuária tiveram impacto forte na economia de Roraima Pelos cálculos oficiais, Itikawa teria direito a 266 000 reais de indenização. Uma avaliação independente, no entanto, estimou em 5,2 milhões de reais o valor das benfeitorias feitas em sua área. Isso sem contar as terras. Com escritura definitiva expedida pelo Incra em mãos, o produtor quer mais 2 milhões de reais pela terra. A Funai, por sua vez, com base na Constituição de 1988, não reconhece a cobrança, alegando que a área é de propriedade da União: de acordo com a Carta, são nulos todos os títulos de posse em terras declaradas indígenas. Ou seja, desde a homologação da reserva, a documentação de Itikawa se tornou inútil. "Aqui em Roraima, um laudo antropológico vale mais que qualquer registro", afirma ele. O próprio Incra reconhece a existência de 25 fazendeiros, donos de escrituras definitivas, na mesma situação. "Quando os títulos foram expedidos, as áreas não eram pretendidas pela Funai", defendeu-se o Incra por meio da assessoria de imprensa. Roraima tem quase metade do território ocupada por terras indígenas. É, proporcionalmente, o estado com mais reservas.
A homologação da Raposa Serra do Sol, área em que índios e não índios viviam em harmonia há décadas, fez com que 500 famílias perdessem as terras. Além dos rizicultores, quem trabalhava nas fazendas ou possuía algum tipo de comércio também foi expulso. O curioso é que a disputa se deu sobre apenas 1,5% da reserva. "O modo como foi feita a demarcação vai contra o interesse da maioria da população", diz o governador de Roraima, José de Anchieta Júnior. Ele questiona a veracidade do laudo antropológico que deu base à demarcação. No documento, um motorista da Funai assina como técnico agrícola, e um professor da Universidade de São Paulo apontado como responsável pelo levantamento das atividades econômicas da região afirmou nunca ter posto os pés em Roraima.
Procurado por EXAME, Mércio Pereira Gomes, presidente da Funai na época da demarcação, minimizou as críticas: "Isso é um detalhe bobo e irrelevante que os ministros do Supremo nem levaram em consideração". Nem os interesses dos índios foram plenamente atendidos. Para o laudo, ouviram-se apenas integrantes do Conselho Indígena de Roraima (CIR), a ala mais radical deles. "O CIR não responde por todos os índios de Roraima e defende os interesses de organismos internacionais. A maioria de nós era a favor da permanência dos brancos", afirma Jonas Marcolino, membro da rival Sociedade de Defesa dos Indígenas Unidos do Norte de Roraima (Sodiurr). Há outra questão, apontada pelo antropólogo Edward Luz, da Universidade de Brasília: os critérios hoje utilizados nos processos de demarcação podem dar margem a situações absurdas. Segundo ele, basta um parecer de um antropólogo indicando vestígios de ocupação indígena para que uma terra seja requisitada por tribos. Como até 1500 só havia índios por aqui, qualquer área do país é passível de desapropriação. "É possível demarcar a praia de Ipanema e até o Congresso Nacional com os atuais critérios", afirma Luz. O Brasil tem 674 terras indígenas homologadas e outras 150 em análise.
Em Mato Grosso do Sul, 10 milhões de hectares, que respondem por 60% da produção de grãos do estado, estão na mira da Funai. No país todo, a população autodeclarada indígena, de cerca de 1 milhão de indivíduos - 0,5% dos brasileiros -, já detém 13% do território. Somando as áreas destinadas a índios e quilombolas com as de preservação ambiental, estão bloqueados 78% do território nacional. Para a agropecuária, descontando ainda terras destinadas a reforma agrária, cidades e infraestrutura, sobram menos de 10% do país. Faz sentido abrir mão de tantas terras produtivas e limitar o agronegócio, que tem sido um dos pilares do crescimento do Brasil? Roraima já sente o impacto das demarcações. Desde a saída dos fazendeiros da reserva, a produção de arroz, principal atividade agropecuária do estado, diminuiu 60%. A Secretaria de Planejamento de Roraima calcula uma queda de 2,1% no produto interno bruto do estado neste ano.
Postos para fora da Raposa Serra do Sol, os produtores foram obrigados a recomeçar do zero. Sem recursos suficientes para comprar uma nova fazenda, Nelson Itikawa viu-se obrigado a arrendar pequenos pedaços de terra para seguir plantando. Porém, sua primeira experiência após a expulsão não foi das melhores. As chuvas deixaram parte das lavouras debaixo dÂ’água. Resultado: 4 000 sacas de arroz perdidas e prejuízo de 140 000 reais. "Eu sabia do risco dessa área, mas precisava plantar", disse Itikawa a EXAME enquanto caminhava, com água até os joelhos, sobre a produção perdida. A questão é que há pouca alternativa - quase não sobrou terra adequada à agricultura em Roraima. Mesmo com 400 000 habitantes e uma das menores densidades demográficas do Brasil, as terras do estado estão tomadas. Além dos 46% do território dos índios, há parques nacionais, áreas militares e montanhas. Ao agronegócio resta 1,6 milhão de hectares, ou 7% do território roraimense. A maior parte, diga-se, não serve para a produção de arroz. Mas não são apenas os arrozeiros que lamentam a decisão do Supremo.
Entre os não índios obrigados a deixar a região, existiam comerciantes, motoristas, mecânicos, trabalhadores rurais e prestadores de serviços em geral. A maioria foi para Boa Vista e hoje está desempregada. Os pequenos produtores, por sua vez, foram reassentados pelo Incra em áreas sem infraestrutura. Raimundo Curica, de 58 anos, nasceu na Raposa Serra do Sol e viveu ali até a homologação da reserva. Curica tinha terras tituladas, uma casa, algumas cabeças de gado, um restaurante modesto e uma borracharia. Faturava 5 000 reais por mês, renda boa para os padrões da região. Após a expulsão, recebeu indenização de 113 000 reais e foi reassentado pelo Incra em uma área remota sem água nem energia elétrica. "Estamos vivendo como bicho", diz Curica. "O presidente Lula deveria vir aqui ver a nossa situação, como fez com os índios." Enquanto isso, na Raposa Serra do Sol, a paisagem já não é a mesma de um ano atrás. O mato cobre as áreas mais produtivas do estado de Roraima, enquanto os poucos índios que ainda vivem ali passam o dia assistindo à televisão. A reportagem de EXAME observou que na comunidade do Barro, numa das entradas da reserva, a maioria das malocas possui antena parabólica, o que garante uma boa qualidade de imagem. Os indígenas vivem graças a programas sociais do governo federal - cada família recebe pelo menos um salário mínimo por mês. Os líderes administram verbas recebidas de ONGs e do governo. Quando precisam de mantimento, vão de carro ao supermercado em Boa Vista ou Normandia. As vias dentro da reserva estão sendo asfaltadas pelo Exército. Muitos índios, que nasceram e cresceram em meio aos brancos, confessam sentir falta do movimento de outrora. Porém, o discurso do CIR é bem diferente. Seus líderes alegam que as vastas terras permitirão que os índios voltem a viver como antigamente, pescando, caçando e cultivando pequenas hortas. "Não temos nenhum interesse na produção de arroz", afirma Dionito José de Souza, líder do CIR, ao ser questionado sobre o que faria nas áreas herdadas dos rizicultores. "Temos parceiros estrangeiros que sempre nos ajudaram. Os noruegueses estão doando 1 milhão de reais aos nossos projetos." Dionito é um índio do século 21. Parece mais um homem de negócios. Anda bem-vestido - às vezes, de terno -, usa relógio e dirige uma picape. Gaba-se de ter quatro escritórios espalhados por Roraima. "Uma estrutura maior que a da Sodiurr", faz questão de dizer. Ao lado do irmão Jaci, ele é responsável também pela gestão de verbas milionárias repassadas pelo governo federal. Nos últimos dez anos, o CIR recebeu 88 milhões de reais da União. E não prestou contas. Fala-se em Roraima que a entidade ganha, ainda, verbas de estrangeiros que ambicionam explorar riquezas minerais na reserva. Mapas geológicos indicam que lá haveria ouro, diamante, urânio e nióbio. Perguntado sobre sua relação com os exocupantes da região, Dionito é direto: "Nós odiamos os brancos". Os brancos brasileiros, que fique bem claro.
Repostagem de Nicholas Vital - Revista EXAME
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